A talhe de foice
Por Machado da Graça
Eles comem tudo
E não deixam nada
José Afonso (Os Vampiros)
Recentemente o Magazine Independente reportou que a Assembleia da República andava à procura de uma residência para a sua Presidente ou, em alternativa, para o anterior Presidente, o dr. Mulembwe.
Num ou noutro caso pretende-se uma casa de 6 divisões, com piscina e garagem para 6 viaturas.
Segundo o autor do artigo, Lourenço Jossias, uma casa desse tipo custa uma renda de cerca de 6 a 7 mil dólares por mês. Isto, é claro, para além dos chorudos vencimentos e não menos chorudas outras regalias que o beneficiário considera compatíveis.
Tudo isto num país onde mais de 100 mil famílias são beneficiárias de um Programa de Subsídios de Alimentação, ao abrigo do qual cada família recebe entre um mínimo de 100 e um máximo de 300 meticais por mês. E não são mais as famílias abrangidas por razões várias, não porque não sejam muitas mais as que necessitam de apoio.
Este subsídio é de 100 meticais para cada beneficiário e mais 50 meticais para cada dependente (filhos, idosos, etc) até ao máximo de 4.
E, de acordo com o estudo que estou a citar1, a grande maioria dos beneficiários recebe apenas 100 meticais (55,41%). Os que recebem 150 meticais são 7,15%, os que recebem 200 meticais são 30,26% e os que recebem 300 meticais são apenas 5,09%.
O que leva a que 87,18% dos beneficiários considerem que o subsídio é insuficiente para ajudar nas despesas do agregado familiar.
Este é um país onde as nossas crianças, em mais de 50% sofre de malnutrição crónica e 6,6% de malnutrição aguda.
E malnutrição é uma forma púdica de dizer fome. Tal como a nova expressão, cunhada, recentemente, pelo ministro Cuereneia, de “pobreza alimentar”.
O que nos mostra que Moçambique não é um país. São dois países: o país da miséria mais total, ao lado do país da enorme opulência, dos que usam, e abusam, dos privilégios que lhes dá o Estado, legal ou ilegalmente.
Porque há os benefícios legais, os que foram já metidos na legislação do país, através da maioria que a Frelimo possui na Assembleia da República, e há os benefícios ilegais: as comissões recebidas por negócios feitos com o Estado, os concursos ganhos através do conhecimento prévio das ofertas dos outros concorrentes, as atribuições feitas sem sequer se passar por nenhum concurso público e toda a outra ginástica financeira que tornou, em relativamente poucos anos, a nossa elite politico-económica numa classe social riquíssima, com níveis de vida comparáveis aos de outros países com economias muito mais desenvolvidas.
Ou até muito melhores que nesses países.
Há dias recebi um pequeno filme sobre as instalações que o parlamento da Suécia reserva aos deputados de fora de Estocolmo que têm que residir na capital para participarem nas sessões.
Pois esses alojamentos ficam num prédio comum e cada deputado tem direito a um espaço pessoal que corresponde a um quarto de hotel, relativamente grande, onde pode dormir e ter uma pequena área para trabalhar ou receber visitas.
Depois existe uma cozinha grande, colectiva, onde cada deputado cozinha os seus alimentos e os come, numa enorme mesa comum para todos os moradores.
Por fim há uma lavandaria, com bastantes máquinas automáticas de lavar roupa, que os deputados podem utilizar, marcando antecipadamente, num calendário pendurado na parede, os dias e horas em que pretendem usar a lavandaria.
Empregados não há. São os deputados que arrumam e limpam os quartos, que cozinham e lavam a sua roupa.
Mas isso é na Suécia, país cuja riqueza não se compara com a nossa...
Após a Independência, Samora dizia que a Frelimo não tinha lutado para substituir os exploradores de pele branca por exploradores de pele negra.
E, muito possivelmente, essa foi uma das razões porque o mataram. Para permitir enriquecimentos bruscos, nada compatíveis com a pobreza do nosso país.
Enquanto a maioria do Povo continua sujeito à tal pobreza alimentar, à tal malnutrição.
Enfim, à fome...
1 Avaliação do Programa de Subsídio de Alimentos: Uma análise do inquérito de linha de base. Artigo de Fábio Veras Soares, Guilherme Hirata e Rafael Perez Ribas, publicado no livro do IESE: Protecção Social, abordagens, Desafios e experiências para Moçambique
Fonte: SAVANA (22.10.2010) in
Diário de um sociólogo