Por: Michel Cahen
No seu período radical (1975- 1987), a Frelimo, muito
mais que “comunista”, foi um partido de modernização autoritária, que queria
transformar à força o campesinato para criar o homem novo numa nação homogénea
e de língua portuguesa. É de reparar, por exemplo, que as aldeias comunais não
serviam para colectivizar o campo. A produção colectiva nas aldeias comunais
representou aproximadamente 1% da produção total aí registada, e era
principalmente destinada a criar pequenas reservas para poder receber “os camaradas
vindos da Nação” (os dirigentes vindos da capital do país ou das capitais
provinciais). As cooperativas eram de consumo e comercialização e não de
produção, salvo algumas excepções (nas aldeias-modelo que os observadores
estrangeiros visitavam).
No entanto, foi uma política socialmente muito violenta:
se o fim não era colectivizar, é por que era de congregar e agremiar o
campesinato em “cidades rurais”, arruamentos perpendiculares e casas quadradas
– isto foi uma ruptura cultural completa.
Para a Frelimo, na leitura estalinizada do marxismo que
tinha da sucessão dos períodos históricos (Antiguidade, Idade Média/feudalismo,
capitalismo), a “tradição” africana representava uma forma de feudalismo que
era preciso abater (o tribalismo, o obscurantismo). Era inconcebível para a
Frelimo deixar os camponeses viver num habitat disperso. Era preciso “organizar
o povo”, como se o povo já não tivesse uma organização.
Era preciso obrigar
os camponeses a irem viver em aldeias modernas, à volta da sede do partido, símbolo
da nação una.
Concentraram-se produtores, mas sem se concentrar mais
meios de produção (adubos, tractores, rega, etc.). A terra próxima das aldeias
esgotou-se rapidamente.
Além disso, os camponeses foram agredidos culturalmente
porque já não podiam viver nas terras dos antepassados e caíam na dependência
da linhagem da terra onde tinha sido criada a aldeia comunal. Os camponeses
ficaram a viver pior com a Frelimo no poder do que no último período colonial
(quando o trabalho forçado e o indigenato já tinham sido suprimidos).
Não se tratou em nada de “socializar o campo” (discurso
oficial), mas sim de “nacionalizar o campo”, fazendo de todo o camponês um
homem “nacional” sem as suas raízes culturais (essas raízes que eram
vangloriadas em festivais de danças populares no Maputo, sob controlo político,
mas reprimidas na sociedade).
Esta política de modernização autoritária sem proveitos
sociais para os camponeses explica, pelo menos em parte, que a Renamo
conseguisse apoio popular em certos sectores camponeses.
Se Marx nunca escreveu nem uma palavra a favor do partido
único, não será, no entanto, que sobre o campesinato, as suas posições
facilitaram a política de modernização autoritária da Frelimo? Na sua célebre
obra, «O 18 de Brumário» (onde analisa as raízes sociais do resultado das
eleições de 1851em França, só três anos depois da Revolução de 1848, que deram
a vitória ao Príncipe Luís Napoleão Bonaparte que se aproveitaria da situação
para fazer um golpe de Estado contra a Segunda República), Marx considera que o
campesinato constituiu a maioria da base social reacionária que apoiou
Bonaparte. Pois, pode-se concluir rapidamente que ele considera o campesinato
como reacionário. Mas não é tão simples: ele faz uma importante distinção entre
os camponeses detentores de pequenas parcelas de terra (isto é, pequenos
proprietários), conservadores, e os camponeses sem terra ou
micro-proprietários, revolucionários; além disso, aponta o facto de que, se a
maioria dos camponeses apoiou o golpe de Estado, era porque a própria Segunda
República, dominada por correntes burguesas, tinha desenvolvido uma política
muito dura contra eles: impostos pesados, e repressão violenta contra os
camponeses pobres que queriam adquirir terras. É certo, porém, que Marx nunca
foi um grande teórico das potencialidades progressistas do campesinato, mas
também não se pode dizer tão simplesmente que considerava o campesinato como um
todo reaccionário.
Para encontrar marxistas a teorizar a fundo sobre as
potencialidades progressistas do campesinato, será preciso esperar pelo
primeiro quartel do século XX com Gramsci (que estudou os camponeses do sul da
Itália, então muito subdesenvolvida), José Marti (Cuba da primeira metade do
século XX) ou José Carlos Mariátegui (que teorizou o papel revolucionário do
povo nativo do Peru, os Índios). Marx, no seu tempo, permaneceu bastante
eurocêntrico, mas pelo menos tinha previsto que podia haver situações
completamente diferentes, com o seu famoso “modo de produção asiático”.
Mas, claramente, não tinha informação suficiente para
poder estudar a sério a situação de outros campesinatos fora da Europa.
Mas de qualquer forma, em Moçambique, a situação de
1975-1987 era completamente diferente da de França em 1851: a regra era a
ausência completa da propriedade privada dentro das comunidades camponesas e
não havia uma pequena burguesia rural (com poucas excepções no Sul do país,
quando magaíças emigrados na África do Sul voltavam com um pequeno capital
acumulado). No entanto, os camponeses tinham sofrido muitas expropriações de
terras pelos colonos e esperavam, com a independência, recuperar essas terras
comunitárias. A Frelimo recusou, e tentou transformar directamente latifúndios
coloniais em machambas estatais, sem devolver a terra aos camponeses, para
impedir o fortalecimento de uma sociedade africana que a Frelimo não
controlava. Mas não foi por “culpa do marxismo” que a Frelimo fez isso. Antes
pelo contrário. Ela pretendia fazer isso como forma de integrar à força o
campesinato na nação dela. E por que queria fazer isso é que adoptou uma certa
forma de marxismo, de cariz estalinista.
Podia escolher outras formas de marxismo, e não o fez.
Assim se vê que, mesmo no período radical, a Frelimo
nunca foi “comunista”. Claro que neste período, também não desenvolveu o
capitalismo, nem o destruiu; foi temporariamente o que se pode chamar de “poder
pequeno-burguês burocrático”, que foi bastante rapidamente obrigado a
reintegrar-se dentro do mundo capitalista. E isso, não só por causa da pressão
do Ocidente ou da guerra movida pela Renamo, mas porque a elite que tinha
tomado o poder em 1975 na altura sem capital acumulado e que precisava,
materialmente mas também sobretudo “mentalmente”, manter o controlo total do
aparelho de Estado para a sua reprodução social, já tinha conseguido tornar-se
em homens (ou mulheres) de negócios num quadro neopatrimonial onde se pode
fazer negócios só com o patrocínio de quem detém o poder de Estado. Como disse uma vez Joaquim
Chissano: “Esta questão do marxismo começava a nos trazer
problema”. Pois o dito marxismo- leninismo como discurso foi facilmente
abandonado. O que não foi abandonado, é a ideia de uma nação nova de homens
novos: hoje em dia já não há machambas estatais, mas há grandes latifúndios
privados, sempre com alta taxa em capital fixo, incapaz de dinamizar a economia
camponesa à volta (e nem é esse o objectivo). Visão tecnocrática-“marxista” da
modernidade antes, visão tecnocrática-capitalista da modernidade hoje, o modelo
não é tão diferente – sacrificado é sempre o camponês que, aliás está a
tornar-se cada vez mais num recém-morador de bairros suburbanos das grandes
cidades. Marx deve estar a dar voltas na sua
sepultura.
(Michel Cahen / Canal de Moçambique – 18.07.2012)
Canal de Moçambique in Moçambique para todos – 18.07.2012
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