Pela importância que esta entrevista concedida ao Jornal Notícias tem, vou publicá-la neste blog na sua íntegra.
Retirada
daqui , eis:
Saio sem mágoa nem ressentimento - Joaquim Madeira, ex-procurador-geral da República, em entrevista exclusiva ao “Notícias”
SEXTA-FEIRA, nove horas da manhã, Joaquim Madeira, procurador-geral da República cessante, abre as portas da sua residência para uma conversa de uma hora e meia com o “Notícias”. Joaquim Madeira falou de tudo, desde os contornos que nortearam a sua nomeação, o desempenho da sua actividade, das sete vezes que teve de prestar contas no Parlamento, de longos anos de experiência, dos seus colaboradores, que nalgum momento se mostraram incapazes de acompanhar o seu ritmo de seu trabalho, ao ponto de se socorrer da dinâmica e vontade de singrar da camada jovem. Joaquim Madeira reconhece que não estava preparado para sair esta semana, mas, também, assume que estava consciente que ia deixar o cargo a qualquer momento.
NOTÍCIAS (NOT) - Como é que recebeu a notícia de que ia deixar o cargo?
JOAQUIM MADEIRA (JM) - O Senhor Presidente chamou-me e disse que tinha uma notícia para me comunicar. Que tinha decidido pela minha cessação de funções.
NOT - E daí, o que se seguiu?
JM - Fui ao meu gabinete e comecei a arrumar as minhas coisas, porque sabia que a partir daí nada mais podia fazer. Para além de que os órgãos de comunicação social começariam a espalhar a notícia. Não fazia mais sentido continuar a trabalhar. Arrumei as minhas fotografias e outros objectos pessoais e, quando passavam, das 13 horas, fui para casa.
NOT - Disse que sentiu uma sensação diferente, mas para o lado da felicidade. Porquê?
JM – Sabe, qualquer acção na PGR, não só em Moçambique, é pesada. Você tem que lidar com processos criminais. Na nossa sociedade multipartidária, quando o criminoso está ligado ao partido da oposição, diz-se que você está a perseguir a oposição. Quando o criminoso está ligado ao partido governamental, você está a defender o poder. Não é possível agradar a gregos e troianos. E, mais, os grandes “dossier´s” não era possível falar deles e muito menos responder às perguntas no Parlamento, onde fui sete vezes. É preciso frisar isso: nenhum procurador que me antecedeu esteve lá esse número de vezes. Portanto, estava aliviado, porque saía deste forno, desta luta contra mim próprio, de lutar a favor de uma justiça transparente. Justiça é verdade. Agora, a verdade também mata-nos.
NOT - Com isso quer dizer que o poder judicial fica limitado perante o político? Sentiu isso ao longo do seu mandato?
JM - É muito complicado. Vou dar alguns exemplos de fora. O procurador-geral de Portugal, Souto Moura, que passou mal quando o caso “Casa Pia” começou a tocar algumas pessoas influentes na vida política portuguesa. O que lhe aconteceu? Muita luta contra ele, pedindo a sua cabeça. Na África do Sul aconteceu o mesmo. O procurador era bom, mas caiu no descrédito quando instaurou aquele processo contra o vice-presidente sul-africano. Ele próprio contou-me isso quando nos encontrámos na China, que era impossível, se não infernal, trabalhar assim. Acabou sendo afastado do cargo. Não é que ele tivesse cometido alguma coisas, mas o ambiente político não era muito bom.
NOT - E no nosso caso, há ou não interferência?
JM - Estaria a mentir se dissesse que não acontece.
NOT – Desta forma, o dever profissional fica prejudicado?
JM - Infelizmente. Por dever profissional, você tem que dizer ou fazer algumas coisas, mas por algumas conveniência ou não diz ou tem que dizer de outra maneira. É uma vida um tanto ou quanto complicada. Qualquer procurador vai encontrar dificuldades de trabalhar. O meu amigo do Panamá estava a investigar um caso de 11 milhões de USD, que envolvia um antigo presidente e a vida política daquele país, passou mal. No Malawi foi a mesma coisa. Veja que nem havia sido ele a prender e processar um antigo presidente. Isso chocou o poder político, foi convidado a abandonar o cargo.
NOT - Uma vez fora do cargo, o que acha que deve ser feito para que a PGR trabalhe, de verdade?
JM - Primeiro, algumas coisas que nós tínhamos começado a fazer devem continuar. Repare que quando eu assumo o cargo, os próprios magistrados do Ministério Público não tinham estatuto. O lugar do MP era secundarizado. Em tempos, antes de se ser juiz tinha que se passar pelo MP. Hoje a situação mudou. O MP é paralelo à Magistratura Judicial. Só agora é que apareceu um estatuto e, diga-se em abono da verdade, fui eu quem contribuiu muito para isso. Segundo, é preciso recrutar mais gente. Quando eu cheguei, naquela casa não havia um único distrito com procurador licenciado. E, mais, haviam procuradorias provinciais dirigidas por procuradores não licenciados. Graças a este esforço, hoje todas as procuradorias provinciais e distritais estão nas mãos de licenciados. Para a minha felicidade, muitos dos jovens que optam pela magistratura do MP dizem que me querem seguir, porque sou carismático, embora não me considere isso. Às vezes perguntava-lhes por que optaram por seguir a magistratura, respondiam que devia-se ao facto de apreciarem o meu trabalho. As pessoas acreditavam em mim, no meu trabalho, desafio e na luta que travava para a melhoria da Justiça, embora essa luta não fosse para benefício pessoal, mas para o país avançar. Agora, aquilo que eu penso que pode ser feito para melhorar o sector, é preciso, primeiro, que todos os trabalhadores da Justiça sintam que a sua preocupação não é ganhar dinheiro à custa de processos. Na minha primeira intervenção como procurador, disse, publicamente, que não se pode combater a corrupção com corruptos. Quando no sistema judicial ou na área da Polícia ou MP, quer magistrados e funcionários, houver sinais de corrupção, o sistema não vai funcionar. Quando alguém pensar que para ganhar uma causa tem que pagar dinheiro ao juiz, escrivão, e estes pensarem que findo o julgamento vou receber isto ou aquilo, o que por vezes ocorre, as coisas não vão funcionar. É preciso melhorar o acesso à Justiça, onde as pessoas tenham facilidades de se aproximarem das instituições e apresentarem as suas questões. Se é rico ou pobre, a própria Constituição diz que a ninguém se pode negar justiça por causa das suas possibilidades. Se assim for, nós teremos uma justiça séria, credível e que vá de encontro com os anseios do povo.
PRESTÍGIO DA PGR CRESCEU
O COMBATE à corrupção foi sempre descrito pelo Governo como uma prioridade. Joaquim Madeira sempre disse que ninguém está acima da lei e que todos aqueles que se revelarem corruptos seriam julgados. A pergunta que lhe colocámos foi se o nível de corrupção que encontrou quando em 2000 assumiu o cargo, equipara-se ao que deixou, sobretudo dentro da instituição, onde alguns magistrados foram conotados como estando a vender processos a troco de somas avultadas de dinheiro.
JM - No sector da PGR, a corrupção reduziu drasticamente. Por causa da corrupção demiti e expulsei colegas. Nos outros sítios, em vez de serem demitidos ou corridos, transferem-se. Verifica-se uma dança de transferência de corruptos de um lado para o outro. Isso não é nada e, felizmente, no meu sector nunca permiti isso. Porque caí sobre os corruptos, acabei tendo problemas com alguns colegas. Alguns, ao saberem da minha saída, organizaram uma festa, e eu soube disso. Estes foram os corruptos que escaparam à minha vassourada, razão pela qual se sentem aliviados. É preciso reconhecer que fora e dentro do país o prestígio da PGR cresceu durante o tempo em que estive à sua frente. Não falo isso por orgulho próprio, mas pela quantidade de telefonemas que tenho recebido até aqui de pessoas a me elogiarem. Tanto dentro como fora do país. Parte dessas pessoas são pessoas que se mostravam críticas ao meu trabalho, mas que hoje dizem o contrário.
NOT - Sempre se pôs em causa o desempenho e legitimidade da Unidade Anti-corrupção. Há razões para isso? Ou seja, que casos concretos esta unidade trouxe a domínio público?
JM - O gabinete é um meio para remeter os processos ao tribunal. Cabe-lhe investigar e acusar, inclusivé, contrariando muitas posições que se manifestam contra isso. Queria abrir um parênteses para dizer o seguinte: a Constituição não pode ser limitada por uma lei ordinária, especial ou geral. Quando a Constituição diz que cabe ao MP, entre outras coisas, dirigir a instrução preparatória, exercer a acção penal, não pode haver nenhuma lei ordinária, geral ou especial, que corte essas competência do MP. E quando há uma lei, neste caso a 6/2004 e respectivo regulamento, que diz que no Gabinete de Combate à Corrupção entram necessariamente magistrados do MP, não se pode dizer que estes não têm direito de acusar. Agora, quando os processos começam a ser feitos “ping-pong”, isso não é bom para o combate à corrupção. Não quero dizer que não haja vontade política, mas que o combate à corrupção exige medidas drásticas e atempadas. Que fique claro que o combate à corrupção não é só na lei, é preciso reforçar o mecanismo jurídico já existente. Significa que aquelas lei anteriores que combatiam o fenómeno continuam vivas. Não é verdade que este gabinete não faz nada. O que as pessoas querem é que os processos sejam julgados e públicos. Acho que o que falta é celeridade, tanto na acusação como no julgamento. É preciso uma resposta pronta dos tribunais.
NOT - Durante o seu mandato nunca vimos grandes casos de corrupção a serem julgado, apesar de denúncias de desvios de somas avultadas de dinheiro ou de bens. Quer comentar?
JM - Achamos que qualquer um que cometer um caso criminal não está acima da lei. Existem alguns processos instaurados. Parte deles chegaram a levantar algum barulho, porque se dizia que desvio de fundos não é corrupção. Na verdade, é. Estou convencido de que com o tempo aparecerão processos a serem julgados envolvendo figuras proeminentes. Neste momento existem processos abertos e em investigação.
NOT - Após a tomada de posse do juiz Augusto Paulino como novo PGR, disse que nenhum procurador é entendido, ou seja, apenas a sociedade entende e outros não.
JM – Alguma Imprensa tem sido responsável por isso, quando dizem que não se fez nada, não trouxemos nada de novo, fomos iguais a nós mesmos, enfim, muitas e outras coisas. Essas pessoas ou não vêem ou não querem ver. Agora, ouvi dizer que saí porque sou incompetente. Não sei o que é ser incompetente. Fico feliz por saber que por onde passei, quer como juiz-presidente em Tete, Inhambane e cidade de Maputo, e mesmo quando estava a estudar em Lisboa, nunca me passaram o certificado de incompetência. Quando estava a fazer o mestrado só tive elogios de professores. Deixe-me contar um episódio que me aconteceu quando pela primeira vez fui ao Parlamento. Um amigo meu, jurista, foi entrevistado pelo “Savana” e criticou-me muito. Mais tarde vim a saber que ele era da oposição. Na sua intervenção, disse que eu fui à Assembleia da República e não fui dizer nada. Li aquilo e comentei que cada um era livre de se expressar. Passado um ano, telefonou-me dizendo que tinha sido brilhante e que deveria deixar os “cães ladrarem que a caravana passa, pois eu seu aquilo que o senhor é, desde os tempos da escola. Peço desculpas por tudo que falei no ano passado”. A minha felicidade é saber que o povo tem consciência de que eu estava a trabalhar. Não sou natural de Inhambane, mas fiquei lá durante cinco anos e as pessoas souberam respeitar o meu trabalho. Quando mais tarde fui nomeado juiz conselheiro, as maiores felicitações vieram de lá, porque o povo não é regionalista. Regionalistas são os chefes. Sabe que este indivíduo é nosso filho e está a trabalhar. Não é natural daqui e está a trabalhar. Por isso sempre disse que o termómetro do meu bom desempenho é a sociedade, que dela estou satisfeito.
NOT - E quais foram os outros círculos que mais o criticaram?
JM - Deputados da oposição. É curioso que alguns deputados dizem uma coisa na AR, mas fora pronunciam-se de outras maneiras. No dia em que cessei funções recebi muitas chamadas deles a dizerem que sou sério, que trabalhei, que conhecem a minha competência e outros elogios, incluindo dos camaradas. Publicamente as pessoas dizem uma coisa, mas em fórum privado outra. Para mim não interessa aquilo que dizem por conveniência, mas sim aquilo que eu sou. Eu sou igual a mim próprio. Joaquim Madeira não existem dois ou três, há um só, e digo aquilo que acho que deve ser a Justiça moçambicana.
NOT – Sente que a Justiça no país está melhor?
JM - Um dia vou escrever as verdadeiras mazelas do nosso sistema judicial. As verdadeiras doenças do nosso sistema judicial, quais são? Não é só problema das leis. Eu dizia a alguém, mais vale uma lei imperfeita nas mãos de um juiz são, consequente, do que uma lei perfeita nas mãos de um juiz corrupto. Quem diz juiz diz qualquer, refere-se a um aplicador das leis qualquer, porque vai implementar esta lei de acordo com a sua maldade, para fazer mal às pessoas. Portanto, não são só as leis que devem ser mudadas, mas também limpeza nos seus corações.
NOT - E quando teremos essas memórias escritas e que mais podemos contar desse futuro livro?
JM - Preciso de tempo. Quando eu tiver tempo, nessa altura darei a conhecer.
NÃO FOI FÁCIL MUDAR PENSAMENTO DE COLEGAS
NOT- Qual terá sido o maior constrangimento com que se deparou durante o tempo em que esteve à frente da PGR?
JM - Costumo dizer: ou assume ou não assume. Quando se assume, voluntariamente ou não, tem de se provar aquilo que é a nossa capacidade, até a auto-estima. Não pode revelar incapacidade, porque é isso que os outros querem. Isso não dá. Penso que na nossa sociedade temos muitos cérebros, inteligentes e capazes. Mas quando estiver a exercer as suas funções não pode negar uma verdade científica só para agradar a algumas pessoas. Então, quando isso acontecer, ou quando todos os trabalhadores da Justiça desta forma raciocinarem, então vale a pena abandonar a função. Mas há vezes em que a sociedade quer que você diga uma determinada coisa, o que não pode ser aceite. É isto que mancha a Justiça. Assumi o desafio e estou certo de ter feito o meu melhor. Nunca houve, na história deste país, quem terá ido ao Parlamento sete vezes. Para mim é uma vitória e saio de cabeça erguida. Não saio por motivos disciplinares. Se houver alguma outra coisa não tenho conhecimento e não fui acusado de nada. Não sou o melhor do mundo, mas fiz um trabalho vistoso.
NOT – Quais terão sido as suas maiores dificuldades?
JM - Desde logo a postura das pessoa. É preciso trazer para as pessoas o verdadeiro conhecimento de justiça, aquele ideal que nós tivemos em 1978, quando avançámos para as províncias e discutir com o povo, não como objecto, mas como parceiro no processo de construção da justiça. Fazer sentença pode não ser fazer justiça. Podem haver muitas sentenças injustas. É preciso que, mesmo sem entender a linguagem de Direito, mas o cidadão envolvido nos casos dissesse que foi feita a justiça, porque as coisas passaram-se assim no terreno. Agora, quando as coisas são desviadas, é complicado. Pode ter uma sentença muito bonita, mas se ela não foi bem seguida, as pessoas vão-se revoltar. A pior coisa que pode acontecer numa sociedade é as pessoas não acreditarem no seu sistema de Justiça. Portanto, tive alguns desafios que entendi que devia modificar, com processos instaurados contra colegas. Como consequência disso, o procurador Macamo, a quem havia confiado esta tarefa, sofreu um atentado. Foram montar uma emboscada em casa dos pais para os assassinar. E não eram pessoas de fora, mas sim de dentro, os descontentes que achavam que se devia ficar como se estava, mal. Quando criámos a Unidade Anticorrupção, a Isabel Rupia, que dirigia o sector, também sofreu atentado. Como dizia o falecido Presidente Samora Machel, “quando o inimigo te ataca é porque estás no bom caminho”. Uma vez eu disse e os colegas não gostaram, se a Justiça vai mal a culpa é do Ministério Público. Em condições normais, o MP tem que controlar as investigações, na instrução preparatória e a nível dos julgamento deve estar. O papel deste órgão é fiscalizar e não subalterno do juiz. Naturalmente que o juiz preside, mas o MP não está numa condição de advogado, mas sim de fiscalizador, porque representa o Estado. No essencial, o que mais enfrentei foi comportamentos diversificados de alguns colegas.
NOT - Ao longo do seu mandato reclamou sempre pela falta de meios. Será que não lhe foram dados e que consequência isso teve no seu desempenho?
JM - Não gosto de pôr à frente as dificuldades de meios. Normalmente as dificuldades de um procurador são de natureza endógena ou exógena. Parte delas vamos resolvendo recrutando mais pessoal. É preciso ver que quando mandamos pessoas para os distritos, é fundamental garantir condições de acomodação. Há procuradores que mandei para os distritos, mas que tiveram de trabalhar a partir da capital provincial por falta de casa. Não vou pôr procurador a dormir ao relento. Isso passa-se tanto ao nível dos procuradores como de juízes. É preciso ainda meios de locomoção. Temos casos em que um procurador assiste dois a três distritos, e essa pessoa precisa de transporte. Precisamos também de livros. Essas dificuldades foram sentidas até ao nível da PGR, onde ela não se desenvolveu porque o espaço é exíguo. Há sete meses que foi assinado um acordo de financiamento pelos chineses, mas o processo está parado.
NOT - Quais foram os maiores problemas que enfrentou, mas que não gostaria que o procurador Paulino enfrentasse?
JM - Dois problemas me deparei com eles quando assumi o cargo de PGR. O primeiro foi o facto de ter vindo do Judiciário. Na altura os juízes e procuradores estavam de costas voltadas. O facto de vir um juiz, que não é sequer da primeira instância, só isso levou as pessoas a dizerem que estava na condição de emprestado à PGR. Não verguei. Vesti a veste do Ministério Público e trabalhei. Segunda desvantagem que tive é o facto de vir do norte. Antes não podia dizer, mas agora digo abertamente. Infelizmente, o regionalismo no país continua a ser evocado, apesar de se fazer muito secretismo. Digo infelizmente porquê? Porque foi a unidade nacional que trouxe a independência nacional. Nos corredores ouvia pessoas a dizer “este senhor veio do norte”. Felizmente, isso não vem da boca do povo.
NOT - E sentiu isso, por exemplo, em Inhambane, onde trabalhou?
JM - Do povo não, mas das chefias. Até hoje, quando me desloco para lá sinto-me em casa. O problema está nas pessoas que ocupam determinados postos. Há quem até hoje ainda se guia pelo regionalismo para governar. É preciso que se diga isso, para se combater. Às vezes era minha família que sofria por essas coisas e vinham me dizer, mas sempre chamei a atenção a eles para se calarem, para não ligarem a essas conversas. O importante é que eu trabalhe.
NOT - Mas também já trabalhou noutras províncias, fora as do sul. Sentiu a mesma coisa?
JM - Uma vez o presidente do Tribunal Supremo, Mário Mangaze, indicou-me para ir fazer um trabalho na Zambézia, onde havia irregularidades envolvendo um juiz e um procurador. No encontro que mantive na cadeia, incluindo com reclusos, eles disseram que não queriam mais os dois colegas, porque eram machanganas. Olhei para eles e disse: então vou comunicar ao “Supremo” para mandarem um indivíduo que é machuabo mas que seja muito mau, que três vezes ao dia vos dê chambocadas. Aí eles disseram não. Então, expliquei que um indivíduo quando comete erros não é por ser daqui ou dali. O erro é humano. Quando se permitem coisas dessas está-se a pôr em causa o raciocínio de uma instituição. Isto para dizer que o povo sabe distinguir o que é bom e mau.
NOT - Com isso quer dizer que dentro da PGR sofreu muito?
JM - Infelizmente, há pessoas que priorizavam estas questões banais no lugar de trabalharem. Passei por cima disso.
CONSOLADO PELA JUVENTUDE FRUSTRADO COM OS COLABORADORES
NOT- Durante o tempo em que esteve à frente da PGR, diz que sempre apostou na juventude. Esta camada é que está sendo encaminhada para assumir os destinos das procuradorias ao nível dos distritos.
JM - Até certo ponto, senti a presença de alguns dos meus colaboradores. Mas a minha maior consolação veio dos jovens que estão a entrar para a magistratura. Das conversas que fui mantendo com eles sempre diziam que preferem o MP e não ser juízes. Sentia que para além de me admirarem, mostravam confiança no meu projecto de melhorar o sistema judicial. São jovens que não são levados pelo aliciamento de dinheiro, que querem entregar a sua vida à pátria, dar o seu melhor. Aí, sim, encontrei a maior consolação do meu trabalho.
NOT - E no caso concreto dos seus colaboradores directos?
JM - Alguns, parte deles propostos por mim para procuradores-gerais adjuntos, esperava deles melhor prestação, mais apanhei a maior desilusão. Quando eu cheguei àquela casa, não havia nenhum procuradoradjunto e tive de fazer a minha própria equipa. Devo reconhecer que nalguns casos escolhi mal. Isso feriu-me bastante o coração. Outros casos fui-me conformando que pode-se escolher mal, até mesmo traidores. O que parece pode não ser.
NOT - Tem casos concretos?
JM - Não importa nomes, agora. Quando escolho alguém, esperando que ele, pela sua capacidade, vai ajudar num determinado ponto e não o faz, significa que há motivos para ficar desiludido. De uma maneira geral, consegui trabalhar. E mais, sempre incentivei que os funcionários continuassem a estudar e hoje existem, dentro da PGR, funcionários simples, mas que são licenciados. Isto não existia até há alguns anos. Esse incentivo não é de agora. Já na altura quando estava no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo fiz a mesma coisa, razão pela qual hoje tens juízes que entraram na condição de funcionários simples. Alguns dizem que sou o pai deles, o que nego automaticamente, porque eles estudaram.
NOT - Sai com alguma mágoa pelo facto de não ter conseguido integrar a PIC na PGR, como era o seu desejo?
JM - Não tenho mágoa. Se tivesse continuado mais um pouco talvez conseguisse. Já tinha alcançado um relacionamento com a PIC, de certa forma salutar. Eventualmente não seria para integrar na PGR, mas para a PIC poder participar nas investigações. A investigação é uma ciência. Eu não estou preparado para investigar, mas quando a PIC estiver comigo e eu disser faz isto mais aquilo, o trabalho sairá perfeito. Funcionalmente, a lei diz que ele depende do MP. Mas há algumas desvantagens. O vencimento do agente da PIC está adstrito ao Ministério do Interior, assim como a sua promoção. Fiquei com pena, realmente, que este processo não tenha sido concretizado.
NOT - Uma última questão. Daqui para frente que vai ser feito de si?
JM - Sou juiz-conselheiro no Tribunal Supremo e volto para lá. Porque foram sete anos de intenso trabalho, pedi umas folgas para ver se me recomponho. Também passo a dispor de mais tempo para cuidar da minha família.
NOT – Estamos na ponta final da nossa entrevista e não deixaria de lhe perguntar a que níveis deixa o processo autónomo do “Caso Cardoso”.
JM - Ao contrário do que as pessoas pensam, não é o procurador-geral que cuida de processos da primeira instância. Embora o PGR tenha competência nesse sentido. O processo foi entregue a colegas e já foi acusado e submetido ao tribunal. Só que, pelo entendimento do juiz, foi devolvido para serem abrangidas mais pessoas.
NOT - Que pessoas?
JM - Não posso precisar, mas na altura concordei com o juiz, visto que não fazia sentido fazer uma acusação daquelas. Ordenei que voltasse ao MP para ver o que se passava. Penso que já foi remetido novamente. Aí não tenho a certeza. É um processo já acusado. Agora, o que acontece é que vários processos não julgados, embora estejam nos tribunais, culpa-se a inércia do Ministério Público.
Hélio Filimone
Notícias (01/09/2007)