Por Fernando Lima*
Nunca o nome de Samora Machel foi tão citado como nos dias conturbados por que passa Moçambique, depois das manifestações populares que causaram 13 mortes, na capital.
O evocar do Presidente que trouxe a independência ao país, sugere uma explicação complementar para os distúrbios convocados por mensagens de sms e destinados a protestar contra a alta do custo de vida. Com um toque messiânico, na opinião popular, Samora «não deixaria chegar as coisas onde chegaram», enfatizando o afastamento do Governo e da pequena elite que o apoia dos mais desfavorecidos, a corrupção e as negociatas em que estão habitualmente envolvidas as hierarquias do poder e a relativa opulência dos dirigentes do país que já foi orgulhosamente marxista-leninista, mas que continua a estar na cauda dos índices de desenvolvimento internacional, não obstante a assinalável performance económica verificada na última década.
Se um tecnocrata mediano pode concluir como inevitáveis os aumentos dos preços de água, electricidade, pão e combustíveis face à conjuntura internacional, a forma como foi gerida a crise em crescendo demonstra um grande autismo e incompetência da cúpula à frente dos destinos do país.
Perante os primeiros tumultos sangrentos de Fevereiro de 2008, o Governo decidiu temerariamente subsidiar os combustíveis para os transportadores privados, congelando os preços ao longo do ano de 2009, um ano de eleições gerais em Moçambique.
Os preços estavam tão desajustados que comerciantes da África do Sul e de outros países vizinhos passaram a abastecer-se em Moçambique. Violando os fundamentos do mercado, o país passou a subsidiar em combustível as economias da região.
Num país com um enorme défice comercial e dependente de contribuições externas para o seu Orçamento de Estado, contra a opinião de muitos directores do banco central, os políticos decidiram manter a moeda nacional, o metical, artificialmente forte, procurando também por esta via obter dividendos eleitorais.
Num processo muito ao estilo angolano, os aparatchicks do poder forçaram uma maioria de dois terços, afastando grosseiramente das eleições o MDM (Movimento Democrático de Moçambique), impedido de concorrer em nove círculos eleitorais, o que desencadeou represálias por parte da comunidade doadora que apoia as contas de Estado com cerca de 355 milhões de euros por ano. Os fundos externos foram congelados, durante o primeiro trimestre de 2010, e, dois meses depois, Barack Obama assinava uma ordem executiva declarando um dos proeminentes apoiantes da Frelimo como barão de droga internacional, à semelhança do que aconteceu na Guiné-Bissau.
Decorrentes das asneiras económicas e do braço-de-ferro com os doadores, os efeitos psicológicos e materiais começaram a ser cada vez mais evidentes, com a escassez de divisas, a depreciação acelerada do metical e o aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade que são importados sobretudo da África do Sul. O dólar disparou dos 27 para os 34 meticais, em Abril. O Rand apreciou-se 52%, em seis meses. Em Maio, a inflação atingia, em Moçambique, os dois dígitos.
Porém, o discurso governamental continuava triunfalista. A crise era «um fenómeno externo» e a contenção era praticamente palavra morta. O Governo fez aprovar ordenados a tempo inteiro para membros das assembleias provinciais que apenas se reúnem duas vezes por ano, o Presidente Armando Guebuza continuou a defender a entrega de 7 milhões de meticais (147 mil euros) a cada um dos 128 distritos com retornos abaixo dos 5% e quase sempre distribuídos entre os fiéis do partido no poder. Uma parte dos dignitários de Estado abre diariamente espaço nas ruas congestionadas dos bairros pobres em pomposos cortejos com sirenes e pirilampos policiais e o Presidente enraiveceu, mesmo os seus acólitos mais próximos, ao visitar uma localidade servida por estrada, a 30 quilómetros de Maputo, escoltado por seis helicópteros alugados à hora. A população diz que com Samora isto não aconteceria.
A imprensa independente, uma das conquistas do multipartidarismo implantado em 1990, todas as semanas dá à estampa novos negócios multimilionários envolvendo líderes locais e empresas estrangeiras – nomeadamente portuguesas – e nos quais são notórios a falta de transparência e o conflito de interesses.
Um dos episódios preocupantes dos levantamentos de 1 e 2 de Setembro foi a queima e o espezinhamento de fotos de Armando Guebuza junto das barricadas populares, depois de uma tentativa falhada de vandalização da escola com o nome do Presidente da República.
Neste cenário, o país é claramente um barril de pólvora com uma estratificação social galopante e uma elite de costas viradas para o sofrimento popular. Com algum cinismo, cinco dias depois de, no auge da violência, ter anunciado os aumentos como irreversíveis, o Governo veio agora dar o dito por não dito, congelando a maioria das subidas de preços.
Os sectores económicos consideram as medidas tomadas como aspirina contra uma infecção maciça, fazendo notar uma gritante ausência de massa crítica entre a elite governamental. Um economista que já foi do Governo, prevê que, a manter-se o mesmo cenário, haverá mais crises, em espaços cada vez mais curtos e receita o aparecimento de uma polícia mais bem preparada para enfrentar tumultos com balas de borracha, canhões de água e escudos que a protejam das pedras arremessadas pela pobreza urbana.
Na região, o caso de Moçambique é uma preocupação adicional. Poucos países estão imunes a tumultos semelhantes.
*Artigo originalmente publicado na edição do dia 09 de Setembro corrente da Revista Visão
Fonte: SAVANA - 17.09.2010 in Diário de um sociólogo
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