EDITORIAL do Jornal Notícias
Não temos dúvidas que este é um assunto sensível e
delicado. Religião, crime, raça e Estado foram e sempre serão de dimensões
complexas e delicadas em qualquer sociedade moderna.
Tão sensível que, não sabíamos por onde começar sem ferir
susceptibilidades. E ao decidir tomarmos uma posição, fizémo-lo a partir do que
é de interesse de qualquer cidadão, independentemente da sua filiação política
ou religiosa.
Não compreendemos e nem aceitamos que o Estado seja
chantageado e ameaçado, seja em nome do que for.
Para que não haja dúvidas, a nossa posição foi sempre
clara. Por exemplo, nunca encaramos e somos contra a posição de que o
terrorismo é islâmico, somente porque algumas pessoas islâmicas estão
envolvidas em práticas terroristas. Pela mesma coerência, recusamos a aceitar
que os sequestros são contra a comunidade muçulmana, porque cidadãos muçulmanos
estão a ser sequestrados. Esta é a coerência que em nome da cidadania
gostaríamos de ver reflectida ante a ameaça que está a ser feita ao Estado.
Nos primeiros meses deste ano várias igrejas cristãs
foram assaltadas um pouco por todo o país e clérigos assassinados. Se perdermos
esta coerência, teremos que ironicamente acreditar que a comunidade cristã está
a ser colectivamente atacada e que a Polícia pouco ou nada faz porque o Estado
tem interesse que isso aconteça.
Se perdemos esta coerência, teremos de acreditar que as
centenas de violações sexuais brutais que ocorrem diariamente contra jovens
mulheres anónimas são contra uma determinada raça de cidadãos que escusamos
aqui de mencionar. Por consequência, teremos de acreditar que a Polícia não
esclarece os casos ou esclarece-os mal, porque o Estado é sexista e tem
interesse que as jovens mulheres com essa qualificação social, sejam violadas.
Ora isto é absurdo!
O que nós acreditamos face aos parcos factos que temos, é
que os cidadãos estão a ser vítimas de crimes, alguns dos quais violentos
independentemente da raça, da religião e da filiação partidária. O que nós
acreditamos é que os criminosos mapeiam e se especializam com abrangência para
as várias dimensões do crime: contra os que supostamente têm dinheiro, contra
as jovens pobres que regressam à noite vindas das escolas atravessando ruelas
mal iluminadas nos bairros degradados nos subúrbios da capital.
O que nós francamente acreditamos é que a nossa Polícia
ainda não está tecnicamente e humanamente preparada o suficiente para lidar com
determinado tipo de crime, que não dispõe de meios para proteger o suficiente,
como deveria ser, a todos os cidadãos. Por consequência, o que nós acreditamos
é que, por via disso, o Estado não está a honrar o suficiente, o contacto
social que tem com todos os cidadãos, que abdicam de fazer justiça pelas
próprias mãos, de criar seus exércitos e polícias privadas para se defender
individualmente ao nível das famílias, porque ao Estado foi atribuída essa
responsabilidade.
De novo, para que não haja dúvidas. Como cidadãos, somos
solidários com os compatriotas e famílias dos que se sentem indignados directa
e indirectamente, porque vítimas, de crimes que tardam a ser esclarecidos, seja
por que razão for. Defendemos o direito desses cidadãos à indignação pública.
Mas nós tratámo-los como cidadãos, sejam eles de origem asiática, muçulmanos,
católicos, etc. Nós não conseguimos enxergar a intencionalidade do crime contra
uma determinada religião ou cor da pele.
Qual é a relação directa entre crime contra cidadãos, com
o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais, industriais e serviços
em todo o país durante três dias, com a eventual promoção de uma campanha de
desobediência fiscal e, em última estância, caso não seja resolvido de
imediato, orientação de voto nas próximas eleições autárquicas e presidenciais.
O Estado ameaçado, as instituições e partido chantageado
e os cidadãos vítimas, precisam de reconciliar-se permanentemente. Isso só se
faz com diálogo, com pressão legítima, mas não com barganha. Não com a
transfiguração da religião em partidos políticos, e não com a confusão entre
cidadãos e comunidades, mesmo entendendo que estas têm todo o direito legítimo
de solidariedade com os seus membros.
Quando isso acontece ficamos perplexos e perguntamos: o
que virá a seguir?
Fonte:
Jornal Notícias – 27.08.2012
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