Castel-Branco desmascara discurso de combate à pobreza
Entrevista conduzida por Francisco Carmona e Emídio Beúla
A actual estrutura da economia do país é funcional para a acumulação do grande capital internacional e para a reprodução de um pequeno grupo de moçambicanos que está a acumular a riqueza com base em especulação de recursos naturais, incluindo a terra, apresentada como propriedade do Estado. Em grande entrevista esta terça-feira ao SAVANA, o economista, docente universitário e director do IESE, Carlos Nuno Castel-Branco desmascara as teias de uma economia tornada definitivamente extractiva, anotando que, por mais forte que seja a sua retórica nacionalista de auto-estima, a diminuta oligarquia financeira nacional em gestação está profundamente dependente do capital estrangeiro. Castel-Branco aborda a “Economia Extractiva e Desafios da Industrialização em Moçambique”, uma nova publicação do Instituto a ser lançada no dia 21 de Outubro corrente.
O livro discute e procura compreender a estrutura económica do país e mostra até que ponto os indicadores de sustentabilidade económica que são adoptadas pelas instituições financeiras internacionais para avaliar a economia de Moçambique são inadequados. Procura também compreender os desafios da industrialização para alterar o modo de funcionamento da economia, com enfoque na mobilização de recursos domésticos, desafios de adopção de tecnologia, produtividade da agricultura, emprego (investimento directo estrangeiro nas zonas rurais e criação de emprego), comércio externo, etc.
E quais são as principais novidades que o livro traz para o debate na esfera pública?
O primeiro artigo do livro fala da economia extractiva e faz uma análise da estrutura económica de Moçambique e do seu funcionamento. Levanta três assuntos importantes, olhando sempre do ponto de vista da economia política. Quer dizer, o artigo não está simplesmente a dizer que a estrutura económica de Moçambique é A, B e C, mas está a olhar como é que essa estrutura económica também constrói interesses de grupo e como é que esses interesses de grupo depois consolidam este tipo de estrutura económica e impedem as mudanças fundamentais.
Outro assunto que o artigo identifica como um problema central da economia do país é aquilo a que chamamos de porosidade da economia. Isto é, a economia produz riqueza, mas não consegue reter a sua riqueza. A riqueza sai, sobretudo, por causa da maneira como a economia funciona e por causa dos incentivos fiscais e da gestão que é feita do investimento estrangeiro em Moçambique.
A que se deve essa porosidade da economia?
O país depende muito de recursos externos, não só da ajuda externa, mas também do investimento estrangeiro. 85% do investimento privado em Moçambique é financiado por recursos externos. O investimento privado em Moçambique é muito mais dependente do que o Orçamento do Estado (OE). Quando se discute a dependência e só se olha para a ajuda externa é uma maneira falsa de discutir a dependência. Porque a dependência é global. O artigo relaciona como é que a dependência externa do ponto de vista fiscal, do ponto de vista de despesa pública, e a dependência externa do ponto de vista de financiamento do investimento privado estão relacionados entre si. O que o livro traz não são questões acabadas, mas uma compreensão política do funcionamento da economia e o debate sobre os desafios da mudança desta estrutura económica e social.
A porosidade da economia é causada pela desarticulação da base produtiva, incapacidade de substituir importações e extremas facilidades dadas ao capital estrangeiro de grande escala.
E quais são os desafios que propõe para a mudança da estrutura económica do país?
Há dois grandes desafios. O primeiro é como mudar o processo de acumulação económica em Moçambique para que a economia não só passe a reter mais a riqueza que produz neste momento, mas que use esta riqueza para diversificar, alargar e articular a sua base produtiva. Isto requer a renegociação e o realinhamento do relacionamento com o capital estrangeiro e a utilização dos recursos adicionais para diversificar e articular a base produtiva. O outro desafio, ligado ao primeiro, é o problema da compreensão política da economia. Isto não é uma receita técnica, isto é um debate político. O desafio aqui é como organizar e mobilizar, tornar activas as forças especiais que estão a favor da mudança do padrão de acumulação. Que estão a favor de tornar a economia mais capaz de reter a sua riqueza e mais capaz de usar essa riqueza de uma forma alargada para o desenvolvimento do país.
VONTADE POLÍTICA FORÇA-SE
Acha que há vontade política para mudar os padrões de acumulação primitiva do capital?
O problema não é se há ou não vontade política. Vontade política constrói-se, às vezes força-se. Há dias, não havia vontade política de agir sobre os preços dos produtos básicos, mas depois das manifestações a vontade política surgiu. A vontade política não é uma coisa que existe, por isso o debate social não pode depender de quem está no poder para saber se tem ou não a vontade política de mudar. Se não tem vontade política para mudar, muda-se o poder para se criar a vontade política necessária.
O livro não está a dizer que vamos fazer uma revolução, mas a dizer que a economia, como funciona neste momento, não serve para o desenvolvimento do país e para o combate à pobreza. Ela só serve para acumulação primitiva de um pequeno grupo de capitalistas nacionais aliados com capitalistas estrangeiros. Isto tem de mudar para que o crescimento económico sirva as necessidades de pessoas.
Os actuais padrões de acumulação da riqueza por um grupo restrito assentam na especulação dos recursos naturais, incluindo a terra que é toscamente apresentada como propriedade do Estado...
O pequenino grupo que está a acumular e a se transformar em oligarquia financeira nacional está a acumular com base em especulação de recursos naturais e na posse da terra. E por mais forte que seja a sua retórica nacionalista de auto-estima, este pequeno grupo está profundamente dependente do capital estrangeiro. E não serve os interesses de desenvolvimento nacional, nem de construção de uma base económica e social para o bem-estar da maioria das pessoas. A propriedade do Estado sobre a terra está a ser usada para fazer acumulação barata e fácil da terra. Na altura em que tiverem definido a sua propriedade, acumulado o suficiente, vão começar a falar de privatização para proteger a propriedade e os direitos que já têm. E nessa altura, qualquer ataque que haja no sentido de crítica ou manifestação de descontentamento, vai ser considerado ilegal porque há-de ser ataque à propriedade. Todo o mundo capitalista foi construído com um processo de expropriação que levou à acumulação de riqueza e ao estabelecimento da propriedade privada que se tornou depois no ponto central da Constituição e do Estado. Primeiro expropria-se, depois fala-se da santa propriedade como direito do homem – já depois de a maioria ter sido expropriada. Nessa altura, o Estado passará a ter por missão proteger a propriedade privada, mesmo com o uso das forças de defesa e segurança.
Não havendo sinais de mudança, que tipos de riscos corremos com esta estrutura económica?
Se não houver mudanças, os problemas que estamos a ter neste momento vão-se replicar e vai chegar um momento em que vai ser economicamente insuportável. E quando é economicamente insuportável, fica politicamente insustentável.
Não é por acaso que, de acordo com as estatísticas oficiais - ainda não divulgadas à sociedade moçambicana, mas já entregues aos doadores entre Março e Maio -, a pobreza no país nos últimos cinco anos, não só não reduziu, mas aumentou. Mas a economia cresceu substancialmente. O PIB de Moçambique cresceu 55% a 60%.
De acordo com as estatísticas oficiais, nos últimos dez anos, a remuneração do capital no PIB duplicou, a remuneração do trabalho aumentou menos do que 60%, a remuneração do capital representa mais do que 70% do PIB. As outras remunerações, incluindo do trabalho, representam menos do que 30%. E ainda de acordo com estatísticas oficiais, as remunerações do trabalho são tributadas em média em 10%. E em média, a remuneração do capital, que é o grande stock e que cresceu mais depressa, é tributada em 4%. Portanto, nós temos, pela estatística oficial, que obviamente não há nenhuma maneira de resolver o problema da pobreza enquanto este for o estado de coisas. Então, nós estamos numa situação em que podemos falar de todo poder ao capital. Mas qual capital? Não é do pequeno e médio capital, estamos a falar do grande capital oligárquico nacional associado com grande capital estrangeiro interessado nos recursos minerais e energéticos de Moçambique. Isso não é base de desenvolvimento. Isso cria a tal economia extractiva, que é uma economia que tudo o que consegue tirar em forma natural exporta nessa forma natural e tudo o que consome importa. Mesmo o turismo, é a beleza das praias, a agricultura é o algodão descaroçado e em fibra que é exportado, é a castanha de caju não processada que é exportada. A nossa economia extrai, não processa, não se articula, não se diversifica, não acumula, mas grupos económicos e grandes empresas ficam muito ricas. Isso é estrutura colonial de funcionamento desta economia.
A economia colonial criou empresas ricas, empresas poderosas. Mas não resolveu o problema da miséria, não resolveu o problema de analfabetismo. Resolveu para um grupinho e não para a grande massa. E hoje há uma tendência de reproduzir estas dinâmicas sociais, políticas e económicas, apesar da retórica nacionalista.
MEGAPROJECTOS
Há muito que o Professor insiste na tese de renegociação dos contratos com os megaprojectos. Por que é que o governo não avança?
Não avança porque voltamos a um ponto da base de compreensão política do processo de acumulação. O Governo não avança porque, em primeiro lugar, os governantes, eles próprios, estão envolvidos como accionista nestas empresas.
Em segundo lugar, porque no nosso Governo, infelizmente, e ao nível mais alto, há enorme incompetência. E essa incompetência gera medo de tomar decisões. Alguns deles mesmo honestamente pensam que não é possível fazer estas coisas. E aqueles que sabem que é possível não querem.
..... mas talvez nos contratos não está prevista nenhuma cláusula que prevê renegociações?
Há cláusulas que prevêem a renegociação dos contratos, que levantam encargos para o Estado se os contratos forem modificados em prejuízo da empresa. O que nós estamos a propor é que se crie uma base técnica e política para modificar isto. Moçambique não será o primeiro caso. Está a ser feito na Libéria e na Zâmbia, foi feito no Gana e Costa de Marfim. Não só países africanos, há outros latinos – americanos. Há um reconhecimento de que os contratos são altamente negativos para as economias nacionais. E essas empresas têm de entender que se elas não contribuírem para a estabilidade política necessária para o seu negócio funcionar, vão sofrer. Será que a Mozal, a Sasol , a Kenmare, o Vale, vão prosperar num ambiente de instabilidade, de descontentamento, de greves, de manifestações, etc.? Obviamente que não. Então, elas devem contribuir para a estabilidade política e económica do país onde elas se localizam. E para fazer isso elas têm de, em primeiro, assumir a responsabilidade fiscal.
Mas alguém da parte do Governo faz compreender isso?
Eu não sei. Mas acho que alguém tem de fazer o Governo compreender isso antes. Essa é a batalha que tem de ser travada neste momento. Mas também é preciso ver que houve um progresso. Porque há 10 anos, as vozes que falavam sobre a tributação dos megaprojectos estavam completamente isoladas. Eram uma ou duas. O Banco Mundial, o FMI e o Governo criticavam essas vozes.
Hoje, mesmo pessoas do Governo já falam da necessidade de renegociar contratos. Não fazem, mas já falam disso. Esse ponto é preciso considerar. Mas não é só renegociar os contratos, não é só aumentar a tributação e receber mais recursos. A questão é se esses recursos serão usados para fazer o quê?
Serão usados para construir mais estradas, mais pontes e mais linhas férreas para os megaprojectos? Ou serão usados para diversificar, alargar e articular a base produtiva?
Se o uso for o primeiro, o que nós vamos fazer é consolidar a estrutura económica existente e os padrões de acumulação existentes, de natureza extractiva. Se o uso for o segundo, vamos criar uma economia que é muito mais dinâmica e muito mais eficaz para resolver os problemas da pobreza. E também seremos menos vulneráveis aos choques internacionais.
O IESE é neste momento uma instituição científica bastante crítica. Sente que as vossas contribuições são acolhidas tanto pelo Governo como pelos doadores?
O exemplo que eu dei de que há 10 anos havia uma ou duas vozes isoladas a falar do aumento da tributação dos megaprojectos, hoje já não é uma ou duas vozes. Até na agenda que a sociedade civil apresentou ao Governo para discussão, essa questão foi colocada como um dos pontos principais. Quando houve um debate aberto na STV sobre o Orçamento, pela primeira vez eu ouvi o Presidente da CTA a colocar este assunto na sua mensagem. Para generalizar a compreensão deste assunto levou-se quase 10 anos. Agora não sabemos quanto tempo vai ser levado até que este assunto seja tomado politicamente a sério e transformado em prática. Esse é o primeiro exemplo que posso dar da contribuição do IESE na área económica.
O segundo que posso dar é que em termos de trabalhos académicos e científicos, o IESE esteve na vanguarda da crítica ao funcionamento do sistema político e eleitoral em Moçambique. Agora esse assunto foi tomado por uma série de organizações sociais e o próprio Parlamento está a tomar este assunto da reforma do sistema eleitoral aparentemente a sério. São exemplos de coisas que são tomadas. Há um jovem investigador nosso que fez um trabalho crítico sobre os indicadores de sustentabilidade económica de Moçambique e o seu trabalho foi citado na construção do cenário fiscal de médio prazo.
O IESE é uma instituição de investigação e não de advocacia. O IESE não pega nas suas ideias e transforma-as em programa político. O que IESE tenta fazer é produzir investigação científica o mais rigorosamente que consegue e depois garantir que os resultados sejam divulgados amplamente. Compete depois a outras organizações usarem o material da maneira como entenderem.
Segundo o IOF 2008-9, a pobreza reduziu nas zonas urbanas, mas aumentou nas zonas rurais, região onde há uma forte intervenção dos sete milhões. O que de facto está a acontecer. Será que a política dos sete milhões está a falhar?
O que nós temos que ver quando olhamos para aqueles dados em que nestes sete anos (2003-10) - que inclui os primeiros cinco da governação do presidente Guebuza – é que quase não se mexeu na pobreza. Os dados estatísticos dizem que nas zonas urbanas diminuiu e nas zonas rurais aumentou. Nas zonas urbanas diminuiu 0.7%, nas rurais aumentou 1.4%. Se nós dividirmos isso por sete anos vai dar uma movimentação nula da pobreza. Todos os anos há uma movimentação de 0.2 na pobreza. Isso pode ser erro estatístico. Não é explicado por nada. A minha conclusão não é que a pobreza aumentou em termos globais em sete anos. Pela estatística o que é significativo é que não houve redução da pobreza. Esses números estão dentro do erro estatístico, não é uma coisa que se possa fazer grande argumento. Mas não diminuiu. Não afectou a pobreza, mas a economia cresceu em 55% e a pobreza não mexeu. Alguma coisa há de problemático. Pior ainda quando a retórica dos cinco anos anteriores foi nas zonas rurais, presidência aberta e sete milhões. Mas quando olhamos para os números a pobreza não mexeu em termos agregados. Acontece que em algumas zonas a pobreza reduziu, porque foi feito um grande projecto que criou empregos. Noutras zonas não houve nada. E no balanço disso à escala nacional a pobreza não mexeu. O que isto mostra em que o nosso crescimento económico é altamente ineficaz a tratar os assuntos da pobreza. Alguns podem dizer que os sete milhões vão levar tempo a gerar emprego. Mas os projectos que estão a ser feitos de auto empregos, onde está o impacto disso. Não são só os sete milhões que são problemáticos, é toda a abordagem, toda a filosofia, todo o paradigma do desenvolvimento do país.
Por que é que os “sete milhões” não parecem ter tido impacto nenhum na pobreza rural?
Primeiro, os ditos “sete milhões” são valores demasiado pequenos para fazer mudanças de estrutura em Moçambique. Ao todo, os distritos recebem por ano 2% do orçamento geral do Estado (OGE) e 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de Moçambique. Por que é que 2% do OGE deveria alcançar o que os restantes 98% não alcançam? Quando o projecto piloto de descentralização distrital teve lugar em Nampula entre 2002-2005, por ano os distritos desta província recebiam o dobro do que hoje recebem todos os distritos do País. Segundo, os dados não mostram nenhuma realocação significativa de fundos para os distritos. Os fundos distritais são retirados dos orçamentos provinciais e representam cerca de 7% da totalidade dos orçamentos alocados às províncias.
Terceiro, estes fundos são distribuídos para projectos individuais de pessoas localmente influentes e não atingem os mais pobres. Quarto, sendo alocados para projectos individuais, estes fundos operam independentemente da infra-estrutura, da base logística, da base empresarial e institucional que possa garantir o sucesso produtivo e reprodutivo da sua aplicação. Há casos individuais de sucesso – alguns pequenos comerciantes, agricultores e artesãos tiveram sucesso. Mas isto não é forma de combater a pobreza quando quase 12 milhões de moçambicanos vivem com um rendimento abaixo da linha de pobreza. O País não precisa de alguns casos de sucesso para serem mostrados nas presidências abertas e nas feiras; o País precisa de sucesso para milhões de moçambicanos todos os anos se a pobreza alguma vez vai reduzir. E sucesso para milhões de pessoas todos os anos não se consegue com paliativos distribuídos individualmente aos mais influentes de cada local.
Segundo as directivas do Governo, os sete milhões devem ser prioritariamente aplicados na produção de comida. As estatísticas do IOF 2008-09 mostram que a produtividade per capita e por hectare baixou, e que a produção de comida per capita está a cair a 1,5% por ano em média. No entanto, as mesmas estatísticas mostram que a posse de bens duráveis aumentou. Será que os sete milhões estão a ser usados para adquirir bens duráveis importados (bicicletas e rádios - que já houve tempo em que os produzíamos em Moçambique e com qualidade - telefones, entre outros) em vez de produzir comida? Se produzir comida não for tornado viável empresarialmente e acessível para todos pelo esforço combinado do governo e produtores, é mais fácil viver de sete milhões e importar bens duráveis.
Qual é o papel da dependência no crescimento económico?
O que claramente surge é que o grande investimento estrangeiro tem enormes facilidades de funcionamento em Moçambique. Tem facilidades fiscais, uma intervenção directa do governo e dos dirigentes do Governo para facilitar os processos. As dificuldades que o grande investimento estrangeiro enfrenta em Moçambique são de estrutura económica (logística, linhas férreas, estradas, forças de trabalho qualificadas), mas não são dificuldades de políticas porque elas são criadas fundamentalmente para facilitar este investimento. Isto significa que existe crescimento económico promovido por este investimento, mas a economia não acumula. Como a economia não acumula, o Estado também não acumula. Mas o Estado tem que se legitimar perante a sociedade para poder continuar a gerar esta dinâmica de facilitação do grande investimento estrangeiro que é a base da acumulação
das classes capitalistas nacionais. E a maneira do Estado se legitimar é apresentar-se como provedor de serviços. Constrói estradas, escolas e postos de saúde. Na campanha eleitoral a palavra de ordem era a Frelimo é que faz, a Frelimo é que fez. Fez com o quê? Com os recursos da ajuda externa. A ajuda externa é absolutamente crucial para manter a estabilidade política, o Estado em funcionamento ilegítimo perante a sociedade. Mas este Estado tem como preocupação central facilitar a vida do grande investimento estrangeiro e com isso facilitar a saída da riqueza do país. Mas compensa esse objectivo com ajuda externa que torna o Estado capaz de prover serviços.
Mas numa situação de ausência de apoio externo para financiar a economia estaríamos num caos…
Se a ajuda externa não existisse teríamos uma situação totalmente diferente. Teríamos, ou um Estado a ser completamente questionado pelos cidadãos, porque não iria prover serviços nenhuns ou um Estado que teria que mudar de abordagem e teria de ir buscar recursos fiscais ao grande capital para poder servir a sociedade. Então já não poderia ser um Estado tão aberto à acumulação privada capitalista internacional. Por causa destas questões nós entendemos que as diferentes formas de dependência estão organicamente relacionadas. Fazem parte do padrão de acumulação, explicam o tipo de crescimento económico que temos e explicam porquê esse crescimento económico não beneficia a redução da pobreza.
E como é que fica o papel das instituições financeiras internacionais, porque elas também olham para o crescimento económico como condição para continuarem a canalizar apoios…
É verdade por um lado, mas, por outro, não é completamente verdade. É verdade, por exemplo, que as instituições financeiras internacionais estão sobretudo preocupadas com estabilidade em termos agregados. Elas estão mais preocupadas com a taxa a que a economia cresce e com o equilíbrio entre a taxa de crescimento económico e outras variáveis macroeconómicas, que permitem fazer a sua análise e o seu diagnóstico da economia. Um dos artigos deste próximo livro critica alguns destes indicadores de sustentabilidade olhando para estrutura económica de Moçambique e mostrando que eles não dizem nada. Recentemente estava a falar com um dos representantes em Moçambique de uma instituição financeira internacional. Estava a colocar um problema que é o seguinte: o Governo quer reduzir a dependência em relação a ajuda internacional e está a fazêlo, não com recurso à mobilização de recursos domésticos, mas com recurso aos créditos não concessionais e parcerias público-privadas. Isto vai acarretar custos extraordinários em termos de juros e serviço de dívida. Um outro instrumento que o Governo está a usar são as obrigações de tesouro para mobilizar recursos internos, que também tem implicações em termos de serviços de dívida. Do ponto de vista de estabilidade, isso é muito perigoso. O FMI e o Banco Mundial estão muito preocupados com esta questão. Há muitos países, não só em África, que já tentaram esta via e rapidamente perderam o controlo da situação macroeconómica. O meu problema não só a questão de estabilidade. É que tipo de intervenção política pública que vai emergir quando o Orçamento do Estado for grandemente financiado por fontes privadas que têm altos custos comerciais. Se o Estado tem que obter da sua despesa taxas de retorno financeiras a curto prazo a nível das taxas de retorno do mercado será que esse Estado vai fazer as estradas terciárias? Vai criar a base nos distritos menos desenvolvidos? Ou será que esse Estado vai concentrar a sua despesa nas zonas de maior retorno que são as infra-estruturas para os mega projectos e para zonas urbanas e peri-urbanas já relativamente desenvolvidas? O impacto que isso pode ter nas políticas públicas é muito grande. Eu estava a discutir isto com este representante de uma das grandes instituições financeiras em Moçambique e ele estava a colocar o problema que era: a intenção deles em que o Governo use os créditos não concessionais, mas à medida que a receita fiscal aumente.
Porque assim a receita fiscal pode servir para pagar o serviço da dívida dos créditos. E aqui mostra que a preocupação dele é só estabilidade. A questão que eu coloco é que isso não resolve problema nenhum, porque o que isso vai fazer é que tudo o que é receita fiscal adicional vai ser absorvida pelo serviço da dívida dos créditos não concessionais, obrigações de tesouro e parcerias público-privadas. Toda receita adicional vai ser consumida pelo serviço da dívida.
Qual é a solução…
Para mim deve haver um limite. Por exemplo, definir-se que 15%-20% da receita fiscal adicional pode ser usada para estes fins. Mas 80% não pode, porque deve ser usada para diversificar as bases de desenvolvimento em Moçambique. Isso vai criar um limite ao potencial crescimento da dívida mas vai também promover alternativas de desenvolvimento. Isto era para mostrar um ponto que estavam a colocar. Se olharmos para a perspectiva de desenvolvimento, vamos ter outra visão e outra política do mesmo assunto. Este é um lado e aí concordo convosco. Mas por outro lado, não compete às organizações financeiras internacionais oferecerem as alternativas de política. Não é o FMI e o Banco Mundial que devem impor ao Governo a maneira de usar os recursos disponíveis. Devem ser os moçambicanos a fazerem isso, a poderem influenciar o OE. Não é um grupinho de moçambicanos que está a acumular com base na política actual e que depois diz que eles representam os moçambicanos todos. Ainda bem que as estatísticas estão a sair e elas infelizmente mostram que a pobreza não está a fragilizar como tanto se diz, mas estamos a ser fragilizados pela pobreza. Infelizmente esse é o resultado. Mas uma vez que esse é o resultado, há um lado positivo nisso. É que as políticas e as retóricas adoptadas nos últimos anos ficaram ilegítimas politicamente. Ninguém pode argumentar que estas políticas estão correctas.
Esta fuga para os créditos não concessionais, parcerias público-privadas, obrigações de tesouro, a viragem para China, Índia e Vietname, não têm a ver com o custo político que se tornou o dinheiro dos G19?
É evidente que tem a ver com o custo político. É evidente que tem a ver com a necessidade do Governo e esse grupinho de moçambicanos de não terem interferência política dos doadores. A interferência política existe. Mas isto pode ser resolvido com a mobilização de recursos através da tributação dos grandes projectos e dos grandes investimentos estrangeiros. Mas as pessoas dizem que sem incentivos, o investimento não há-de vir. O incentivo não tem que ser fiscal. Eu vou dar um exemplo: há quatro anos eu estava a trabalhar em Manica. Havia aquela febre dos farmeiros zimbabueanos. Dizia-se que os farmeiros iriam resolver tudo. O Governo deu 10 anos de incentivos fiscais. Eu estava a entrevistar esses farmeiros. Eles diziam que Moçambique é um belíssimo país, o povo moçambicano é extraordinário, mas vocês não têm nenhuma ideia do significado do negócio. E eu pedi-lhes para desenvolver mais o assunto. Ele disse-me o seguinte “nós fugimos do Zimbabwe. Viemos aqui pedir terra. Vocês deram-nos terra e incentivos fiscais para nos atrair. Nós preferimos pagar os impostos e com esse dinheiro criar-se facilidades de serviços de apoio à produção agrícola. Nós queremos semente, fazer análise de solos, pedir crédito, mas temos que ir para África do Sul. Vamos montar aqui as condições científicas, a base logística, etc, para funcionar a produção”. Os farmeiros moçambicanos não receberam incentivos fiscais. Aos moçambicanos não se precisa atrair. Já estão cá. O ponto que eles estavam a colocar é correcto. No Zimbabwe eles eram farmeiros comerciais, com grande viabilidade, em parte porque tinham serviços agrícolas públicos de alta qualidade, baratos e largamente acessíveis. Em Moçambique não temos. Eles diziam que se forem ao representante da marca da máquina que compraram para encomendar peças, a representante não conhece as peças.
Para fazer manutenção não há condições. É o próprio farmeiro que tem de manter a sua máquina. Isto implica que o equipamento se deteriore rapidamente e cada vez que tem que manter a máquina perdem muito tempo de trabalho. Depois nos queixamos que a nossa agricultura não é competitiva. Como é que vai ser? No Zimbabwe tem fundos de garantias para os créditos. Tem seguros de campanha agrícola para comercialização. Em Moçambique não há nada. Incentivos fiscais para quem. A única coisa que o incentivo fiscal resolve é o Estado não ter saúde financeira suficiente para criar a logística necessária para alargar e diversificar a base produtiva. Há muitas formas de incentivos que nós não usamos, em parte porque não temos a possibilidade financeira de o fazer. Em vez de pensarmos noutros incentivos, estamos a pensar em incentivos fiscais. Em Nampula estão a criar as Zonas Económicas Especiais (ZEE). O Ministério da Indústria e Comércio quando faz uma apresentação sobre a sua visão sobre o desenvolvimento industrial de Moçambique só fala de ZEE. Depois dizemos que a China tem ZEE,s e desenvolveu. A China tem uma forte base agrícola que não são ZEE,s. Tem uma forte base industrial. O Estado é proprietário de uma boa parte de empresas, donde apropria dividendos directamente, cobra impostos, tem um poder financeiro enorme. As ZEE,s são um complemento à dinâmica de desenvolvimento chinês. Em Moçambique estão a ser apresentadas como a única coisa. Significa que as ZEE,s têm muito mais incentivos do que o resto. O ministro da Planificação e Desenvolvimento disse há dias que são incentivos dados durante um período muito curto. São dez anos. Desde quando dez anos de incentivos fiscais é um período muito curto?
As medidas de contenção são paliativas
As medidas de austeridade após as manifestações de Setembro foram apropriadas ou não? Porquê todas as medidas do lado do consumo?
Estas medidas são apropriadas do ponto de vista psicológico. Aparentemente, os preços vão manter-se ao nível anterior e o Governo vai assumir os sacrifícios necessários (congelamento dos salários e promoções, cortes em despesas de viagens, etc.). Mas não há nada evidente que as medidas vão permitir poupar os recursos necessários para manter os subsídios. Além disso, é evidente que estas medidas são paliativas. Os grandes cortes em despesas poderiam ser com o tamanho do Governo (reduzi-lo para menos de metade), o que obrigaria a repensar e dar novo foco ao papel do Governo, coordenar melhor o Governo e elevar a sua qualidade.
Finalmente, é possível racionalizar os incentivos fiscais que sobretudo beneficiam o grande capital estrangeiro e seus associados nacionais, eliminar os incentivos fiscais redundantes, racionalizar os incentivos que diminuem a massa tributável do grande capital (como a depreciação acelerada e as taxas de crédito ao investimento), cobrar taxas sobre o uso de terra mais altas às grandes empresas de natureza comercial e cobrar taxas sobre recursos que estas empresas usam intensivamente e que aumentam os custos marginais para os outros utilizadores (como é o caso da electricidade, por exemplo). Com tais medidas, o Governo poderia, a curto prazo, mobilizar acima de US$ 300 milhões adicionais por ano, aumentando o seu espaço fiscal de intervenção na economia.
Se tais recursos adicionais forem usados para desenvolver a base logística e os sistemas de produção, financiamento e comercialização, numa perspectiva de produção diversificada e articulada e virada para a satisfação das necessidades das pessoas, o País poderá, a médio prazo, minimizar estes problemas gerando empregos decentes, aumentando o rendimento seguro das famílias e garantindo a oferta de produtos básicos de consumo, produzidos em Moçambique, com qualidade e a baixo custo.
As medidas adoptadas pelo Governo são só sobre a procura por causa do efeito psicológico imediato destas medidas, da necessidade de responder a curto prazo às pressões sociais internas e porque as outras medidas levam mais tempo a ser implementadas. Concentrando-se nas medidas psicológicas de curto prazo focadas nos preços, o Governo acaba por implicitamente reconhecer o fracasso da sua apregoada estratégia de produção e combate à pobreza.
As manifestações de Setembro vão mudar alguma coisa no Governo?
Vão obrigar, e estão a obrigar, o Governo a pensar. Estas manifestações, conjugadas com os dados do IOF 2008-09 que mostram que a pobreza de consumo não diminui nos últimos sete anos, e com os dados do TIA que mostram que a produção alimentar cresce a uma taxa inferior a metade da taxa de crescimento da população, tornam económica e políticamente inviáveis as estratégias e práticas seguidas pelo Governo até nos últimos seis anos.
As pressões sociais são ou não suficientes para que o Governo de facto mude a sua abordagem?
Isso não sei. Está claro que é necessário tornar a produção interna de comida e de outros bens básicos de consumo como prioridade do Governo e prioridade empresarial e do investimento. Nos últimos nove anos, 75% do investimento privado foi dividido entre recursos minerais e energéticos, turismo, mega projectos industriais e mega projectos de transportes e comunicações. Agricultura e agro-indústrias receberam 11% do investimento privado, e três quartos deste montante foi para florestas, tabaco, algodão, açúcar e biocombustíveis. Ao todo, a produção alimentar recebeu cerca de 4% do investimento privado, e metade deste investimento foi para produtos alimentares para exportação. Com raras excepções, a produção alimentar para o mercado doméstico não é um negócio viável. O Governo e os produtores têm que resolver este problema em conjunto, tornando a produção alimentar para o mercado interno, com qualidade, standards e a baixo custo, uma prioridade empresarial (sejam estas empresas associações, cooperativas ou outros tipo de empresas privadas).
A ideia de que Moçambique produz muito mas não consegue escoar não é correcta. Em termos agregados, a produção alimentar per capita está a reduzir a uma taxa média de 1,5% ao ano. Há zonas de excedente e outras de défice, mas o balanço das duas é que em cada ano a produção alimentar por cada cidadão é mais pequena. E nas zonas de excedente a produção não é muito grande. O que acontece é que a base logística é tão má que mesmo volumes moderados de excedente não são comercializados a tempo.
A produção de comida tem de ficar prioridade do Governo e do empresariado. E para isso, o Governo e o sector privado têm que trabalhar para a tornar viável para os produtores e acessível para os consumidores.
Fonte: SAVANA – 08.10.2010 in Diário de um sociólogo
2 comentários:
Sempre esperei pela interveção de um especialista em economia, para dar a conhecer o real estágio da situação económica do nosso país, não aqueles artigos que apenas fazem menção ao crescimento da nossa economia. Gostei muito da abordagem do Carlos e está foi para mim uma grande aula. Pude perceber em que base a nossa economia está sustentada e que perigos podem advir se as mesmas não mais existirem. Por mais que muitos discordem comigo, mas eu acho que o sistema tanto político como económico capitalista é inútil e prejudicial para nós como pessoas e seres humanos. O socialismo pode não ser melhor perfeito mas é muito melhor que este actual. É inacietável o nível de vida que a maior parte da população vive quando não há razões para tal. Realmente alguém tem de fazer algo, urgentemente para nos tirar desta sutuação insuportável.
Tomás,
O problema é que o sistema político e económico de Mocambique não capitalista e de mercado livre, mas sim de capitalismo selvagem. O Japão, os Tigres, mesmo a China não fizeram nem fazem o que se faz em Mocambique. Aqui é onde está o problema. O Capitalismo Selvagem não presta para NADA e não se pode comparar com a economia de mercado livre e nem do socialismo.
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