AUSÊNCIA DE SENTIDO CRÍTICO
Em várias ocasiões ao longo deste ano – mas também nos anos anteriores – concentrei a minha atenção crítica sobre os chamados críticos. Como sempre, alguns interpretaram esse meu interesse como uma forma de cair nas graças do poder. Mesmo na minha intervenção mais recente – que procurou fazer uma distinção entre o desabafo inoportuno de Jorge Rebelo e a crítica refrescante de Carlos Nuno Castel-Branco – houve quem foi ainda capaz de vislumbrar um académico lambe-botas, algo que, naturalmente, deixou de me
incomodar há muito tempo. Mas o olhar sobre como fazemos a crítica no país parece-me importante como contribuição para um melhor entendimento da forma como nos posicionamos em relação ao que é nosso e nos define. Duma forma geral as nossas posições parecem-me bastante confusas, contraditórias e contraproducentes – algo muito próximo do que Tomás Vieira Mário chamou recentemente de “bypass” na revista “Prestígio” e que o grupo musical “Ghorwane” já havia em tempos descrito como típico dum país que está de avesso. As nossas posições parecem isto tudo porque temos dificuldades em ver na crítica o exercício de introspecção que ela exige de cada um de nós. É duma destas dificuldades que vem a apetência pela concentração da crítica nos governantes em detrimento do que está geralmente mal em toda a sociedade.
Um exemplo trivial: já concedi entrevistas a órgãos independentes de imprensa que, a meu pedido, prometeram mandar-me (algumas nem responderam ao meu pedido) um exemplar do que eles publicaram. Nunca cumpriram com essa promessa, mas, também, nunca poupariam críticas ao aparelho do estado pela sua ineficiência ou falta de brio profissional. O mais fácil para mim seria de considerar a imprensa independente moçambicana má, mas o sentido profundo da crítica impede-me de fazer isso. Não é a imprensa que está mal; é a seriedade entre nós que obrigaria uma boa parte de nós a respeitar o que promete. É difícil, entre nós, fiar-se em alguém. Saber porque isto é assim e, acima de tudo, articular isso com a ideia que nós temos do nosso país é uma condição essencial da crítica útil. E poderia dar mais exemplos. Muita gente que grita bem alto (e por vezes com razão) contra a corrupção não vê nenhum problema em favorecer os seus próprios familiares e amigos ou esperar que lhes sejam prestados favores na base de seja qual for o mérito social, económico e político que julga ter. Funcionários públicos com regalias completamente desmesuradas em relação ao tamanho financeiro do país não se coíbem de criticar o esbanjamento dos outros mais acima. E por aí fora. Não se trata de dupla moral. Trata-se de ausência de sentido crítico.
A questão é bicuda. A crítica que fazemos refere-se a ideias abstractas – integridade, transparência, boa governação – que não fazem parte do nosso verdadeiro quotidiano. No nosso dia-a-dia somos constantemente confrontados por familiares, amigos e até mesmo estranhos que nos encorajam (ou forçam com argumentos morais chantagiosos) a violar o espírito dessas ideias abstractas. O polícia que exige suborno fá-lo não só porque é ganancioso, mas também porque tem um sentido moral muito apurado. Há gente – no seu círculo de amigos ou familiar – que espera isso dele. Ou melhor, não espera que ele seja corrupto, mas sim que se aproveite da situação em que se encontra para benefício dos outros. A força normativa do ditado do cabrito que come onde está amarrado vem daí. Esta situação pode se multiplicar por várias outras, incluindo pessoas que fizeram da luta anti-corrupção sua razão de existência. Há sempre gente à espreita que quer isto mais aquilo deles. É, curiosamente, a mesma situação em relação aos escalões mais altos do poder. E porque esta situação se tornou particularmente conspícua este ano com as revelações relativas ao narcotráfico talvez seja útil usá-la para ilustrar melhor as questões.
Fonte: Jornal Notícias - 23.12.2010
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