— a opinião do historiador Elikia M’bokoloO Professor Elikia M’Bokolo, um historiador de origem congolesa, rege cadeiras em várias universidades estrangeiras, e é director de investigação no Centro de Estudos Africanos da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, autor de uma história de África em vários volumes e dirige o programa “Mémoire d’un Continent” na Rádio France Internacional.
A Revista Latitudes – Cahiers Lusophones publicou recentemente uma longa entrevista com ele, conduzida por Feliciano de Mira e D. Lacerda, da qual se extraíram as passagens que se seguem, e foram seleccionadas na base da sua relevância para a região da África Austral, especificamente para a África do Sul e Moçambique, e sobretudo por serem uma outra visão de problemas permanentemente em debate entre nós.
O Papel da História Como historiador, M’Bokolo respondeu à pergunta sobre qual podia ser o papel dos historiadores face aos problemas africanos, dizendo que tem uma visão optimista da história, e mais do que isso, considera-a ao serviço do progresso: “Os meus mestres, os meus referentes em história, como Marc Bloch, consideram que a história é uma ciência que ajuda o homem a ir para a frente.”
“Fazer história é também fazer um certo uso da história. O nosso papel deve contribuir para fazer avançar o continente africano. Trata-se de dar aos africanos confiança neles próprios, e de dar continuidade ao processo de descolonização. É uma ciência que pode ajudar os africanos a conhecer o seu próprio passado. Hoje, os jovens de 18 a 20 anos representam mais de metade da população de África, mas eles não conhecem África, senão desde 1990”.
“Acabo de lançar o primeiro livro da colecção África em todos os seus estados, que é uma tentativa para pensar os problemas do desenvolvimento num longo período de África como quadro de referência. A maioria das pessoas da Costa do Marfim, no Congo, etc., vive sobre as fronteiras, mas a ideia territorial actual não é definitiva. Hoje, no contexto da globalização e de reorganização de África, este quadro territorial a que nos agarramos, talvez não seja o melhor.”
A África do Sul como potência regional “África do Sul aparece como o país que tem o discurso mais positivo e os meios para realizar a sua política”.
O Professor M’Bokolo considera a África do Sul uma potência regional no contexto do continente e da África sub-sariana, porque “tem uma economia que, no quadro da leitura económica do mundo, parece responder aos critérios da verdade. Tem estabilidade política, uma vida política regulada, com eleições nas datas previstas. Tem alguns problemas sobretudo de corrupção, mas não são muito importantes. Possui igualmente um exército que é um dos mais poderosos do continente africano. A sua história militar remonta à herança Anglo-Boer e do apartheid. O exército permitiu combater a insegurança interna e externa, mas interveio também em Moçambique, no Zimbabwe e Angola”.
“Ao contrário de muitos outros países em África, o exército (da África do Sul) é equipado pela indústria sul-africana (…) A sua diplomacia também é antiga, porque desde os tempos do apartheid que já existiam aberturas para alguns países africanos. Nelson Mandela, que se retirou da vida política, continua a ter um discurso influente, e Tabo Mbeki soube retomar a iniciativa e utilizar em seu benefício o discurso do renascimento africano. Isto porque, depois a morte de Nyerere, de Houphouet-Boigny e outros, faltam em África grandes chefes com um discurso positivo. Sob este ponto de vista penso que não é apenas uma potência regional; e se houver um assento para a África no Conselho de Segurança, há fortes probabilidades que seja para ela.”
A região, o FMI e Banco Mundial e o fosso entre ricos e pobres Segundo M’Bokolo, a África Austral é a sub-região do continente mais bem sucedida em termos de comunidade política e económica, comparando-se favoravelmente com outras que mal funcionam como a CEDEAO (África Ocidental) ou a União do Magreb. No entanto, apesar da sua estabilidade, ele acha que é questionável que a África Austral seja um polo de desenvolvimento, e um dos seus Estados membros, o Zimbabwe, é o exemplo mais evidente dessa vulnerabilidade. (...) “Num país como o Zimbabwe, existem problemas de gestão económica e outros que são consequência da geografia, da seca e dos riscos devidos aos problemas alimentares”.
Por outro lado, ele pensa que a economia globalizada coloca desafios difíceis e a África do Sul, como Estado, corre o risco de ser “o lugar da polarização desta economia sub-regional com a economia mundial”.
Sobre Moçambique, diz-se surpreendido por o país ser apresentado como referência, porque “a imagem que tenho de Moçambique é de um país pobre, do ponto de vista de recursos materiais. No plano dos recursos humanos tem feito um grande esforço desde a independência para formar quadros, mas ainda não chegámos ao circulo virtuoso em que os recursos humanos são suficientemente fortes para produzirem uma economia moderna, que levaria ao ciclo de uma economia do conhecimento”.
Diz que a economia moçambicana é extremamente dependente dos investidores estrangeiros, principalmente sul-africanos, e critica os critérios da sua avaliação.
“O FMI e o Banco Mundial baseiam-se em critérios macro-económicos para dizer que tal país vai bem em relação a um outro, para avaliar o orçamento, os preços, o mercado, etc.. Mas hoje sabemos que essa não é a regra. O desemprego é muito grande em Moçambique; a insegurança não desapareceu completamente. Mas observa-se algo muito positivo: o optimismo das pessoas, que estudam muito. Os cursos nocturnos no ensino superior são um sucesso.
Todavia, tem-se a impressão de que a juventude moçambicana não vê uma perspectiva de futuro, o que é perturbador. O fosso entre ricos e pobres acentuou-se muito. As formas ostensivas da riqueza são hoje maiores do que há quinze anos; alguns gostam de exibir o que têm e dão a impressão de que estão hoje mais ricos do que eram em 1993. Pelo contrário, os outros são tão pobres e tão numerosos! Tudo isto põe problemas inquietantes, que não permitem fazer de Moçambique um modelo”.
Estado Unitário ou federal? Quando os entrevistadores lhe perguntam se concorda com os que dizem que Moçambique, sendo um país multi-identitário, devia ser um estado federal, M’Bokolo evoca o seu conhecimento directo:
“Moçambique é um destes países do Oceano Índico muito problemáticos. Recordo-me que, em 1993, numa conferência nacional sobre cultura, em Maputo, a questão da moçambicanidade levantou muitas questões. Será que este conceito corresponde à realidade?
Para alguns, que poderemos considerar como integristas culturais, Moçambique seria um país africano, negro e bantu. Isto põe muitos problemas. Será que a africanidade é uma identidade suficientemente forte?
A bantuidade, o facto de falar determinadas línguas, é uma identidade suficientemente forte para definir um povo? Junto com outros, tentei demonstrar que há uma pluralidade muito grande inscrita numa história muito longa. Não foi a colonização que introduziu a pluralidade”.
O historiador diz que em Moçambique não se pode falar de negros e brancos porque há outras componentes, que esta pluralidade é uma coisa boa para Moçambique, e que se devia explorá-la em vez de a ver como elemento negativo.
“Houve uma altura em que se manifestou uma significativa xenofobia contra os indianos. Na Universidade Eduardo Mondlane, assistiu-se a formas de xenofobia e racismo. E fomos muitos a dizer que se tratava de um desvio muito perigoso e em contradição com a aposta democrática de Moçambique. A democracia não é uma questão de raça ou etnia; em democracia não existem macrogrupos, mas sim indivíduos nos lugares onde vivem”.
Sobre o federalismo, afirma que nos países africanos pode ser boa uma estrutura federal que desloque algumas alavancas do poder para a base como garantia de democracia e que num Estado ainda recente e frágil, excessivo centralismo pode ser mau: “Moçambique visto de Maputo é absurdo”,
diz M’Bokolo, sublinhando que um poder significativo nas regiões pode ser bom, desde que não caia em critérios de exclusão étnica, “como uma zambezianidade na província da Zambézia por exemplo, onde a cidadania seria só para a gente da Zambézia. Tratando-se de uma cidadania nacional, as pessoas exercem-na no local onde vivem”. E conclui: “Muitos países africanos ainda não conseguiram organizar este federalismo. O da Nigéria tende a caminhar para o exclusivismo étnico”.
Oposição e DemocraciaA propósito dos maus resultados eleitorais da RENAMO, nas eleições de 1994, 1999 e 2004, depois de uma posição de força nas negociações que conduziram ao Acordo de Paz, e das consequências disto para a estabilidade do Estado e para a democracia, M’Bokolo diz que, “após os Acordos de Paz, esperava-se que Moçambique se quisesse soltar da coleira do partido único, e que as grandes formações políticas moçambicanas fossem suficientemente fortes para dialogar uma com a outra, e depois se passasse a uma verdadeira alternância política, permitindo à RENAMO e à antiga oposição não armada participarem no poder, ou talvez, exercerem o poder. As primeiras eleições multipartidárias permitiram à RENAMO ter uma forte participação. Depois, parece-me que surgiram vários factores, falo a partir do vivido. Primeiro, no interior da FRELIMO, havia muita gente que não achava que a FRELIMO devia deixar o poder”. M’Bokolo acrescenta que “existe uma espécie de discurso nacional em Moçambique, onde as pessoas consideram que o único partido legítimo é a FRELIMO de Mondlane e Machel que fizeram a guerra, etc.. Isto leva a desacreditar completamente os outros, sobretudo a RENAMO. A FRELIMO hoje está dividida em diversos grupos e esferas de influência, e a RENAMO atravessa dificuldades ainda maiores: está fraccionada em tendências e, ao contrário da FRELIMO, não conseguiu dotar-se de uma verdadeira elite intelectual (…) não conseguiu, desde 1993, agregar à sua elite politico-militar intelectuais que permitam credibilizar mais a RENAMO e dotá-la de um discurso e de um programa que correspondam ao Moçambique de hoje no lugar daquele que já tem 15 ou 20
anos”.
Sublinha ainda que “do lado da FRELIMO, estamos a ver esta elite a emergir, apesar dos velhos dinossauros marxistas lá continuarem a não querer mudar nada. Deste ponto de vista existe um verdadeiro perigo de Moçambique continuar um país de partido único. Isto é tanto mais grave quanto a oposição não-armada nunca conseguiu emergir. Talvez o factor étnico tenha aqui um papel. Como a oposição não está associada ao poder, falta-lhe material para se organizar e falta-lhe enquadramento.
Poderia haver individualidades fora das formações políticas, com prestígio suficiente para abalar o frente a frente RENAMO-FRELIMO, como professores universitários ou personalidades religiosas, mas isto ainda não se verificou. A tradição frelimista e marxista do intelectual orgânico sem dúvida continua a ter peso”.
Os intelectuais moçambicanos Sobre a intelectualidade em Moçambique, M’Bololo diz: “Discuti muito com intelectuais em Moçambique para saber se existiam mesmo intelectuais moçambicanos”, diz M’Bokolo. “Um intelectual assume uma liberdade de análise, de abordagem, de tom e de palavra. Esta postura ainda não se institucionalizou na sociedade moçambicana. Conhecemos romancistas, artistas, universitários muito talentosos, mas são todos pessoas que continuaram técnicos, especialistas na sua área. Era preciso que pudessem exprimir-se sobre os grandes problemas do país e dizerem certas verdades, por exemplo, que um Estado frelimista não pode persistir e mostrar os perigos disso! Que é possível fazer?
Ainda não chegámos aí. Temos técnicos do saber e da cultura mas ainda não há uma intelligentsia em tanto que tal. Entretanto em países como o Senegal, o Quénia, o Gana e a Nigária, vemos intelectuais a debaterem os interesses do país, a tomar posições e a fazer avançar a sua resolução”.
No que diz respeito às Ciências Sociais em Moçambique, M’Bokolo diz ter acompanhado a chamada crise da UFICS (Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais) da
Universidade Eduardo Mondlane, em 2000/2001, cujo desfecho acabou por reduzi-la a um
departamento da Faculdade de Letras da UEM.
Sobre este assunto, ele diz: “As ciências sociais em Moçambique têm uma história apaixonante porque estiveram misturadas com a luta de libertação. Em vez de se regozijar com isso, a FRELIMOcompreendeu que as ciências sociais podem ser subversivas.
Atemorizou-se e quis controlá-las e mesmo suprimir o seu ensino. As pessoas na Universidade bateram-se para lhes restituir o seu papel de ciência e de uma autonomia verdadeira. Os debates em torno do Centro de Estudos Africanos e da UFICS mostraram que o medo persiste, quando Moçambique tem a oportunidade de ter ciências sociais piloto, que ultrapassam a simples sociologia, a antropologia e o direito.
Mas estas disciplinas estão ligadas à história, à filosofia e põem a par os estudos no terreno e as discussões mais abstractas. Ora, nos países emergentes, a vantagem seria ter ciências sociais a um nível mais elevado, como em França e em certas universidades de excelência nos Estados Unidos, onde há uma mistura de especulação e de pesquisa no terreno e também entre os investigadores que são quer teóricos, quer empenhados na prática social.”
Que ele tinha a UFICS em grande estima reflecte-se no apelo para que ela seja autonomizada: “Pela sua história particular, Moçambique (e talvez Angola e a Guiné-Bissau) é um país onde se podia autonomizar a UFICS e fazer dela uma universidade de pleno direito, mais do que um Departamento da faculdade de Letras. Nesse caso estou quase certo que podia rivalizar com as melhores universidades da África do Sul. Para isso, é preciso que a FRELIMO renuncie ao atavismo de querer controlar a produção das ciências sociais – essa velha herança do marxismo estaliniano – e que, por outro lado, os universitários moçambicanos se assumam como intelectuais para quererem libertar-se do partido e do Estado e tornarem-se autónomos. Sem isso, o país manter-se-á num academismo bastante tradicional. África e Moçambique não precisam de um academismo que repete o que se faz em todo o lado, precisam sim de algo mais ambicioso, de inovar nas ciências sociais e empurrar o país para a frente”.
A sua visão para que Moçambique e a África, em geral, saiam da actual encruzilhada é um pelo “aos mediadores culturais e sociais, às elites e aos dirigentes africanos” para que se deixem de especular sobre a cooperação, negligenciando as questões da sociedade real. “Tudo separa as personalidades e a gente do poder que passam o tempo nos 4x4 e em casas climatizadas, assistindo às televisões mundiais, e um povo que se desenrasca sozinho. E se esta situação se mantiver, pode temer-se que a África atravesse o século XXI sem avançar um dedo”.
Edição de Maria de Lourdes Torcato (Extraído e traduzido de Latitudes –
Cahiers Lusophones nº 25)
SAVANA Maputo 230207