O Poder da Frelimo (1)
A Frelimo é tão poderosa quanto Deus. Ou melhor: tal como a omnipotência e omnipresença de Deus, o poder da Frelimo é tão grande e permeia tanto a sociedade quanto maior for a nossa crença nele. O pior nisto é que esta crença conduz a duas situações curiosas. Por um lado, ela leva muitos de nós a agirem de acordo com o que pensamos ser a vontade dessa Frelimo poderosa; alguns podem chegar ao ponto de violar normas e regras por pensarem que assim estão a respeitar a vontade dessa Frelimo todo-poderosa. Por outro lado, e igualmente mau, as pessoas que se consideram como sendo a Frelimo – em oposição, digamos, aos que são da Frelimo – também começam a acreditar que são mesmo poderosas.
Alguns estudos recentes realizados por encomenda de organizações internacionais como a Swisspeace (da Suíça), pela DFID (Grã Bretanha) e pela USAID (EUA) levantaram o espectro de uma democracia falhada em Moçambique, vítima da omnipotência e omnipresença da Frelimo. Moçambique, conclui-se algo apressadamente nesses relatórios, está a regressar ao tempo do partido único. O aparelho do Estado está nas mãos ciumentas da Frelimo; o mundo de negócios está fortemente manietado pelo chamado partido da maçaroca e batuque; e mesmo a sociedade civil está num processo de transformação em braço prolongado do partido no poder. Moçambique, vaticina-se nesses estudos, está a caminhar a passo seguro rumo à guerra.
A oposição sucumbiu às investidas da Frelimo, tendo sido vergada à vontade de ferro deste poderoso partido com sede na Pereira de Lagos. Os erros que a liderança da Renamo comete, as cisões e a sua atrapalhação geral são vistas como sendo o resultado de maquinações orquestradas pela Frelimo. Este estado de coisas constitui um mau agoiro para a saúde da democracia e da paz no País; os descontentes, diz-se com uma ponta de esperança, vão se erguer, pegar em armas e comprometer para sempre a luta contra a pobreza absoluta.
A situação objectiva do País não encoraja, na verdade, nenhum outro tipo de leitura. De facto, desde que Guebuza tomou as rédeas do partido e, depois, do Estado, a Frelimo tem sido mais agressiva na afirmação da sua identidade, na confrontação com a oposição e na definição do seu papel no Estado. Ao mesmo tempo, pelo menos a julgar pela letra e espírito das teses ao Nono Congresso bem como pela forma como esse evento decorreu, a Frelimo dá a impressão de ter redescoberto um dos seus mitos fundadores, nomeadamente a crença na ideia de que ela é o legítimo e único representante do povo moçambicano e que o que é bom para ela é bom para todo o povo moçambicano. Os sinais, de facto, não são muito bons e as fanfarras que estudos apressados vão tocando oferecem-nos uma bela oportunidade de analisarmos o que se está a passar ao nosso redor.
A independência que nos foi servida de bandeja por homens e mulheres de espírito intrépido reunidos em torno da Frelimo constitui um bem muito valioso. É responsabilidade de todo o moçambicano, mesmo daqueles que não simpatizam com a Frelimo, honrar os sacrifícios consentidos pelos seus membros pela liberdade de que hoje desfrutamos. As fraquezas humanas que uma e outra vez alguns veteranos dessa epopeia revelam não retiram o valor ao que eles fizeram, nem devem servir para lhes negar o lugar que merecem no nosso panteão histórico. Os excessos do período imediatamente a seguir à independência também não são razão suficiente para questionar o papel preponderante que a Frelimo desempenhou no nosso devir histórico. Não obstante, honrar a Frelimo e valorizar a liberdade significa também prestar atenção ao que pode colocar em perigo esses ganhos. Significa, de forma mais profunda ainda, aprender da história e dar valor à segunda liberdade que os erros e excessos do pós-independência tornaram necessária por via da instrumentalização de moçambicanos em torno da Renamo.
O último congresso deste partido, que veio na esteira de inquietações emitidas pelas agências acima citadas, tornou claro que a opinião pública moçambicana precisa de chegar a um consenso sobre o que a Frelimo é e em que consiste o seu poder. Tenho a impressão de que mais do que a opinião pública nacional, muitos membros da Frelimo precisam deste consenso. Na verdade, a simples suposição de que todos sabemos do que estamos a falar quando evocamos a Frelimo ou o seu poder tem constituído, em minha opinião, uma das razões para os receios dos que vêem o perigo da monopartidarização e, sobretudo, tem sido a fonte a partir da qual a confusão entre partido e Estado tende a não ser vista como um problema grave da evolução política recente do País. Nos artigos que se seguem vou debruçar-me sobre o “poder da Frelimo” tentando partilhar com os leitores outras formas de ler a nossa situação política sem o recurso às teorias de conspiração que são o apanágio das nossas abordagens.
Vou também abordar aspectos relacionados com o próprio partido, nomeadamente a sua filosofia, o papel dos académicos, dos técnicos e, de uma forma geral, a impressão que alguns dos seus estrategas dão do que pensam sobre a democracia, lugar da oposição e sobre o papel do seu próprio partido no contexto geral das coisas da vida. Estou a tentar fazer um exercício de reflexão crítica em resposta a um instinto animal muito mais forte do que a recomendação da modéstia intelectual de falar pouco. A esperança continua a ser de falar muito até acertar.
O Poder da Frelimo: De quem beneficia (2)
Por E. Macamo
O principal problema na abordagem da nossa situação política é saber como fazer a análise. A qualidade do debate na e sobre a nossa esfera pública tem revelado continuamente que, salvo raras excepções, a preferência analítica é por conclusões alicerçadas na procura de quem beneficia de uma situação. Invariavelmente, analisamos os nossos problemas partindo do pressuposto de que quem beneficia do resultado está por detrás de tudo quanto nos levou até lá. É uma versão da teoria de conspiração que encontra sustento metafísico nas nossas crenças supersticiosas. Em Gaza diz-se que “la kunga fiwa kuni noyi” (onde há falecimentos, há um feiticeiro). O verdadeiro alcance destas crenças – em conspiração e na superstição – é a aversão generalizada ao que não tem explicação. Temos que explicar tudo – o que até não é mau – mesmo se para o efeito tiramos conclusões erradas – o que já é mau.
O quadro geral analítico que privilegiamos no nosso País funda-se na convicção de que Moçambique é coisa da Frelimo. Já escrevi em tempos que expressões como “a Frelimo não brinca”, “a Frelimo é macaco-velho”, “a Frelimo não quer isso” documentam esta convicção. Criou-se, no nosso imaginário, uma ideia impossível e fantástica da Frelimo que faz de tudo quanto acontece no País uma espécie de apoteose da sua vontade. É uma ideia que, curiosamente, explica o que é mau, mas não consegue dizer porque um partido tão coeso, forte, firme e visionário como a Frelimo o é no nosso imaginário, não consegue acabar imediatamente com o espírito do deixa-andar, pobreza absoluta, conflitos internos, crime e tentativas de fuga de Anibalzinho.
Na verdade, a explicação é simples na perspectiva da teoria da conspiração. As coisas que a Frelimo não “consegue” resolver são aquelas cuja existência é do seu interesse. Assim, o espírito do deixa-andar continua para Guebuza poder continuar a criticar Chissano; a pobreza absoluta continua para a Frelimo poder se apresentar como único partido com soluções; os conflitos internos continuam para a Frelimo poder mostrar que é mais democrática do que a Renamo; o crime reina em Maputo para a Frelimo distrair as atenções do público da corrupção ao nível mais alto; finalmente, Anibalzinho é encorajado a fazer tentativas de fuga para a Frelimo poder mostrar que é séria na sua intenção de o manter na prisão. Isto, conforme disse mais acima, é superstição.
O que este tipo de análises revela é uma falta de interesse no que realmente conta para se descrever e analisar fenómenos sociais. O que conta em minha opinião é a própria realidade social, as pessoas que agem dentro dela e os efeitos do que elas fazem. Os estudos aludidos mais acima bem como a opinião generalizada no País revelam, no fundo, uma incompreensão assustadora da realidade social moçambicana, dos seus actores e dos efeitos da sua acção. Sem essa compreensão é difícil encontrar explicações que não se alimentem das teorias de conspiração. Mas pior do que isso, e espero não ser demasiado denso na minha explanação, a prioridade que damos à conspiração é que é responsável pelo poder da Frelimo. Dito de outro modo, as nossas explicações são profecias auto-poéticas, isto é vaticínios que por força da nossa própria crença se tornam verdade. De tanto acreditarmos no poder da Frelimo atribuímos a ela tudo quanto acontece no País e, por via disso, transformamos as nossas próprias crenças na prova da realidade. Os nossos receios, digamos, são a prova dos nove do que não entendemos. Mas há mais. As nossas profecias não só são auto-poéticas como também nos condenam à paralisia. De tanta omnipotência para que vale a resistência? Muitos resignam-se. Os estrangeiros que nos vêm ajudar agitam-nos com outras profecias, nomeadamente a profecia de que a única saída é a guerra. Espero estar a conseguir transmitir quão perigosos são os hábitos de pensar mal. O líder da Renamo tem se desdobrado perigosamente com ameaças de um retorno à guerra caso a “Frelimo” continue a fazer as suas “brincadeiras”.
Não me parece útil analisar a nossa situação política a partir do pressuposto segundo o qual o que anda mal seria no interesse da Frelimo. Por acaso, até, existe um livro dos anos noventa escrito por Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz com o título eloquente “Africa works – disorder as instrument” (A África funciona – A desordem como instrumento), que dá respeitabilidade académica a esta forma de pensar. Os autores defendem, na verdade, a tese de que a desordem característica dos sistemas políticos africanos é funcional aos interesses dos que a produzem. A desordem, por assim dizer, é propositada.
Ora, esta é uma abordagem problemática porque reduz a complexidade dos fenómenos sociais africanos a um conluio que só tem existência nos quadros de referência teórica que se usam para apreender o continente. Precisamos de maneiras de perceber que circunstâncias, interesses, acções e processos sociais se aliam para produzirem situações que tornam a desordem ou mesmo o conluio possíveis. A mera suposição de que a Comissão Política da Frelimo se sente para discutir como subverter a justiça não é suficiente para fazer isso. Precisamos de maior sofisticação, maior distância analítica e, naturalmente, de coragem para resistirmos ao canto sedutor da explicação supersticiosa.
O Poder da Frelimo – Um Equívoco Colectivo (3)
Vamos ver se conseguimos pensar menos mal partindo do pressuposto de que a Frelimo não existe. Isto é para tirar o medo. A Frelimo não existe, prontos, e se não existe, então não pode haver poder da Frelimo. Guebuza, Chissano, Marcelino dos Santos, Manuel Tomé, Alberto Chipande e tantos outros não existem. É importante partirmos deste pressuposto para podermos avançar na análise. Então, nem a Frelimo, nem estas pessoas existem, o que existe é Moçambique e nós, claro. Estou a imaginar Moçambique como o nosso quotidiano e as coisas que temos que fazer para não acordarmos mortos – isto é xangane – no dia seguinte. Temos que ir trabalhar – honesta ou não, pouco importa; temos que tratar formalidades; temos que comer. Estas três coisas bastam.
Para irmos trabalhar precisamos de emprego – ou, no caso dos ladrões, de ocasião. Se não temos emprego perguntamos porquê; se a polícia dorme, no caso dos desonestos, damos graças a Deus. Para tratarmos formalidades precisamos de conhecer as regras e normas; se não as conhecemos procuramos informarmo-nos. Para comermos precisamos de comida na mesa; se não temos comida na mesa procuramos saber porquê. Em tudo quanto fazemos no nosso dia a dia partimos da normalidade. Se as coisas andam normalmente, não nos preocupamos. Damos o mundo por adquirido. Só quando as coisas caiem fora do normal é que ficamos inseguros e começamos a procurar por uma explicação. A violência que cometemos na nossa esfera pública é de reduzir a complexidade da nossa vida a explicações que não nos ajudam em nada a resolver os problemas imediatos que temos. Com efeito, a nossa tendência natural é de responder às perguntas sobre o problemático no nosso quotidiano com o mais fácil e menos útil: a Frelimo. Não temos emprego por causa da Frelimo; não somos atendidos por causa da Frelimo; não comemos por causa da Frelimo.
O mundo é complicado. Não temos emprego porque a economia não anda, porque não temos formação adequada, porque há candidatos melhor formados, porque as instituições de direito funcionam mal, porque os funcionários públicos são nepotistas, porque somos preguiçosos, porque no último emprego que tivemos desviámos fundos públicos, etc. Cada uma destas razões encerra várias outras. Por exemplo, não temos emprego porque a nossa formação não é adequada porque o curso pós-laboral que fizemos numa universidade da praça foi mal-concebido, os professores estavam mal preparados, perdemos muitas aulas por causa de tolerâncias de ponto espontâneas ou porque confiámos no facto de termos costas quentes para passarmos de classe. Estou a tentar transmitir a riqueza da realidade social ao mesmo tempo que alerto para os perigos da simplificação. É verdade que é mais fácil responder a todas estas perguntas com recurso à Frelimo. E isso é, para mim, recusa de pensar.
Está bem. A Frelimo na verdade existe. A sua existência é necessária. Precisamos de um fundo de projecção dos nossos receios, incompreensões e insuficiências. A nossa necessidade é uma espécie de patologia. Precisamos da Frelimo para explicarmos as coisas da vida com recurso ao destino. É como o Deus dos crentes hostis à razão. Tivémos acidente porque Deus quiz; escapámos graças à Sua vontade. Nós próprios não temos nenhum protagonismo, somos apenas marionetas. É assim que funcionários mal formados ou que fazem mal o seu trabalho procuram compensar isso com uma maior aproximação à “Frelimo”; chefes que não entendem o que estão a fazer – e isto inclui mesmo os formados ao nível universitário – compensam as suas lacunas com recurso ao argumento de que os seus erros são no interesse da “Frelimo”; profissionais que não sabem como proceder num contexto institucional pouco claro ao invés de clarificar as regras burocráticas reflectem mais no que é do interesse da “Frelimo” e agem de acordo com as conclusões que eles tiram desse exercício; pessoas que doutro modo não teriam lugar na academia, no ministério, na empresa e por aí fora cultivam as suas credenciais políticas para caírem nas boas graças da “Frelimo”; juízes, advogados e polícias com pouco brio profissional paralisam o sistema jurídico e judiciário com a falsa suposição segundo a qual a resolução de um caso iria prejudicar a “Frelimo”.
A “Frelimo” é um grande equívoco colectivo. Serve para dissimular a mediocridade, a falta de brio profissional, a ausência de coragem cívica e intelectual e contribui grandemente para paralisar o País. Durante o simpósio sobre a vida e obra de Samora Machel ouvi pessoas que trabalharam com ele a falar de como ele podia decidir espontaneamente que uma lei deixasse de existir; a sala toda ria-se nostalgicamente e nenhum de nós tinha a coragem de dizer que foram juristas com falta de brio profissional e integridade intelectual que deixaram coisas dessa natureza se passar; ninguém se sentiu incomodado com essas manifestações de desprezo pela legalidade. Como havíamos de nos sentir? A “Frelimo” queria assim. Um veterano da Frelimo entendeu mal a minha comunicação durante o mesmo simpósio, o que é natural, e discordou, o que é também natural. Uma participante esclareceu-lhe o equívoco e a coisa passou. Contudo, muito tempo depois fiquei com calafrios só de pensar que no glorioso passado que estivemos a pintar naquele simpósio, o mal-entendido teria sido uma razão forte para eu ser punido, no interesse, é claro, da “Frelimo”. Teria sido punido pela minha “indisciplina”.
A falta de clareza sobre o que a Frelimo é constitui uma das razões principais por detrás do tipo de desmandos que caracterizam a acção política no País. Não é conspiração. É um equívoco colectivo.
O Poder da Frelimo: Libertar a Frelimo (4)
Em minha opinião, a Frelimo está duplamente presa. Uma abordagem analítica dos nossos problemas políticos tem que partir deste pressuposto. No fundo, não é a Frelimo que tem o País nas mãos, mas sim o contrário. A análise dos nossos problemas só vai poder ser útil se tivermos a coragem de libertar a Frelimo de si própria e de todos nós. A Frelimo prisioneira de si própria é aquela que confunde a sua sorte com o destino do País. Essa Frelimo, na verdade pessoas de carne e osso, não vêem mal nenhum em usar o poder do Estado para cimentar o seu ascendente sobre a sociedade. Essa é a Frelimo dos medíocres, incompetentes e oportunistas. Essa Frelimo, na verdade essas pessoas, adoram a intransparência e a confusão institucional porque só assim conseguem dissimular as suas próprias insuficiências. Essa é a Frelimo dos que usam fundos do Estado para fazer trabalho do partido; dos que atribuem concursos de empreitada às empresas que mais contribuem para os cofres do partido; dos funcionários públicos que afixam anúncios descarados a informar sobre a sua ausência do local de trabalho em serviço do partido. Dos que têm medo de dizer o que pensam com receio de estarem a criticar a “Frelimo”.
Trata-se de uma “Frelimo” que documenta o País que somos. Somos um País com características muito específicas, a principal das quais é a nossa dependência do auxílio externo. A lógica política, mas também a lógica individual consistem, neste tipo de contexto, na instrumentalização desse auxílio. A classe política faz tudo para estar em conformidade com as exigências desse auxílio, muitas vezes não por convicção política, mas por conveniência pessoal. Nós os outros estamos à espreita de oportunidades, sejam elas consultorias, projectos ou mesmo empregos bem pagos. Para esse efeito, estamos preparados para dizer seja o que for que seja do agrado dos que nos ajudam. Convicções não contam muito. E se contam, ajustamos as nossas. Somos também um País em que o controlo do Estado determina o acesso a todo o tipo de recursos. Assim, muitos de nós alinhamos o nosso posicionamento pessoal de acordo com os que detêm o poder do Estado. Há lugares em Concelhos de Administração por distribuir, há direcções em ministérios, há ministérios, há projectos, etc. Neste ambiente dominado pela preocupação do “ter” – material – e no qual o “ser” – convicções – desempenha apenas um papel secundário – e é visto com hostilidade por muitos – não admira que haja muitos oportunistas que investem na ideia de uma Frelimo forte apenas com o intuito de tirar benefício individual.
O tipo de Frelimo em que essas pessoas investem precisa de se libertar de si própria porque a longo prazo os ganhos obtidos agora não vão perdurar. Serão ganhos píricos, isto é serão feitos à custa da destruição do próprio partido e do País. E para não dar a impressão de que estou a desfiar uma teoria de conspiração, apresso-me a dizer que a Frelimo prisioneira de si própria é uma Frelimo que é palco de conflitos internos, forças centrífugas e visões contrárias. É uma Frelimo que por receio do debate interno de ideias faz vista grossa às irregularidades e considera conveniente o que não prejudica o partido, mesmo se prejudica o País. Essa é, com efeito, a Frelimo generalizada, a Frelimo que está em cada um de nós. Quantos de nós preferimos a regra e norma burocrática ao espontâneo, familiar e partidário? Quantos de nós estamos preparados e dispostos a deixar passar para a frente o que é mais competente, tem maior brio profissional e se preocupa com a sorte dos mais fracos na sociedade? Uma ilustração simples disto é um sítio qualquer de atendimento público. Toda a gente que lá chega, mas toda sem excepção, passa imediatamente para a frente ignorando todos os outros.
Existe, contudo, também uma Frelimo prisioneira de todos nós. Essa é a Frelimo normal que não pode agir no seu próprio interesse. É uma Frelimo paralisada pelas nossas exigências. A preocupação do Presidente Guebuza em reforçar a Frelimo é legítima. Governar significa gerir o País em nome de ideais representativos do projecto que determinados grupos dentro da sociedade têm em relação ao País. O dilema enfrentado por Guebuza, contudo, consiste na expectativa irrealística de muitos observadores nacionais e estrangeiros de que ele faça isso sem prejudicar a oposição. Na verdade, o perigo que a nossa democracia enfrenta não vem do reforço da Frelimo – que me parece necessário e oportuno – mas sim do facto de que o reforço da Frelimo põe a descoberto um dos grandes equívocos dos últimos anos, nomeadamente a ilusão de que a Renamo alguma vez representou um projecto político coerente e claro.
Tudo quanto pode servir de referência para avaliar a génese da Renamo indica com alguma segurança que ela foi coisa de bandidos. Opositores sensatos da Frelimo como Domingos Arouca ou Máximo Dias trataram de se distanciar dela assim que chegaram à mesma conclusão. As dificuldades que a Renamo tem em corresponder aos anseios dos muitos moçambicanos que decidiram depositar a sua confiança nela revelam justamente as linhas pelas quais este equívoco se coze. Portanto, manietar o reforço da Frelimo ao destino deste equívoco parece-me igual a hipotecar o destino do País à sorte de gente que não sabe de onde vem, nem para onde quer ir. Libertar a Frelimo de si própria, contudo, significa saudar o esforço do seu reforço para que se torne num verdadeiro partido, isto é numa entre várias forças políticas, comprometido com uma separação clara entre o partido e o Estado.
O Poder da Frelimo – Bons males (5)
Ouvi Teodato Hunguana, membro do Conselho Constitucional, há algumas semanas a dizer que o País precisa de uma terceira força. Esta observação, vinda de uma pessoa que faz parte dos altos círculos da Frelimo, devia dar de pensar aos que privilegiam teorias de conspiração. Mas mais do que isso, a ideia documenta o desmoronamento da ilusão de uma oposição política da Renamo no País. As negociações e o Acordo de Roma é que fizeram a Renamo, dando-nos a impressão de se tratar de uma oposição política coerente. Os “trust funds” bem como a facilidade de ingressar em movimentos internacionais com rótulo político, a saber “democracia cristã”, conseguiram durante muito tempo camuflar essa impressão. O que os fundos externos e do Estado lograram fazer nos anos que se seguiram ao Acordo de Paz não foi transformar a Renamo num partido político, mas sim numa rede clientelista cuja lógica de actuação não é necessariamente a solução dos problemas do País, mas sim a sua própria sobrevivência parasita. Contrariamente ao que eu próprio pensei durante muito tempo, o enfraquecimento da Renamo não é algo necessariamente mau para a nossa democracia. Pode ser até uma benção.
Esse enfraquecimento não é, portanto, mau, mas a fraqueza da oposição, em geral, é. Há diferença. E é esta diferença que alguns estrategas da Frelimo ainda não perceberam, salvo a honrosa excepção de Teodato Hunguana. Da mesma forma que o Acordo de Roma criou a Renamo, ele contribuíu bastante para criar a impressão de que a captura do Estado por meios legítimos conferia prerrogativas ilimitadas ao vencedor. Isto tem um pouco a ver com a própria lógica das negociações de Roma. Enquanto que a Renamo vendeu a guerra em troca do reconhecimento político – e fundos para transformar a sua nomenclatura em chefes patrimoniais – a Frelimo vendeu a guerra em troca da promessa de captura do Estado que recebe auxílio ao desenvolvimento. Os doadores compraram e hoje se queixam. O que alguns estrategas da Frelimo ainda não perceberam é que a existência de uma Frelimo coerente e forte depende de um contexto social e institucional são.
O contexto social é são quando a intervenção política responde a interesses existentes na sociedade. Nenhum partido pode representar todos os interesses numa sociedade. É contraditório. Partido não é o todo. É parte. A Frelimo, portanto, tem que definir que interesses quer representar e defender no nosso País. As teses ao Nono Congresso, infelizmente, não fizeram isso, mas isso é outro assunto. O desiderato de uma representação universal cria incoerência e espaços de arbitrariedade. Ao lado dos esforços actuais da Frelimo de se afirmar na sociedade podem ser observados problemas de interesses divergentes no seu interior que só são resolvidos à custa da reprodução de um contexto institucional intransparente. Isto é uma outra maneira de dizer que os problemas de confusão entre Estado e Partido, corrupção, impunidade e indiferença constatados pelos vários estudos mencionados mais acima não são o resultado de uma conspiração obscura de forças invisíveis. Eles são o resultado de processos sociais concretos que podem ser descritos e analisados. Nem todos os membros da Frelimo se sentem à vontade com a proximidade de certos círculos de negócios; igualmente, nem todos os círculos de negócios se sentem à vontade com a dependência desta proximidade para se fazerem coisas. Este ambiente cria cumplicidade, não conspiração.
O País está a ficar cada vez mais maduro para o surgimento de forças sociais interessadas na transparência. E isso é bom porque a transparência tem que resultar de um impulso vindo do interior da sociedade. Os homens de negócios de Nampula que perdem um concurso em Maputo começam a ver que o melhor para todos deviam ser regras claras e transparentes, e não só a cunha. O ministro que tem que outorgar um concurso à empresa que melhor oferta faz, começa a ver que se protege melhor do empresário que paga para os cofres do partido com recurso às regras. O técnico no ministério convence melhor o seu ministro da necessidade de dar licença a quem de facto pode explorar um determinado recurso – por exemplo, peixe – quando sabe que tem certos padrões de qualidade que tem que observar – por exemplo da União Europeia – e que um veterano qualquer por aí não pode.
Um partido forte e quase que invencível não é incompatível com a democracia. A experiência de muitos Países com democracias maduras já revelou isto. Nos Países escandinavos, por exemplo, os partidos sociais democratas dominaram a política durante décadas. Mesmo um ambiente político confuso não é incompatível com a democracia. A Itália só recentemente é que começou a clarificar a sua esfera pública. Dito de outro modo, a tendência de monopartidarização que muitos estudos e muitos observadores constatam em Moçambique não é necessariamente má. Em minha opinião, Guebuza faz muito bem em reforçar a Frelimo. De igual modo, se esse reforço implica o enfraquecimento da Renamo, tanto melhor, desde o momento que o reforço não consista essencialmente no enfraquecimento consciente da oposição. Para que isso aconteça, é necessário ter em conta, porém, que esse reforço deve ser acompanhado do fortalecimento das instituições estatais com regras transparentes e previsíveis. Fazendo isso, não haverá nenhuma necessidade de “criar” uma terceira força. A terceira força será a própria transparência
O Poder da Frelimo – Sibindy (6)
O lado grotesco do Nono Congresso da Frelimo foi a presença de Yaqub Sibindy. Foi grotesco por um político evidentemente inepto como o líder do PIMO ter conseguido enrolar uma parte da Frelimo, um partido cheio de políticos de grande calibre. A forma como o partido da Maçaroca e do Batuque lidou com este assunto, o destaque que deu à contribuição financeira que ele fez para a realização do Congresso e a pompa com que o acolheu em Quelimane deram indicações daquilo que alimenta os receios de muitos, segundo os quais o País estaria a enveredar pela via do monopartidarismo. A Frelimo tem todo o interesse em encorajar formas constructivas de oposição, mas a forma como esse encorajamento é feito precisa de ser interpelada.
Com efeito, em total contraste com a forma como o Presidente Guebuza tem lidado com a Renamo desde que assumiu a Presidência – reduzindo o contacto ao mínimo necessário e sem privilégios especiais para o seu líder, assumindo a confrontação parlamentar e não cedendo sequer um passo na discussão de questões centrais da vida do País, medidas estas, aproveito dizer, absolutamente necessárias à evolução da nossa democracia nascente – o Congresso reagiu a Sibindy com a impressão de que a preferência da Frelimo não é pelo jogo democrático, mas sim por uma oposição dócil, sem coluna vertebral e sem sentido de direcção. A atitude da Frelimo lembra o gesto de um rico que aceita esmola de um pobre. Sibindy é capaz de ter enrolado a Frelimo ao mostrar que com um pouco de dinheiro é aparentemente possível ganhar a aquiescência do partido e que uma oposição só é construtiva quando se submete.
Oposição não significa, obviamente, hostilidade. Uma democracia não é necessariamente sã só quando os partidos não se falam, não estabelecem alianças, endurecem posições e não se desejam boa sorte. Com efeito, a democracia precisa de um espaço amplo de debate e troca de ideias na base de posições claras e enformadas por um compromisso com a ideia que cada um tem do que o País deve ser. A trajectória política de Yaqub Sibindy bem como o perfil político do partido que dirige nunca deram indicações de se tratar de uma força política com posições claras. Para além de demonstrar com a maior clareza possível o tipo de força política que o nosso País tende a produzir, Yaqub Sibindy e o seu PIMO são o exemplo claro daquilo que um político e um partido político não deviam ser.
Agora, a questão que se coloca é de saber quem dentro da Frelimo achou que estivesse a prestar um serviço ao partido e a Moçambique dando o destaque que se deu a Sibindy. Porque ninguém teve o bom senso de agradecer a oferta financeira, recusá-la e aconselhar Sibindy a investir os 17 mil Mtn directamente no combate à pobreza? Porque ninguém teve a ideia de aproveitar a atitude de Sibindy para reafirmar a posição da Frelimo em relação ao tipo de democracia que quer para o País? Que ganhos políticos é que alguns estrategas da Frelimo acham ter logrado com este espectáculo grotesco? Que argumentos trocaram entre si para decidirem que era do interesse da Frelimo aceitar a oferta e dar espaço de intervenção a este “político”?
Estas interrogações conduzem directamente ao tipo de conclusões que dão sustento aos receios de monopartidarização. Na verdade, o caso Sibindy mostra de forma desconcertante que algumas pessoas dentro da Frelimo têm uma concepção muito problemática de democracia, da oposição e do seu próprio papel no País. A ideia de democracia que parecem ter é de um espaço público feito de aquiescências. Há-de ser, de certeza, esta ideia que faz com que membros com capacidade de pensar no interior da Frelimo não se notabilizem pelo uso dessa faculdade. Há-de ser por causa desta ideia que muitos jovens ambiciosos e cheios de potencial e energia se juntam à Frelimo ou ao aparelho do Estado com a convicção forte de que o seu contributo consiste em dizer sim a tudo desde que singrem.
A concepção de oposição que têm é de gente subserviente que reconhece o papel dirigente da Frelimo. É daí que uma reflexão divergente do que a maioria no interior do partido pensa corra o risco de ser interpretada como um ataque. Esta concepção há-de explicar, de certeza, a fraca qualidade dos debates de fundo durante o Congresso. Na verdade, a vontade e determinação de combater a pobreza não se documentaram por um debate sério sobre o tipo de medidas que são necessárias para esse efeito. Não vi nenhuma reportagem sobre estratégias diferentes de combate a essa pobreza que tivessem sido alvo de acalorados debates nesse encontro. A qualidade do debate teve o nível que as reclamações do quotidiano têm. O exemplo disso foi a intervenção da Ministra do Trabalho Helena Taipo; foi também, curiosamente, a de Sérgio Vieira. Digo curiosamente porque, apesar disso, foi para mim, das melhores e mais profundas intervenções que houve durante o Congresso, tendo pecado justamente por abordar as questões ao nível do senso-comum.
Finalmente, a ideia que algumas pessoas dentro da Frelimo têm do seu próprio papel no País é de uma profunda identidade entre partido e Estado. Para eles a discussão sobre a governação do País constitui uma contribuição para os esforços da Frelimo de desenvolver o País. A Frelimo é o mar onde desaguam todos os rios. Não é um dos rios que vai desaguar no mar que é o Estado. É o contrário. Este tipo de atitude cria espaço para a intransparência, abuso do poder e prepotência, males, diga-se de passagem, que a Frelimo nos gloriosos tempos já tentou combater. É deprimente que um “político” do calibre de Sibindy tenha ajudado a expor estes problemas. Espero que Sibindy não escreva no jornal Zambeze que foi tudo uma farsa, que queria apenas demonstrar claramente que tipo de partido é a Frelimo... Os que se riram dele, riram-se cedo demais.
O Poder da Frelimo – “Académicos” e políticos (7)
É difícil não dar razão a Machado da Graça quando na sua “Talhe da foice” no Semanário Savana suspeita que o combate à pobreza seja apenas um acto de constrição por parte de pessoas que enriqueceram à custa dos pobres. Na verdade, o problema da ênfase que o Presidente Guebuza dá ao combate à pobreza como grande objectivo da sua governação é bem mais profundo. Embora louvável e em sintonia com os grandes Objectivos do Milénio, a ênfase no combate à pobreza é sintomática de algo que se tornou óbvio no decurso do Nono Congresso, nomeadamente que a Frelimo não só deixou de ser partido de operários e camponeses – se é que alguma vez foi – como também, e mais grave, que os intelectuais perderam muito do protagonismo que tiveram no passado. Não há novos Eduardo Mondlane, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro, Luís Bernardo Honwana, Sérgio Vieira. Só há intelectuais orgânicos que sabem dizer quem não faz parte, mas aparentemente não fazem a mínima ideia donde querem levar o País.
Dito de outra maneira, estão a fazer falta à Frelimo pessoas que formulem projectos de sociedade e articulem-nos com a leitura que fazem da sociedade moçambicana. Se como refere Machado da Graça o grosso dos participantes ao Congresso consistiu em gerentes de empresas e funcionários públicos, isso é porque a Frelimo, na verdade, é um partido gestor, um partido sombra do seu próprio passado quando, mesmo que privilegiando ideologias problemáticas e aventureiras, se definia por um projecto claro e coerente de sociedade. O engraçado nisto tudo, todavia, é que volvidos 30 anos da independência que a Frelimo conquistou, o País dispõe de muita gente formada ao alto nível, a maioria da qual até é militante do partido. Praticamente, todo o intelectual digno desse rótulo é membro da Frelimo. Contudo, a julgar pela fraca qualidade do que o partido propõe como visão para o País, esses intelectuais não têm nenhum protagonismo nas suas hostes.
Escrevo isto com um pouco de trepidação, pois já alguns “colegas” me qualificaram de pretencioso e arrogante. Suponho que me critiquem por preferir falar e escrever de acordo com o que considero mais em sintonia com os hábitos académicos de reflexão do que alguns deles que, desonrando a academia a que dizem pertencerem, preferem das duas uma: calarem-se ou dizerem o que acham ser mais do agrado dos que detêm o poder. Não quero com isto dizer que todo o académico deva escrever para os jornais, pois o trabalho académico não consiste nisso. Nem quero dizer que toda a gente com título académico seja académica. Na verdade, a reflexão que faço aqui é para distinguir precisamente isso e dar a devida importância às pessoas detentoras de títulos e que decidiram dedicar o seu conhecimento ao serviço do trabalho prático e técnico. Refiro-me apenas àqueles que fazem política com o cunho de académicos quando na verdade são meros técnicos e burocratas. A política e a academia são coisas diferentes. São poucas as pessoas que podem conseguir conciliar as duas coisas. Não obstante, isto não significa que os académicos não devam ter preferências políticas, muito menos que não sejam militantes de um partido. Contudo, se forem militantes e continuarem a querer fazer parte da academia eles devem ter a coragem de fazer aquilo que identifica um académico, nomeadamente contribuir com o seu pensamento crítico para uma melhor formulação dos problemas, mesmo se as conclusões a que chegarem puserem em questão preceitos importantes do partido.
O político, já disse isto uma vez apoiando-me num sociólogo alemão, Max Weber, olha para os fins. Para lá chegar qualquer meio, em princípio, serve, desde o momento que o leve lá. O académico, em contrapartida, olha para os meios e pergunta se são os mais adequados para os fins propostos. Ao fazer isso, coloca à disposição do político todas as possibilidades que se abrem ao se tomar uma decisão. O Nono Congresso, por exemplo, reconfirmou o combate à pobreza como grande objectivo do partido. Decidiu também que um dos meios para lá se chegar era o slógan “decisão tomada, decisão cumprida”, algo que mereceu a crítica atenta de Machado da Graça.
Portanto, o Congresso parece ter decidido que o problema principal enfrentado pelo País é o não cumprimento das decisões tomadas. O que disseram os “académicos” militantes da Frelimo? Bateram palmas? Acenaram forte com a cabeça? Gritaram vivas? Ou interpelaram a qualidade das decisões tomadas? Fizeram isso? Procuraram saber como é que as decisões são tomadas? Interrogaram-se sobre o contexto em que decisões são tomadas? Perguntaram se essas decisões correspondem a uma leitura coerente do País real? Indagaram-se se essas decisões contêm dentro de si a visão do que o País deve ser? Puseram decisões em relação com leis? Perguntaram se a ideia de “decisão” é compatível com um sistema democrático?
Duvido imenso. E isto é preocupante. A falta de consenso sobre o que a Frelimo é e, sobretudo, sobre o que o seu poder é, conduz-nos a uma situação em que pseudo-académicos interpretam o papel da academia no País como sendo o de utilizar os seus títulos para dar legitimidade a posições políticas. Confundem a crítica com oposição e tornam o pensamento e a produção de conhecimento em artefactos mercenários da sua própria esquizofrenia: “académicos” e políticos. Bom, pelo menos nunca estarão sozinhos. Usam considerações materiais como critérios de avaliação da plausibilidade do que diz quem quer pensar de forma crítica. Se eu critico a ênfase no combate à pobreza, o “académico” não procura saber que argumentos tenho; ele quer saber em graças de quem eu quero cair. A ideia de que a reflexão possa constituir um fim em si próprio não cabe no seu entendimento do papel de um académico.
Políticos o nosso País já os tem em número suficiente. Académicos, contudo, isto é, pessoas comprometidas com a verdade e com o fomento deste País por via da reflexão crítica, esses fazem ainda muita falta. Moçambique não vai deixar de existir ou de resolver os seus problemas porque os “académicos” foram ao Nono Congresso. Mas se esses académicos assumissem o seu papel, o País poderia lograr todos os desafios com mais opções. Era tão bom que eles tomassem a decisão de serem académicos ou políticos e... cumprissem-na.
O Poder da Frelimo – Técnicos e decisões tomadas (8)
Do ponto de vista da sociologia, a política é um conceito pouco útil. Não é algo que possa ser definido com utilidade antes do trabalho preliminar de saber o que se passa em torno do que as pessoas chamam de política. Aos sociólogos interessa o poder, o seu exercício e as suas implicações. Depois disso feito, é possível definir a política. Noutros termos, a política constitui-se na relação entre o poder, seu exercício e sua continuidade no tempo. Poder, no seu estado bruto, é simplesmente a possibilidade que algumas pessoas têm de fazerem outras pessoas cumprirem a sua vontade contra a sua própria vontade. Nesta acepção, a noção de poder ainda não tem grande interesse sociológico. Começa a tê-lo quando olhamos para ela do ponto de vista da dominação, isto é de uma relação social em que uns podem impor a sua vontade a outros que consideram essa imposição justa. Aí sim, já temos algo sociologicamente interessante, pois já estamos a falar de autoridade e legitimidade.
A dominação pode assumir várias formas, todas elas presentes em maior ou menor grau na nossa experiência histórica. Segundo o sociólogo alemão Weber que se debruçou sobre estas coisas com muita atenção, a dominação pode ser (i) tradicional, isto é quando se legitima a partir do que é consuetidinário; pode ser (ii) carismática, isto é quando se legitima a partir de qualidades tidas como sendo excepcionais e sobrenaturais de um líder político. Samora Machel ou Afonso Dhlakama são exemplos claros disso em virtude das suas qualidades militares; finalmente, a dominação pode ser (iii) jurídico-racional quando assenta num conjunto de normas codificadas e executadas por um corpo especialmente formado para esse efeito.
Não quero transformar o artigo numa introdução à sociologia política. Interessava-me apenas chegar a este ponto onde chamo a atenção do leitor para a importância que a legitimação desempenha no exercício do poder. É através dela que o poder ganha cunho social e se traduz em autoridade. O Estado moderno, e nesta categoria cabe também o nosso – define-se justamente pelo exercício de um poder legitimado constitucionalmente e que se manifesta no dia a dia das pessoas através da obediência a leis que respeitam o espírito dessa constituição. Num Estado moderno o exercício do poder não é arbitrário. Aproveito, desde já, para dizer que o poder não é apenas legítimo quando é democrático. Mesmo um poder dictatorial pode ser legítimo desde o momento que o seu exercício esteja em conformidade com a lei.
Neste esquema de coisas, a peça mais fundamental não é o chefe máximo. É o burocrata, ou para estar mais perto da nossa linguagem, o técnico. É o técnico que dá substância à autoridade garantindo que o exercício do poder esteja em conformidade com a lei. O chefe máximo, médio ou mínimo é chefe e tem autoridade em virtude do lugar que ocupa na máquina de exercício do poder. Naturalmente que o chefe precisa de ter qualidades excepcionais para chegar até onde chegou. Mas num contexto de Estado moderno, o seu poder só é legítimo quando exercido dentro dos preceitos legais. A lei é que é o soberano. Agora, é um pouco difícil transmitir esta ideia num contexto político e cultural como o moçambicano em que as noções tradicionais de autoridade – reforçadas pela atitude paternalista do poder colonial – e em que a socialização primária dos principais políticos foi feita em ambientes militares – com a sua exigência de disciplina – ou de exaltação carismática.
Não estranha, pois, que a cultura política dominante dê maior ênfase à lealdade ao chefe do que ao respeito pela legalidade. As características principais da dominação tradicional e da dominação carismática são, respectivamente, a confusão entre o privado e o público, e a preferência pelos que são leais ao chefe. O nosso sistema político tem elementos fortes disto, patentes na dificuldade que a Frelimo tem de se desligar do Estado e respeitar as suas instituições como bens públicos bem como nas dificuldades do líder do principal partido da oposição que prefere se fazer rodear dos chamados “yes-men” (homens que dizem sim a tudo). O Nono Congresso podia ter debatido esta questão, pois o assunto não é novo. Já nos anos oitenta, quando o fosso entre a vontade política e a realidade se tornara cada vez maior, a Frelimo decidiu que o problema residia no facto de a tecnocracia se ter tornado independente do partido. A conclusão a que se chegou na altura foi de que era necessário voltar a colocar o partido na direcção. Este é um assunto que merece ainda maior atenção e estudo. Um passo importante neste sentido foi dado por uma socióloga da UEM, Judite Chipenembe, que tenta perceber os meandros da burocracia em Moçambique. De qualquer maneira, um dos erros da análise feita pela Frelimo na altura foi de ter esperado uma burocracia dócil e eficiente num contexto em que o próprio poder político se notabilizava pela sua arbitrariedade e espontaneidade na condução dos destinos do País. A burocracia precisa de certezas.
O Congresso podia ter debatido como garantir que os técnicos façam o seu trabalho como técnicos. Para esse efeito, podia ter reflectido sobre como transformar as expectativas do partido em leis a serem cumpridas e executadas por técnicos. O slógan “decisão tomada, decisão cumprida” é sintomático da ausência deste debate. Num Estado de direito não são decisões que contam, mas sim leis. Sei que a questão é retórica, mas é importante para se perceber o que está em causa. Decisões têm a tendência de serem arbitrárias. Decisões são coisas do pelouro do poder na sua forma bruta, de um poder sem autoridade. As leis podem ser também arbitrárias, mas pelo menos proporcionam aos técnicos quadros seguros de referência. Leis conferem autoridade a quem toma decisões. A autoridade vem da lei. Logo, uma decisão que não é transformada em lei, dificilmente será cumprida. E se o respeito pela lei não constitui prioridade para quem toma decisões, então o técnico nunca vai ter a autonomia de que precisa para ser um técnico. O nosso País ainda tem um longo caminho a percorrer para incutir nos seus técnicos e políticos a ideia de que os técnicos estão ao serviço da legalidade.