(A propósito de uma entrevista de Graça Machel)
Por: Barnabé Lucas Ncomo
Há afirmações de figuras políticas nacionais que são de tal forma controversas e desfasadas da realidade que acabam por assumir foros surrealistas. Viu-se isso numa entrevista recente ao canal televisivo, TVM, em que Graça Machel se viu confrontada com perguntas acutilantes do jornalista Simião Ponguane. Graça Machel reclamou representar uma ala liberal no seio da Frelimo e, por inerência, do regime que essa formação política tem dirigido desde há mais de três décadas. Quando o entrevistador indagou sobre as razões da Frelimo não ter conseguido gerir o descontentamento de alguns moçambicanos a ponto de haver um movimento que, depois, se chamou Renamo, Graça Machel descartou-se com algo inesperado, afirmando desconhecer que alguma vez os cidadãos moçambicanos tivessem colocado as suas posições perante o regime, tal como a Frelimo havia feito em relação ao governo português antes do início da luta armada. Graça Machel rematou o seu argumento, afirmando:
“És capaz de me dizer quando, onde e como a Renamo apresentou o seu descontentamento ao Estado? Nós, na pessoa do camarada Mondlane, para ir falar e explicar ao governo português que queremos independência, antes de pegar em armas, sabíamos o que queríamos. O meu problema não é dizer se as pessoas não tinham oposição ou não, o meu problema é que, quando nós temos exigência, é preciso colocar as coisas de uma maneira clara em cima da mesa. Eu não tenho conhecimento, não sei se tu tens, de um momento em que esses moçambicanos colocaram em cima da mesa: 1. Nós nos opomos a isto; 2. Nós nos opomos àquilo; 3. etc., etc. Se tu tiveres essa informação, diz-me onde e como!”.
Graça Machel reafirma
este seu pensamento tentando fazer passar a ideia da existência, em toda a
história da Frente de Libertação de Moçambique (movimento) e da Frelimo
(partido), de abertura política que os opositores não aproveitaram ou não
quiseram aproveitar, num “diálogo” pacífico visando fazer valer os seus ideais.
Prossegue:
“Teria entendido muito bem se tivesse havido esse diálogo e a Frelimo tivesse dito não. Eu não tenho conhecimento ou registo que isso tenha acontecido. Por exemplo, a Frelimo fez exigência da independência, falando com o governo português, depois com as Nações Unidas, OUA, para uma independência por meios pacíficos. Só e só quando os meios pacíficos não resultaram é que nós pegámos em armas!”.
Para quem não está divorciado da realidade, nem de costas viradas para a História, a posição ora assumida por Graça Machel faz dela uma pessoa que vive num mundo à parte, desconhecedora de tudo quanto a rodeia, da História recente do nosso país, e do flagelo que se abateu sobre todas as vozes discordantes deste país. Graça aparenta não acompanhar a evolução da linha política definida pelo partido a que pertence, o que faz dela um péssimo quadro, uma militante inconsequente, que não cumpre nem estuda as orientações e as directivas saídas de sessões dos órgãos centrais do poder partidário e estatal em que teve assento, mormente o Comité Central, a Assembleia Popular, o Conselho de Ministros, em suma, em todo o aparelho de uma formação politica que constitucionalmente se autoafirmou como “força dirigente do Estado e da Nação”.
Aperceber-se-á ela da
posição macabra e da imagem surrealista que constrói em seu redor quando opta
por uma postura desse tipo?
Recuemos no tempo:
Há um golpe de Estado na metrópole colonial que abre os caminhos que conduziriam as independências das colonias portuguesas em África. A FRELIMO, que Graça Machel acabava de integrar com efetividade um ano antes, aposta numa política de exclusão. Quer um diálogo condicionado; um diálogo somente entre Lisboa e Nachingwea sem envolver outras sensibilidades políticas em Moçambique. Faz valer esta sua posição perante Lisboa com recurso à força e a chantagem política: ou dás o que quero, ou continuo a matar.
Os que rejeitam esta sui generis paternidade, e que exigem, colocando sobre a mesa as suas legítimas reivindicações de independência nacional por um processo democrático e pluralismo político, são apelidados de reaccionários; agentes do neocolonialismo e do imperialismo. Tinham, estatutariamente, de ser destruídos.
Na sequência dos acordos de Lusaca em Setembro de 1974, instala-se no país o Governo de Transição chefiado pela FRELIMO. Graça Machel integra esse governo na qualidade de Secretário de Estado. A pasta que lhe está reservada, para depois do fim do exercício desse elenco governativo de transição encontra-se nas mãos de Gideon Ndobe.
Graça Machel entra, assim, para a primeira máquina governamental da sua vida. De entre várias atribuições públicas e secretas conferidas ao elenco governamental de que faz parte, a partir de Lourenço Marques, está a perseguição, detenção e deportação para o Centro de Preparação Politico militar da FRELIMO em Nachingwea de todos os que, segundo hoje nos conta, “não colocaram em cima da mesa, 1. Nós nos opomos a isto; 2. Nós nos opomos àquilo; 3. etc., etc”.
Graça Machel assiste a um “diálogo” que se revelaria humilhante e ultrajante entre a direcção máxima do seu partido e aqueles que, sob ameaças de espingardas de guerra, ela e os seus camaradas no governo transitório encaminharam a Nachingwea. Em conluio com os capitães de Abril, a Special Branch de Banda e a TIS de Mwalimu Nyerere, o “diálogo pacífico” dos aspirantes a governantes no novo Moçambique começa com amordaçados em Lourenco Marques, na Matola, na Beira, em Milange, na Base Moma, em Chileka, Blantyre, em Dar es Salaam, em Arusha, no Cairo, em Nairobi e Mananga. Não faltam locais de desterro, nem camiões fechados com lonas para o sufocante transporte de gado humano em longos itinerários Norte-Sul, ou do Maputo ao Rovuma.
Em Nachingwea, perfilham-se diante de Samora Machel; dos dirigentes da FRELIMO, e de outros dignatários da Tanzania e Zâmbia, centenas de moçambicanos que a FRELIMO foi, desde a tomada de posse do Governo de Transição, paulatinamente prendendo ou ardilosamente atraindo para o seu regaço. Tanto em Moçambique, na própria Tanzânia, como em outros países estrangeiros.
O “diálogo”, naquele Centro de Preparação Político-militar, é rígido e com regras: monocórdico e pré-determinado. Os oradores não se podiam desviar do discurso que lhes era colocado nas mãos. Não havia, portanto, 1), 2) e nem 3). Tão pouco o “vamos a isto” ou “vamos àquilo”. Há apenas o “ir”. De uma viagem de ida sem regresso: de Nachingwea para M’telela, via Metangula; de Nachingwea para Ruarua, Bilibiza ou Namuli atravessando o rio Rovuma. Isto, à revelia de todos: dos tribunais, dos juízes, dos advogados, dos familiares e dos entes queridos.
Proclama-se a “independência nacional” a 25 de Junho de 1975. Graça Machel tem assento no Conselho de Ministro por inerência do novo cargo que ocupa. Assiste ainda a uma outra etapa do “diálogo” desta feita entre governantes (ela e seus camaradas) e governados (nós, o povo). O novo “diálogo” entre “nós” e “eles” é igualmente monocórdico; orientado e directivado. Volta a haver o “ir”. De uma viagem de ida. Sem regresso. Desta feita, com guia de marcha. Para Machava ou para M’sawize; para Ulumba, Mossurize ou Maua 1; para Unango, Sacuzo, Macoloje ou Bilibiza, etc. Termina com fuzilados em M’telela em “diálogo de balas”.
Assassinados em Ruarua em
“diálogos de cordas ao pescoço” amarradas a ramos das árvores, com mesas ou
bancos a servirem de patíbulos pontapeados pelos homens de Lagos Lidimo e de
Salésio Nalyambipano.
Perante todo este quadro macabro e arrogância assassina, do seu leito na Ponta Vermelha em Maputo, a liberal Lady SOAS acalentava ainda ser possível o diálogo. Os que nas matas viriam a recorrer à via armada para fazer valer os valores da democracia e da liberdade deviam, primeiro, fazer um Requerimento ou Petição, reconhece-los nos Serviços Notariais e depois fazê-lo chegar as mãos de Sua Excelência Senhor Presidente da Republica Popular de Moçambique. Como não o fizeram, não eram, portanto, quer para os liberais como Graça Machel, quer para os não liberais da mesma formação do pensamento comum, interlocutores válidos! É isto que Graça quis dizer?
…
É estranho que a ilustre presidente do SOAS se tenha esquecido de alguns factos. Por exemplo, que aos carcereiros a quem se incumbiu a missão de fechar as celas onde se pôs alguns dos discordantes (que ela assistiu dialogando com o malogrado marido em Nachingwea), também se lhes exigiu que depois atirassem as chaves para o fundo do poço. E que, desde então, lá dentro – isto é, nas celas – iniciara-se, por vontade do malogrado Samora e seus pares um outro “diálogo”, monocórdico, em que os que estavam encarcerados passaram a falar para as paredes, consigo próprios, escutando as suas próprias vozes, num diálogo de loucura e de desespero, impedindo-se assim que colocassem na mesa “as coisas” – como afirma a ilustre senhora.
É estranho que a ilustre presidente do SOAS se tenha esquecido de alguns factos. Por exemplo, que aos carcereiros a quem se incumbiu a missão de fechar as celas onde se pôs alguns dos discordantes (que ela assistiu dialogando com o malogrado marido em Nachingwea), também se lhes exigiu que depois atirassem as chaves para o fundo do poço. E que, desde então, lá dentro – isto é, nas celas – iniciara-se, por vontade do malogrado Samora e seus pares um outro “diálogo”, monocórdico, em que os que estavam encarcerados passaram a falar para as paredes, consigo próprios, escutando as suas próprias vozes, num diálogo de loucura e de desespero, impedindo-se assim que colocassem na mesa “as coisas” – como afirma a ilustre senhora.
Esqueceu-se, a senhora Graça Machel, que tal como os partidários do nazismo na Alemanha empenharam-se “em prol dos ideais do “Führer”, em Moçambique, o carcereiro que atirou as chaves das celas para o fundo do poço fê-lo com conhecimento do Chefe Máximo local e de alguns que o rodeavam, daí que a par das promoções por “bons serviços prestados em prol do “Führer”, não há memória que lhe tenham sido aplicadas sanções por excesso de zelo, o que prova que estava, o carcereiro e todos outros, em consonância com a vontade partidária/estatal mais superior.
Graça Machel não fica de fora dos crimes cometidos em Moçambique. Esqueceu-se também que daquelas celas já não se podiam escutar vozes, mesmo que sumidas, a balbuciar o 1 e o 2 do “queremos isto” ou “queremos aquilo”, o que parece explicar a resposta que dá ao entrevistador Simião Ponguane: “(…). O meu problema não é dizer se as pessoas não tinham oposição ou não, o meu problema é que, quando nós temos exigência, é preciso colocar as coisas de uma maneira clara em cima da mesa. Eu não tenho conhecimento, não sei se tu tens, de um momento em que esses moçambicanos colocaram em cima da mesa, um: nós nos opomos a isto; dois: nós nos opomos àquilo, 3). etc., etc. Se tu tiveres essa informação, diz-me onde e como. Onde e como esses moçambicanos apresentaram o seu descontentamento ao Estado!”.
Fica-nos uma mensagem confusa. Uma afronta de Lady SOAS. Não sabemos se por imprudência ou por descuido. Em suma, Lady SOAS pretende um diálogo, que só pode ser com os mortos. Que ressuscite então os mortos para que sejam eles a dizer-lhe quando, onde e em que mesa expuseram as suas reivindicações. Porque para quem chegou a pagar (como ela afirma) avultadas somas para que se desvende de uma vez por todas o “mistério” da morte de Samora Machel, e não se cansa de lamentar a prematura orfandade dos próprios filhos, não deixa de ser estranho que nos atire agora com uma imagem que destoa toda a personalidade que lhe conferiu o direito de ocupar um prestigiado e cimeiro cargo na Universidade de Londres: Presidente da SOAS.
Graça Machel oferece-nos agora a imagem duma dama sem sentimentos para com outros seres humanos. Desrespeita não só os que o regime liderado pelo antigo marido injustamente matou, como também os familiares (pais, filhos, irmãos, etc) daqueles, cujos destinos a Frelimo impede que tenham nas suas sepulturas um ramo de flores de quem os amou. É estranho que Graça Machel venha hoje dizer-nos que a pouca “liberdade política” de que desfrutamos carecia de um Requerimento ou Petição por escrito, conhecido que estava o destino de outros moçambicanos por ousarem contrariar o que a Frelimo impôs por forças de armas e intimidação.
Seria interessante que Graça Machel não só desse “graças ao apartheid” na África do Sul por ter poupado a vida ao seu novo marido (senão não teria segundas núpcias com uma figura do mundo como Nelson Mandela), mas também que procurasse conhecer a fundo a origem dos valores monetários que gravitavam nos bolsos dos líderes da FRELIMO em Dar-es-Salam, antes de vir a público afirmar que os líderes da RENAMO eram pagos por alguém para desestabilizar. E se o colonialismo português negou qualquer espécie de diálogo pacífico com os moçambicanos que aspiravam a liberdade e independência, que ponha, a senhora Graça Machel, mão a consciência, para ver se ela; o seu malogrado marido Samora Machel, e seus camaradas, agiram de forma contrária a de Salazar e Caetano.
Seria, por outro lado, também interessante que as instituições públicas ou privadas de prestígio mundial investigassem primeiro o passado social de algumas figuras que pretendem promover a posições de destaque, sob o risco de caírem no ridículo de promoverem ou homenagearem figuras como um Charles Taylor, que recentemente acabou condenado por abuso e crimes contra outros seres humanos.
Para refrescar a memória, juntamos a este artigo de opinião algumas fotografias que ilustram o “diálogo” havido em Nachingwea entre a direcção da FRELIMO e “algumas vozes discordantes” em 1975. É importante que a ilustre Presidente do SOAS entenda que o Estado moçambicano que alude na entrevista com Simião Ponguane teve o seu prelúdio exactamente nesse local (Nachingwea), dez anos depois duma sangrenta luta contra a teimosia de Salazar e Caetano. André Matsangaice e outros moçambicanos viriam então a fazer a sua história da sua maneira, muitos deles partindo das masmorras do regime que Graça abraçava “em prol dos ideais do seu Führer”.
* Graça Machel foi recentemente nomeada Presidente do SOAS, o famoso Instituto de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
In: Canal de Moçambique, 25 de Julho de 2012, pp. 10-11
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