“Sócrates rendeu-se a Guebuza”, lia-se na manchete do semanário Zambeze, depois da assinatura dos documentos que transferiram para Moçambique a administração de Cahora Bassa. O que me atraiu no título foi o verbo escolhido, que evoca uma semântica de guerra.
Resolvo consultar os meus recortes e, passados quinze minutos, estou elucidado: persiste na comunicação social moçambicana uma retórica de guerra, herdada da Guerra Civil e que ainda não desarmou. O problema é que os jornalistas parecem não se dar conta de que a linguagem não é inocente ou neutra e indicia sintomas e que o modo como certos vocábulos se infiltram nos textos, em lugar de sinónimos mais anódinos, é motivado por indubitáveis condicionalismos sociais.
Vejamos como a porca torce o rabo.
Terça, 18 de Julho de 2006: a página 4 do “Notícias” exibe o seguinte título: “Trezentos membros do PDD aderem à Frelimo”. O lied acrescenta: “...e influentes da Renamo, em Sofala, também filiam-se no partido do poder”. A fotografia mostra “os três novos ‘reforços’ da Frelimo vindos da Renamo e que se entregaram no distrito de Chemba (sublinhado meu)”. Esta fotografia com os três homens rendidos tem o valor psicológico de três tiros no porta-aviões da Renamo e excede em muito os estragos das 300 “baixas” do PDD.
Sábado, 28 de Julho de 2006, no telejornal da STV é dado grande destaque à deserção (é a palavra usada) de 25 antigos quadros da Renamo, PDD e de outros partidos da oposição, e à sua inscrição nas fileiras da Frelimo.
Podia dar mais duas dúzias de exemplos. Mas, na última semana, Afonso dos Santos acrescentou um novo exemplo a este subtracto radicalmente guerreiro nos discursos mediáticos, ao interrogar a pertinência do uso da palavra derrotados para descrever os candidatos que não foram eleitos para o Comité Central da Frelimo: como é que são considerados derrotados elementos que concitaram o apoio de 500 membros do Congresso e não se vê nisso uma base de apoio e influência iniludíveis, que mantém de reserva uma tendência? Parece-me que ele tem razão e que a análise deste fenómeno devia ser empreendida de forma mais detalhada e séria pelos académicos.
Este lado oculto da democracia iluminou-se-me com a releitura de René Girard. Revela-se hoje evidente que a democracia em África não visa a mediação, sendo antes o aparato que permite identificar o bode expiatório. O propósito inconfessado das eleições é o sacrifício simbólico do bode expiatório e não o confronto e a validação eleitoral de projectos sociais.
Adivinhem quem se identifica como o bode expiatório? A oposição! E este estado de coisas parece diabolicamente concertado, dado que, a seguir ao acto da rendição, as figuras trânsfugas que aderiram à Frelimo e se prestaram a esse espectáculo disseram cobras e lagartos dos seus antigos líderes.
E aqui aclara-se a pergunta que não se formula, mas que fica insinuada no ar a traços grossos: se eles – os arrependidos – certificam que os seus antigos líderes são toda a extensão do mal, do erro, que sentido poderá ter o país submeter-se a novas eleições se o sacrifício simbólico já foi executado de antemão pelas próprias declarações dos desertores? Era um gasto de dinheiro inútil.
Os antigos quadros da oposição soçobram a anos de violência doméstica dissimulada em exercício democrático e desdobram-se em discursos que desqualificam o seu passado recente a fim de beneficiarem de um período de Graça que ulteriormente os recupere. Com a rendição, os antigas desertores purificam-se. Neste cenário a preto e branco, pejado de puros e impuros, de inclusões e exclusões, a lógica dominante reproduz ainda a ideia de que a decisão final e indiscutível provém de uma guerra, na qual o vencedor faz vingar a sua razão e impõe a sua lei ao vencido. Como estancar o movimento do tempo, pensam os vencidos, como acelerar a aniquilação, inconfessam os dominadores.
Neste contexto, a democracia moçambicana tem escassas hipóteses de oxigenação e crescimento. Até justamente pela energia com que os povos se entregam ao mimetismo (a incapacidade de contrariar o “pensamento colectivo” e que se converte em aderência e imitação), como diagnosticou Girard, e se prestam à lisonja do poder.
O país regressa assim à ordem dogmática e à tradicional figura catártica (tão antiga que preexiste ao cristianismo, surgido aliás como a superação desse mecanismo) que autoriza a sublimação das incapacidades: o bode expiatório. Os grandes perdedores neste processo são o Cristianismo e a democracia à la page imposta por Bretton Woods.
A lógica do processo, por outro lado, é tão antiga, como perigosa. O que é que mantém a unidade tribal ou a identidade étnica? O inimigo, o outro encarado como catalisador da culpa e não como nosso complementar.
Instalada a falência das ideologias que sublinhavam as diferenças entre os partidos, cujos programas parecem agora clonados uns dos outros; convertido o antigo inimigo (o colonialismo) em doador, e dado ser inescamoteável a violência do quotidiano e o falhanço das expectativas de um contrato social há necessidade de buscar uma expiação dentro e de promover o retorno a ritos fiáveis. Como, repita-se, o da aniquilação/desqualificação do outro.
Eis o que explica a inconsciente manutenção de um vocabulário bélico em grande parte da comunicação social.
O trágico é que a) o comportamento da Renamo em relação aos pequenos partidos que compunham a sua coligação é igual ao da Frelimo, b) que o maior partido da oposição não compreendeu que a sua dualidade de comportamentos (participar da democracia e manter um exército acoitado) fornece o pretexto ao adversário para agir com uma estratégia de guerra.
E é censurável algo que surge como a expressão ritualizada da vontade maioritária – perguntarão muitos?
As maiores atrocidades do século XX foram invariavelmente cometidas em nome das maiorias, facto que obriga a que nunca nos devemos demitir da consciência histórica. Este semestre perguntei em três turmas universitárias o que era o Holocausto e só houve um aluno, um, que me respondeu cabalmente – os restantes não sabiam. Mais dez anos e não saberão o que foi o Colonialismo, pois apenas conhecerão o hip-hop (uma importação americana). Que cidadãos serão estes, que qualidades imprimirão às suas decisões? Com que instrumentos competirão num mercado cada vez mais internacionalizado e onde não serve para nada o cartão de militante?
E outro problema se coloca: na prática, é impossível manter uma democracia na qual o grande bloco da oposição sente que padece de democracia (e já viram o drama de um “pai” que padece do “filho”?), que tem o horizonte embaciado, sem saída. Quando o homem sente que tudo o que o rodeia faz parte do seu cárcere, das duas uma, ou cai no ensimesmamento e deixa de participar (o absentismo), ou rebela-se pela violência (como se viu na recente “promessa de guerra” da Renamo na Beira). É este o resultado inevitável de uma democracia entendida como fagocitação dos “enfraquecidos” e não como negociação, como geradora de instâncias de mediação.
2. A democracia (como a liberdade) não é uma coisa adquirida e a sua natureza é instável. Por isso o espírito democrático não se adquire por decreto, é fruto de uma incubação, que necessita de tempo e do exercício contínuo da reformulação dos seus processos e fundamentos. Tal qual como acontece nos casais a democracia pressupõe uma refocagem constante, a discussão periódica e o renovar dos projectos.
O que é uma democracia? O mais antigo e um dos mais argutos teóricos da democracia é o poeta trágico grego Ésquilo que não fala de democracia unicamente como domínio das maiorias sobre as minorias mas sim como uma mediação entre os extremos: entre o rico e o pobre, entre o velho e o jovem, entre o são e o enfermo, entre o homossexual e o heterossexual, entre o empresário fabril e o ecologista, entre a discriminação rácica e as minorias, etc.. Deste ponto de vista não tem sentido a diferença que com frequência se estabelece entre uma democracia política e a económica, porque no sentido originário democracia significa essa possibilidade de mediação.
Os objectivos principais de uma democracia situam-se, a), na aprendizagem do múltiplo, b) na igualdade perante a justiça, a educação e a saúde, c) na consolidação de instâncias ou organismos que permitam a mediação – padrões que estão para além das ambições corporativas (de classe) que cada partido representa.
Quando penso no termo democracia, visualizo de imediato a tensão que ocorre entre um modelo societário e a multiplicidade de reacções e de subjectividades que produz, pois, socializarmo-nos democraticamente implica o destemor de apresentar alternativas e de permitir interferências, dado que o fito não é o controlo mas o exercício da multiplicidade e dos direitos, o que obriga a interiorizar a tolerância e a cidadania.
Neste sentido, a democracia deve consagrar-se como a reserva do inigual, do diferente, e deve fomentar um sentimento de não-pertença e de distância analítica que se reforça pela persuasão com que direitos e sensibilidades emergentes ganham novos focos de mediação, novos intermediários. É então que o movimento social se realiza.
Para definir movimento, pedimos auxílio ao filósofo Alain Badiou, de quem traduzimos os próximos dois parágrafos: um movimento é a condição fulcral para toda a política. Porque se não há movimento, a única coisa que existe é a ordem – que abafa o movimento. Então, chame--se movimento a uma acção colectiva que obedece a duas condições: em primeiro lugar, esta acção não está prevista nem regulada pela potência ou o poder dominante e sujas leis. Então, esta acção pressupõe algo imprevisível, que rompe com a repetição. Chamamos movimiento a algo que rompe com a repetição colectiva, social. É a primeira condição.
E a segunda condição para um movimiento é que proponha dar um passo mais, adiante, no que respeita à igualdade. A consigna de um movimiento, o que diz, o que propõe, vai, de una maneira geral, no sentido de uma maior igualdade.
Para que exista um movimiento, então, é necessário que se reúnam estas duas condições: o seu efeito é a emergência de um novo “intermediário”, de uma instância de mediação .
Nesta pequena nuance da mediação joga-se a superação de uma democracia representativa para uma democracia expressiva e este salto é vital.
A democracia expressiva brota do quotidiano, quando as diversas associações de diferentes, que reinvidicam direitos até então não formulados, se consolidam. Uma democracia é tanto mais autêntica quanto mais efectiva for a expressão das suas minorias.
Não é apenas a suposta representatividade de um partido no governo ou na oposição, bem como o jogo da rotatividade, que sustenta a democracia mas, sobretudo, a estabilidade das instituições que favorece o incremento de paralelos organismos de intermediação cuja dinâmica é que reactualiza os programas sociais e fiscaliza os actos governamentais.
Deste ponto de vista, acolher como inocente a supremacia vitalícia de um partido é estender o tapete para a disseminação de interesses corporativos, para o compromisso e a uniformização do pensamento que paulatinamente impõe o princípio de morte que amamenta o fascismo. E verifica--se de comum uma deformação do carácter quando as condições sociais levam as pessoas a crescer num único comprimento de onda, contra a ideia e os riscos do múltiplo.
Uma supremacia de longa duração de um partido cai facilmente no dogmatismo, torna-se imago (uma imagem construída para os outros) e vicia-se em esquemas de pertença e de protecção que só minam as boas intenções de partida. Daí que a “mexicanização” de uma democracia represente afinal mais estagnação social do que progresso.
E não se julgue que um regime é democrático apenas porque aparentemente há liberdade de imprensa. Isso é uma ingenuidade. Eu posso escrever o que quiser nos jornais, mas isso cai em saco roto se não houver qualquer reciprocidade. O que faz a força da liberdade de imprensa é a reciprocidade, a sua força efectiva como mecanismo de reversão na dinâmica social. Se eu escrever para um saco roto, contra o muro da indiferença, a liberdade é como aquela mãe sem braços que quer retirar o filho do rio.
A liberdade precisa de ser confirmada, o respeito necessita de ser reiterado, o silêncio depende do tumulto da palavra, urge sancionar a qualidade. Uma sociedade onde se abafa a reciprocidade (o outro saber o que eu penso dele e vice-versa, ou haver uma reacção normal à qualidade ou mediocridade do trabalho efectuado) em nome da conveniência do unânime é uma sociedade doente e que não autoriza as mediações.
Nos regimes socialistas, a idolatria do igual – camarada, camarada – obstrui a valorização das competências – camarada, camarada – e isso acarreta uma quase invariável promoção da mediocridade e o impedimento do juízo. A prazo, o corolário é o espírito de “fusão” verificável em qualquer repartição, empresa, ou célula partidária, com o unanimismo a silenciar a assertividade, a autonomia de opinião.
Nos países que saíram de empurrão do socialismo para o neoliberalismo este esquema foi “adaptado” à democracia e é em vão que o menor gesto de valia espera uma reciprocidade. Se o gesto nasceu fora das estruturas autorizadas para o reconhecimento o seu efeito é nulo. Inútil pensar que se constrói algo – executar uma boa ideia, um projecto, uma empresa — sem ter de antemão empenhado o compromisso. Não há outras mediações alternativas às autorizadas. Ora, ao contrário, o que enriquece uma democracia e a torna perene é precisamente a multiplicação das instâncias mediadoras, que são instrumentos de liberdade e de reciprocidade, à margem dos poderes instituídos.
Por isso é que, não obstante alguns deslizes, no Ocidente se faz da alternância política ou da criação de novos organismos de mediação um motor dinâmico das sociedades. Quantas mais forem as instâncias de mediação mais a democracia permite regular os egoísmos de classe ou corporativos.
3.Existem, nas cavernas do México, uns batráquios, os axolots, cuja larva nunca atinge o estado adulto, mas que pode, em contrapartida, reproduzir-se enquanto larva. Não conheço nada mais parecido com o homem.
Atente-se: qual é o mistério e a paródia com a condição humana? É que, se por um lado, não há nada que nos seja tão contrário como a exigência de superar-nos, por outro, nada é tão intrinsecamente nós mesmos como o fundo desta exigência ou o fruto desta superação. Mas quando escolhemos o caminho da facilidade, e à superação preferimos a condescendência, imitar (a oportunidade com que aderimos a corrente dominante) é aquilo a que se tende. É este tão feroz como aviltante instinto de sobrevivência que move as multidões e torna a massa colectiva uma força facilmente manipulável e controlável. O mimetismo dimana da atracção ou da coacção que a maioria exerce sobre a ténue resistência individual, e o íman nacional, hoje, confunde-se com o Poder.
E, neste quadro crescentemente corporativo o que cresce? O império do não-dito e a parcela de perguntas que não se devem fazer e que a coerção social impossibilita.
O não-dito é a força expansiva, subliminar, que faz com que um sistema se torne regime. Um regime já não permite o diálogo, nele o axioma torna-se dogma. Tudo em nome da maioria. Mas evidentemente que a breve trecho o seu fito é a defesa de interesses de alguns contra a maioria que os legitima. Sem hipóteses de mediação – pois esta é um vector de diálogo indesejável.
De facto, como ousar fazer perguntas se a situação se baliza no quadro que Daviz Simango, presidente do Município da Beira e único edil de uma grande cidade que pertence a Renamo, denunciou no Meia Noite, edição de 11 de Abril de 2006: “Neste edifício onde nos estamos (a Câmara) havia uma célula do partido, que mandámos fechar, porque achamos que qualquer encontro de qualquer que seja o partido, deve realizar-se em sede própria. Havia igualmente descontos directos no salário dos trabalhadores para o partido e nós eliminamos esse procedimento e, outra coisa, que nos notámos, é que o primeiro secretário do partido Frelimo, na cidade da Beira, recebia um salário do Município, sem trabalhar aqui...”. Afirmação que não foi desmentida por ninguém e que, pelo contrário, foi corroborada este Setembro por Raul Domingos, no programa Debate Aberto, na STV, quando afirmou com todas as sílabas que as células partidárias estão a voltar ao seio das instituições públicas.
Só que, nesta via, onde o esquema é o que dá substância à força do partido, a violência também vai crescer, como acontece inevitavelmente quando se enceta a via do bode expiatório.
4.Aventava o sociólogo Elísio Macamo, numa entrevista publicada na penúltima Proler, que falta em Moçambique um verdadeiro debate sobre o que se descortina por trás da ideia do Estado. Eu adianto, falta um debate profundo sobre o que é a Democracia.
Cito o Dalai Lama e extrapolo para a Democracia a qualidade que ele atribui ao rio: “O que é que faz fluir um rio? O facto das suas moléculas não aderirem”. Pois é, aderir torna inquinadas as águas, só a independência das moléculas lhe garante a fluência. Eis o que explico aos meus três filhos moçambicanos quando eles me perguntam o que é a democracia. E melhor não sei.
Resolvo consultar os meus recortes e, passados quinze minutos, estou elucidado: persiste na comunicação social moçambicana uma retórica de guerra, herdada da Guerra Civil e que ainda não desarmou. O problema é que os jornalistas parecem não se dar conta de que a linguagem não é inocente ou neutra e indicia sintomas e que o modo como certos vocábulos se infiltram nos textos, em lugar de sinónimos mais anódinos, é motivado por indubitáveis condicionalismos sociais.
Vejamos como a porca torce o rabo.
Terça, 18 de Julho de 2006: a página 4 do “Notícias” exibe o seguinte título: “Trezentos membros do PDD aderem à Frelimo”. O lied acrescenta: “...e influentes da Renamo, em Sofala, também filiam-se no partido do poder”. A fotografia mostra “os três novos ‘reforços’ da Frelimo vindos da Renamo e que se entregaram no distrito de Chemba (sublinhado meu)”. Esta fotografia com os três homens rendidos tem o valor psicológico de três tiros no porta-aviões da Renamo e excede em muito os estragos das 300 “baixas” do PDD.
Sábado, 28 de Julho de 2006, no telejornal da STV é dado grande destaque à deserção (é a palavra usada) de 25 antigos quadros da Renamo, PDD e de outros partidos da oposição, e à sua inscrição nas fileiras da Frelimo.
Podia dar mais duas dúzias de exemplos. Mas, na última semana, Afonso dos Santos acrescentou um novo exemplo a este subtracto radicalmente guerreiro nos discursos mediáticos, ao interrogar a pertinência do uso da palavra derrotados para descrever os candidatos que não foram eleitos para o Comité Central da Frelimo: como é que são considerados derrotados elementos que concitaram o apoio de 500 membros do Congresso e não se vê nisso uma base de apoio e influência iniludíveis, que mantém de reserva uma tendência? Parece-me que ele tem razão e que a análise deste fenómeno devia ser empreendida de forma mais detalhada e séria pelos académicos.
Este lado oculto da democracia iluminou-se-me com a releitura de René Girard. Revela-se hoje evidente que a democracia em África não visa a mediação, sendo antes o aparato que permite identificar o bode expiatório. O propósito inconfessado das eleições é o sacrifício simbólico do bode expiatório e não o confronto e a validação eleitoral de projectos sociais.
Adivinhem quem se identifica como o bode expiatório? A oposição! E este estado de coisas parece diabolicamente concertado, dado que, a seguir ao acto da rendição, as figuras trânsfugas que aderiram à Frelimo e se prestaram a esse espectáculo disseram cobras e lagartos dos seus antigos líderes.
E aqui aclara-se a pergunta que não se formula, mas que fica insinuada no ar a traços grossos: se eles – os arrependidos – certificam que os seus antigos líderes são toda a extensão do mal, do erro, que sentido poderá ter o país submeter-se a novas eleições se o sacrifício simbólico já foi executado de antemão pelas próprias declarações dos desertores? Era um gasto de dinheiro inútil.
Os antigos quadros da oposição soçobram a anos de violência doméstica dissimulada em exercício democrático e desdobram-se em discursos que desqualificam o seu passado recente a fim de beneficiarem de um período de Graça que ulteriormente os recupere. Com a rendição, os antigas desertores purificam-se. Neste cenário a preto e branco, pejado de puros e impuros, de inclusões e exclusões, a lógica dominante reproduz ainda a ideia de que a decisão final e indiscutível provém de uma guerra, na qual o vencedor faz vingar a sua razão e impõe a sua lei ao vencido. Como estancar o movimento do tempo, pensam os vencidos, como acelerar a aniquilação, inconfessam os dominadores.
Neste contexto, a democracia moçambicana tem escassas hipóteses de oxigenação e crescimento. Até justamente pela energia com que os povos se entregam ao mimetismo (a incapacidade de contrariar o “pensamento colectivo” e que se converte em aderência e imitação), como diagnosticou Girard, e se prestam à lisonja do poder.
O país regressa assim à ordem dogmática e à tradicional figura catártica (tão antiga que preexiste ao cristianismo, surgido aliás como a superação desse mecanismo) que autoriza a sublimação das incapacidades: o bode expiatório. Os grandes perdedores neste processo são o Cristianismo e a democracia à la page imposta por Bretton Woods.
A lógica do processo, por outro lado, é tão antiga, como perigosa. O que é que mantém a unidade tribal ou a identidade étnica? O inimigo, o outro encarado como catalisador da culpa e não como nosso complementar.
Instalada a falência das ideologias que sublinhavam as diferenças entre os partidos, cujos programas parecem agora clonados uns dos outros; convertido o antigo inimigo (o colonialismo) em doador, e dado ser inescamoteável a violência do quotidiano e o falhanço das expectativas de um contrato social há necessidade de buscar uma expiação dentro e de promover o retorno a ritos fiáveis. Como, repita-se, o da aniquilação/desqualificação do outro.
Eis o que explica a inconsciente manutenção de um vocabulário bélico em grande parte da comunicação social.
O trágico é que a) o comportamento da Renamo em relação aos pequenos partidos que compunham a sua coligação é igual ao da Frelimo, b) que o maior partido da oposição não compreendeu que a sua dualidade de comportamentos (participar da democracia e manter um exército acoitado) fornece o pretexto ao adversário para agir com uma estratégia de guerra.
E é censurável algo que surge como a expressão ritualizada da vontade maioritária – perguntarão muitos?
As maiores atrocidades do século XX foram invariavelmente cometidas em nome das maiorias, facto que obriga a que nunca nos devemos demitir da consciência histórica. Este semestre perguntei em três turmas universitárias o que era o Holocausto e só houve um aluno, um, que me respondeu cabalmente – os restantes não sabiam. Mais dez anos e não saberão o que foi o Colonialismo, pois apenas conhecerão o hip-hop (uma importação americana). Que cidadãos serão estes, que qualidades imprimirão às suas decisões? Com que instrumentos competirão num mercado cada vez mais internacionalizado e onde não serve para nada o cartão de militante?
E outro problema se coloca: na prática, é impossível manter uma democracia na qual o grande bloco da oposição sente que padece de democracia (e já viram o drama de um “pai” que padece do “filho”?), que tem o horizonte embaciado, sem saída. Quando o homem sente que tudo o que o rodeia faz parte do seu cárcere, das duas uma, ou cai no ensimesmamento e deixa de participar (o absentismo), ou rebela-se pela violência (como se viu na recente “promessa de guerra” da Renamo na Beira). É este o resultado inevitável de uma democracia entendida como fagocitação dos “enfraquecidos” e não como negociação, como geradora de instâncias de mediação.
2. A democracia (como a liberdade) não é uma coisa adquirida e a sua natureza é instável. Por isso o espírito democrático não se adquire por decreto, é fruto de uma incubação, que necessita de tempo e do exercício contínuo da reformulação dos seus processos e fundamentos. Tal qual como acontece nos casais a democracia pressupõe uma refocagem constante, a discussão periódica e o renovar dos projectos.
O que é uma democracia? O mais antigo e um dos mais argutos teóricos da democracia é o poeta trágico grego Ésquilo que não fala de democracia unicamente como domínio das maiorias sobre as minorias mas sim como uma mediação entre os extremos: entre o rico e o pobre, entre o velho e o jovem, entre o são e o enfermo, entre o homossexual e o heterossexual, entre o empresário fabril e o ecologista, entre a discriminação rácica e as minorias, etc.. Deste ponto de vista não tem sentido a diferença que com frequência se estabelece entre uma democracia política e a económica, porque no sentido originário democracia significa essa possibilidade de mediação.
Os objectivos principais de uma democracia situam-se, a), na aprendizagem do múltiplo, b) na igualdade perante a justiça, a educação e a saúde, c) na consolidação de instâncias ou organismos que permitam a mediação – padrões que estão para além das ambições corporativas (de classe) que cada partido representa.
Quando penso no termo democracia, visualizo de imediato a tensão que ocorre entre um modelo societário e a multiplicidade de reacções e de subjectividades que produz, pois, socializarmo-nos democraticamente implica o destemor de apresentar alternativas e de permitir interferências, dado que o fito não é o controlo mas o exercício da multiplicidade e dos direitos, o que obriga a interiorizar a tolerância e a cidadania.
Neste sentido, a democracia deve consagrar-se como a reserva do inigual, do diferente, e deve fomentar um sentimento de não-pertença e de distância analítica que se reforça pela persuasão com que direitos e sensibilidades emergentes ganham novos focos de mediação, novos intermediários. É então que o movimento social se realiza.
Para definir movimento, pedimos auxílio ao filósofo Alain Badiou, de quem traduzimos os próximos dois parágrafos: um movimento é a condição fulcral para toda a política. Porque se não há movimento, a única coisa que existe é a ordem – que abafa o movimento. Então, chame--se movimento a uma acção colectiva que obedece a duas condições: em primeiro lugar, esta acção não está prevista nem regulada pela potência ou o poder dominante e sujas leis. Então, esta acção pressupõe algo imprevisível, que rompe com a repetição. Chamamos movimiento a algo que rompe com a repetição colectiva, social. É a primeira condição.
E a segunda condição para um movimiento é que proponha dar um passo mais, adiante, no que respeita à igualdade. A consigna de um movimiento, o que diz, o que propõe, vai, de una maneira geral, no sentido de uma maior igualdade.
Para que exista um movimiento, então, é necessário que se reúnam estas duas condições: o seu efeito é a emergência de um novo “intermediário”, de uma instância de mediação .
Nesta pequena nuance da mediação joga-se a superação de uma democracia representativa para uma democracia expressiva e este salto é vital.
A democracia expressiva brota do quotidiano, quando as diversas associações de diferentes, que reinvidicam direitos até então não formulados, se consolidam. Uma democracia é tanto mais autêntica quanto mais efectiva for a expressão das suas minorias.
Não é apenas a suposta representatividade de um partido no governo ou na oposição, bem como o jogo da rotatividade, que sustenta a democracia mas, sobretudo, a estabilidade das instituições que favorece o incremento de paralelos organismos de intermediação cuja dinâmica é que reactualiza os programas sociais e fiscaliza os actos governamentais.
Deste ponto de vista, acolher como inocente a supremacia vitalícia de um partido é estender o tapete para a disseminação de interesses corporativos, para o compromisso e a uniformização do pensamento que paulatinamente impõe o princípio de morte que amamenta o fascismo. E verifica--se de comum uma deformação do carácter quando as condições sociais levam as pessoas a crescer num único comprimento de onda, contra a ideia e os riscos do múltiplo.
Uma supremacia de longa duração de um partido cai facilmente no dogmatismo, torna-se imago (uma imagem construída para os outros) e vicia-se em esquemas de pertença e de protecção que só minam as boas intenções de partida. Daí que a “mexicanização” de uma democracia represente afinal mais estagnação social do que progresso.
E não se julgue que um regime é democrático apenas porque aparentemente há liberdade de imprensa. Isso é uma ingenuidade. Eu posso escrever o que quiser nos jornais, mas isso cai em saco roto se não houver qualquer reciprocidade. O que faz a força da liberdade de imprensa é a reciprocidade, a sua força efectiva como mecanismo de reversão na dinâmica social. Se eu escrever para um saco roto, contra o muro da indiferença, a liberdade é como aquela mãe sem braços que quer retirar o filho do rio.
A liberdade precisa de ser confirmada, o respeito necessita de ser reiterado, o silêncio depende do tumulto da palavra, urge sancionar a qualidade. Uma sociedade onde se abafa a reciprocidade (o outro saber o que eu penso dele e vice-versa, ou haver uma reacção normal à qualidade ou mediocridade do trabalho efectuado) em nome da conveniência do unânime é uma sociedade doente e que não autoriza as mediações.
Nos regimes socialistas, a idolatria do igual – camarada, camarada – obstrui a valorização das competências – camarada, camarada – e isso acarreta uma quase invariável promoção da mediocridade e o impedimento do juízo. A prazo, o corolário é o espírito de “fusão” verificável em qualquer repartição, empresa, ou célula partidária, com o unanimismo a silenciar a assertividade, a autonomia de opinião.
Nos países que saíram de empurrão do socialismo para o neoliberalismo este esquema foi “adaptado” à democracia e é em vão que o menor gesto de valia espera uma reciprocidade. Se o gesto nasceu fora das estruturas autorizadas para o reconhecimento o seu efeito é nulo. Inútil pensar que se constrói algo – executar uma boa ideia, um projecto, uma empresa — sem ter de antemão empenhado o compromisso. Não há outras mediações alternativas às autorizadas. Ora, ao contrário, o que enriquece uma democracia e a torna perene é precisamente a multiplicação das instâncias mediadoras, que são instrumentos de liberdade e de reciprocidade, à margem dos poderes instituídos.
Por isso é que, não obstante alguns deslizes, no Ocidente se faz da alternância política ou da criação de novos organismos de mediação um motor dinâmico das sociedades. Quantas mais forem as instâncias de mediação mais a democracia permite regular os egoísmos de classe ou corporativos.
3.Existem, nas cavernas do México, uns batráquios, os axolots, cuja larva nunca atinge o estado adulto, mas que pode, em contrapartida, reproduzir-se enquanto larva. Não conheço nada mais parecido com o homem.
Atente-se: qual é o mistério e a paródia com a condição humana? É que, se por um lado, não há nada que nos seja tão contrário como a exigência de superar-nos, por outro, nada é tão intrinsecamente nós mesmos como o fundo desta exigência ou o fruto desta superação. Mas quando escolhemos o caminho da facilidade, e à superação preferimos a condescendência, imitar (a oportunidade com que aderimos a corrente dominante) é aquilo a que se tende. É este tão feroz como aviltante instinto de sobrevivência que move as multidões e torna a massa colectiva uma força facilmente manipulável e controlável. O mimetismo dimana da atracção ou da coacção que a maioria exerce sobre a ténue resistência individual, e o íman nacional, hoje, confunde-se com o Poder.
E, neste quadro crescentemente corporativo o que cresce? O império do não-dito e a parcela de perguntas que não se devem fazer e que a coerção social impossibilita.
O não-dito é a força expansiva, subliminar, que faz com que um sistema se torne regime. Um regime já não permite o diálogo, nele o axioma torna-se dogma. Tudo em nome da maioria. Mas evidentemente que a breve trecho o seu fito é a defesa de interesses de alguns contra a maioria que os legitima. Sem hipóteses de mediação – pois esta é um vector de diálogo indesejável.
De facto, como ousar fazer perguntas se a situação se baliza no quadro que Daviz Simango, presidente do Município da Beira e único edil de uma grande cidade que pertence a Renamo, denunciou no Meia Noite, edição de 11 de Abril de 2006: “Neste edifício onde nos estamos (a Câmara) havia uma célula do partido, que mandámos fechar, porque achamos que qualquer encontro de qualquer que seja o partido, deve realizar-se em sede própria. Havia igualmente descontos directos no salário dos trabalhadores para o partido e nós eliminamos esse procedimento e, outra coisa, que nos notámos, é que o primeiro secretário do partido Frelimo, na cidade da Beira, recebia um salário do Município, sem trabalhar aqui...”. Afirmação que não foi desmentida por ninguém e que, pelo contrário, foi corroborada este Setembro por Raul Domingos, no programa Debate Aberto, na STV, quando afirmou com todas as sílabas que as células partidárias estão a voltar ao seio das instituições públicas.
Só que, nesta via, onde o esquema é o que dá substância à força do partido, a violência também vai crescer, como acontece inevitavelmente quando se enceta a via do bode expiatório.
4.Aventava o sociólogo Elísio Macamo, numa entrevista publicada na penúltima Proler, que falta em Moçambique um verdadeiro debate sobre o que se descortina por trás da ideia do Estado. Eu adianto, falta um debate profundo sobre o que é a Democracia.
Cito o Dalai Lama e extrapolo para a Democracia a qualidade que ele atribui ao rio: “O que é que faz fluir um rio? O facto das suas moléculas não aderirem”. Pois é, aderir torna inquinadas as águas, só a independência das moléculas lhe garante a fluência. Eis o que explico aos meus três filhos moçambicanos quando eles me perguntam o que é a democracia. E melhor não sei.
SAVANA – 08.12.2006
1 comentário:
muito boa reflexao. ajuda-me no processo em que me encontro de pensar as especificidades da democracia em mocambique.
adoraria encontrar um artigo mais actualizado sobre este caso.
Abraços
Enviar um comentário