Mariano Matsinhe
(72anos), um dos símbolos da gesta de 25 de Setembro, confessa que não lhe agrada ouvir falar
de órgãos de comunicação independentes. Para a velha guarda da Frelimo melhor se a
designação passasse para órgãos independentes da Frelimo. Porque, acredita, dependentes o são
de alguma coisa. Mas nem com isso, o homem que abandonou a engenharia civil
(cursava o segundo ano) em Portugal para se juntar à Frelimo em 1962, não se
coibiu em conversar com o SAVANA por
quase uma hora, revivendo um percurso político sempre em reconstrução. Pelo
caminho disse, entre outras revelações, que havia uma certa precipitação (necessária?) na
tomada de decisões, que os campos de reeducação não foram um erro e que, volvidos quase 45
anos após o início da luta, não se arrepende de nada. Nem dos fuzilamentos, apesar de
reconhecer alguns excessos do SNASP, um órgão do regime e de triste memória. Acompanhe alguns
extractos da conversa mantida última sexta-feira em Maputo.
Sr. General, passam
34 anos após a proclamação da independência nacional. Este Setembro comemoramos
45 anos após a insurreição armada e 35 anos dos acordos de Lusaka. Quando olha
para trás, que
balanço faz deste Moçambique?
Olha, tenho a impressão
de que foi tudo correcto. Havia muita agitação, naturalmente, por causa do
carácter do colonialismo que tínhamos. E nós éramos jovens. Eu próprio que sou
mais velho que muitos líderes da Frelimo tinha 25 anos quando me juntei à
Frelimo. Havia uma certa precipitação na tomada de decisões. Mas era
necessária. Porque se a gente começasse a pensar nas consequências, as coisas
seriam diferentes. Nós tínhamos a vantagem de sermos jovens.
Não éramos casados e não
tínhamos filhos. Não tínhamos o peso das consequências. A gente pensava como
jovens e só queríamos a independência. Outros eram mais velhos, já tinham
casado e tinham filhos e diziam o seguinte: vamos combater até ao fim, se
ficarmos independentes os nossos filhos vão continuar com a batalha até à
independência.
Estávamos preparados
para isso, para o sacrifício máximo pela independência de Moçambique.
Quando se junta à
Frelimo vinha da UNAMI...
Eu pertencia, assim
ligeiramente, à UNAMI. Mas eu fugi de Portugal. Abandonei os estudos. Estava a
fazer engenharia civil. Vim cá de férias. Os portugueses pagaram-me férias.
Havia muitos outros estudantes de todas as
colónias portuguesas.
Quando tentei uma saída de Portugal para cá, não consegui. Então aproveitei a
vinda para cá e o meu pai vivia na fronteira com o Malawi. Isso era uma grande
vantagem para mim e, portanto, foi fácil escapulir para o Malawi e daquele país
avançar para a Tanzânia. Mas no Malawi tive que ser da UNAMI para ganhar credibilidade.
Porque podiam
desconfiar, tendo em conta que vinha de Lisboa. Este episódio deu-se em 1962.
Qual é a sua opinião
sobre a Frelimo de hoje em relação àquela que ajudou a moldar. É diferente?
A Frelimo sempre se
transformou em função da realidade. Não podia ser a Frelimo de 1962. A Frelimo sempre se
adaptou às circunstâncias e eu próprio me orgulho de pertencer a esta
organização. Não é uma organização dura, tipo
começou assim e vai
terminar assim. Vai-se moldando à medida das circunstâncias. Muitos dizem que a
Frelimo é constituída por velhos. É mentira. Alguns líderes da Frelimo são
realmente miúdos, crianças. Edson Macuácua, por exemplo, é jovem. Não é da
minha idade.
O que pensa dos jovens
dentro da Frelimo, acha que têm alguma chance actualmente?
A chance não pode ser só
para os jovens da Frelimo.
Estamos a falar de
liderança dentro da Frelimo...
Sim. Edson Macuácua era
da OJM. Hoje é secretário do Comité Central para a Mobilização e Propaganda.
Eles têm espaço na liderança. Temos vários outros exemplos de jovens na
liderança.
GERAÇÃO
PÓS-NACHINGWEIA
Em 2014, o actual
Presidente da República, segundo a actual Constituição, não pode se
recandidatar. Qual será o perfil do próximo candidato da Frelimo?
Isso depende do Comité
Central. É o órgão que escolhe o candidato.
Mas sendo da velha
guarda da Frelimo e com autoridade, deve ter alguma ideia…
Não. Nunca pensei nisso.
Já pensou no perfil
pelo menos …
Não. Mas o perfil é
sempre o mesmo: ser da Frelimo. Quanto a mim, claro.
Mas acha que em 2014
será feita a transição, no sentido de entregar a liderança do partido a alguém
da geração pós-Nachingweia?
Por que não? Quando
cheguei à Tanzânia eu tinha 25 anos e agora já tenho 72. Nesta altura o
Marcelino terá por aí 85 anos.
Então, é uma geração
em vias de extinção…
Sim.
Em 2014 será
importante fazer essa ponte…
Exactamente. É possível.
Mas eu não posso dizer isso hoje, porque o Comité Central pode decidir outra
coisa.
…Continuar na mesma
linha…
A linha, na minha
opinião, não é o facto de ser antigo combatente. É a confiança política que nós
temos que ter com a pessoa que está a dirigir o partido. Isso é que é o
fundamental. Temos que estar tranquilos de que estamos a ser dirigidos por uma
pessoa que vai dar seguimento à política da Frelimo. Isso é que é o essencial.
Mas emergem algumas
correntes que dizem que se a Frelimo conseguir dois terços no Parlamento nas
eleições de 2009 vai mexer na Constituição para permitir que o Presidente
Guebuza concorra para um terceiro
mandato. É possível.
Apoiaria essa decisão?
Quem declarou o
multipartidarismo em Moçambique não foram as negociações de Roma. A discussão
de Roma foi feita quando nós já éramos multipartidários. Alguns pensam que nós
fomos forçados ao multipartidarismo por causa do Acordo de Roma, não foi isso.
Não foram forçados?
Nós decidimos por força
das circunstâncias. Houve uma consulta à opinião pública. A maioria queria
partido único.
A minoria, das partes
urbanas fundamentalmente, é que sugeriu o multipartidarismo.
Mas alguém vos
obrigou a essa consulta... Não foi assim?
Não senti isso. Em 1990
redigimos a aprovámos a nova Constituição. Começaram a surgir novos partidos
mesmo antes de Roma e as eleições só foram em 1994.
Numa palestra que o
General orientou na Academia de Ciências Policiais (ACIPOL), em Abril de 2008,
disse que a Frelimo ainda vai governar o país por mais 100 anos. Tem saudades
do passado?
Eu não disse 100 anos.
Disse mil anos. Agora vocês estão a reduzir (risos). A minha opinião é que
realmente até hoje ainda não surgiu nenhuma alternativa à Frelimo. Claramente
eu sabia, quando eu disse isso estava muito consciente que amanhã as coisas
podem mudar completamente e surgir um partido mais forte que a Frelimo.
E também disse que
quer que a oposição não tenha nem um assento no Parlamento?
Eu agora vou ser nomeado
para a província de Tete. A minha força é para 100%, não é para 80%, 70%, etc.
Se eu não conseguir, vou ter essa tranquilidade que fiz todo o esforço para
100%, mas consegui 70%,
60%, etc. Mas o grande
esforço é de 100%.
Alguns da Frelimo acham,
incluindo o veterano Marcelino dos Santos, que 2009 será o enterro político da Renamo
e de Afonso Dhlakama. Tem a mesma visão?
(risos) Vamos ver, a
gente não sabe. Podemos pensar muita coisa, mas a realidade da democracia é
outra. É por isso
que a gente costuma
dizer e sempre dissemos que não podemos declarar vitórias antecipadas. Você
pode fazer esforço para ganhar com esses lugares. Mas pode ganhar com menos, e
até pode perder. Agora dizer que será o enterro político da Renamo. Enterro
político em que sentido? Da organização?
Acabar com a Renamo..
Mas ela pode viver
ainda. Em democracia existem essas coisas.
A Frelimo obter 100% no
Parlamento. Acabar com a oposição e voltar para um regime de partido único,
como nos tempos da Assembleia Popular…
Sim. Até pode existir.
Mas o multipartidarismo não morre. Ter 100% na Assembleia da República e nas
assembleias provinciais e todo o Governo, naturalmente. O multipartidarismo não
morrerá. A oposição continuará a fazer barulho nos jornais chamados
independentes. Esse vosso (SAVANA), por exemplo, o Zambeze, etc. Podem
continuar a fazer barulho, a dar a sua contribuição para o processo de
desenvolvimento de Moçambique.
Mas não era melhor ter
uma oposição no Parlamento a dar essa contribuição?
Se eles ganharem.
A morte das ideologias
Algumas correntes
afirmam que as ideologias morreram… concorda?
As ideologias nunca
morrem. Adaptam-se às circunstâncias do momento.
Qual é a actual
ideologia da Frelimo?
Tenho a impressão de que
é Socialismo. Porque temos uma política social que nunca foi alterada. É
verdade que declarámos o multipartidarismo, etc., mas a política social do
nosso Governo não se altera. Defesa do trabalhador e da
parte social mais
vulnerável, criança, mulher, velho. Continuamos a dar o apoio social.
Alguns sectores acham
que dentro do partido Frelimo há grupos, embora não formais. Jorge Rebelo já o
disse numa entrevista ao SAVANA...
Houve sempre grupos,
desde a luta de libertação. Como poderia não haver grupos.
Qual é o segredo para
que várias tendências continuem uma difícil convivência no seio do partido?
O segredo é saber
exactamente para onde é que vamos. Nós muitas vezes dizíamos que não importa se
é baixinho, gordo, magrinho, etc., mas saber para onde vamos. Podemos ter
pequenas diferenças, mas não são importantes. O mais importante é, por exemplo,
dizermos que hoje temos uma agenda no país que é acabar com a pobreza em
Moçambique.
Estamos orgulhosos
porque alguns da oposição concordam connosco que é preciso acabar com a pobreza
em Moçambique.
Temos um fim comum e é
isso que nos força a trabalhar. Naturalmente, eles podem reparar numa coisa que
para eles não está certa, que é preciso corrigir aqui e acolá, mas estamos a
trabalhar para aquele fim comum.
Está a dizer que não há
uma convivência difícil entre esses grupos dentro do partido?
Não há. Absolutamente
não. Estou a falar como veterano, tenho setenta e tal anos. Já tivemos
situações muito mais difíceis durante esse processo. Agora não surgem grandes
problemas.
Os negócios dos
camaradas
Muitos entendem que a
fronteira entre os interesses públicos e privados de alguns dirigentes não está
muito bem clara, o que resvala para uma situação de conflito de interesses. É
uma fórmula africana de fazer negócios?
Eu não sei, porque não
sou negociante. Sempre que eu penso, penso no meu povo.
Mas tem muitos
camaradas que estão no ramo empresarial…
Sim. Alguns camaradas
têm alguma coisa. Mas há muitos jovens moçambicanos que têm muito dinheiro. Até
Mukheristas. Elas têm
muito mais dinheiro do que qualquer dirigente da Frelimo. Mas eu ainda estou a
pensar sobre qual é o segredo delas terem muito dinheiro. Acho que o segredo é
o seguinte: ganham dinheiro, mas comem tal como comiam dantes. Gastam pouco.
Aquele dinheiro todo é guardado. Moçambique tem realmente essa capacidade de guardar
dinheiro, poupança. Vimos isso na troca da moeda, escudo para metical.
Encontrámos senhoras no campo com muito dinheiro enterrado, mas a viver mal, a
vestir-se e a alimentar-se mal. Trocaram com metical e talvez voltaram a enterrar
porque não havia bancos nessa altura.
Eu penso nesses termos.
Por exemplo, estive num jantar depois da reunião do Comité Central. Nós
leiloámos uma camiseta com a assinatura do Presidente da Frelimo. A camiseta
começou por 25 mil meticais e terminou por 500 mil
meticais. O valor ia
subindo gradualmente e apareceu uma senhora a propor 300 mil meticais, uma
moçambicana normal. Eu olhei para ela e perguntei-me onde é que arranjou 300
mil meticais para uma camisola. O indiano ganhou,
eles têm muito dinheiro.
Fiquei muito admirado e concluí que há gente com muito dinheiro neste país. Eu
também gostaria de apoiar o partido, mas eu não tenho.
Concorda com a posição
do camarada Alberto Chipande sobre a riqueza dos dirigentes da Frelimo?
A minha opinião continua
a mesma. Ele não queria dizer bem riqueza, mas que o antigo combatente tem o
direito de viver condignamente neste país.
Sabe, eu sou muito
antigo. Nos anos 40, 50, um preto ter um rádio era tido como rico. Simples
rádio. Não é televisor, nem computador. Hoje o camponês no distrito escuta
rádio todos os dias. Portanto, a riqueza é uma coisa relativa. Ele queria dizer
que o antigo combatente devia ter mais do que tem hoje. Devia ter uma vida mais
decente, saber que eu como hoje, amanhã como e depois de amanhã como. Ter roupa
decente.
Isso não está a
acontecer?
Algumas pessoas têm
iniciativa. Têm pequenas pensões, barracas. Mas outros não têm essa iniciativa.
Vivem na miséria.
Há alguns camaradas
que são ricos?
Eu não conheço nenhum
deles.
O Presidente da
República (Armando Guebuza) não é rico?
Ele é Presidente da
República. Se ele é rico eu não sei.
Mas é público que ele
tem muitos interesses empresariais…
Não sei se tem muitos
negócios. Também não sei se os seus negócios dão muito dinheiro.
O General disse que não
tinha negócios. Mas sabemos que é accionista em algumas empresas. Essas
empresas geram bons lucros?
Depende da percentagem
com que você entra. Há uma empresa em que sou sócio (um banco). Tenho 2.0%. É insignificante.
Mas ter 2.0% numa Mozal,
por exemplo, é muito dinheiro…
Sim. É muito dinheiro.
Mas eu tenho 2.0% num banco praticamente falido. Já não distribui dividendos,
nem nada.
Mas eu não saio. Fico
lá. É um banco moçambicano. Gosto dele.
Para além desse
banco, em quais outras empresas está envolvido?
Eu realmente não tenho
negócios. Sou presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ceta. Normalmente as
empresas fazem Assembleia Geral uma vez por ano. E sou também presidente da
Mesa da Assembleia Geral da EMOSE. Dão-me alguma coisa, e sou pensionista do
Estado. Eu estava a precisar desse dinheiro para educar os meus filhos. Estavam
numa universidade privada e isso é muito dinheiro. Tentaram na Universidade
Eduardo Mondlane e não conseguiram.
Tenho sete filhos. Seis
já se formaram no ensino superior e agora só fiquei com um em casa. Estou mais
aliviado agora.
Hoje com esse dinheiro
da EMOSE, Ceta e a reforma e sem a despesa dos filhos, sinto-me mais ou menos
descansado.
Não me falta comida e,
como vês, estou a tomar café.
IMPRENSA E CORRUPÇÃO
Os órgãos de comunicação
privados começaram a surgir na década 90, após a abertura constitucional.
Sente-se confortado com o progresso do sector no geral, daquilo que ouve, vê e
lê…
Não. Nem pensar. Mas o
que me desagrada muito é vocês se chamarem independentes. Independentes de
quem? Até podem dizer independentes da Frelimo, mas somos dependentes de uma
outra coisa qualquer. Eu não quero avançar mais, mas muitos não são nada
independentes, são dependentíssimos. Agora dizer independentes da Frelimo, isso
está
bem.
Numa entrevista recente
que concedeu à revista Chama, do Gabinete da Primeira Dama, disse que
certa imprensa não era patriota. Pode citar nomes?
Não. Não cito. Vocês são
pessoas adultas, vêem e lêem e aí vão avaliar se é patriota ou não é.
O que acha do jornal SAVANA.
É patriota?
Não digo nada. Não me
faça essa pergunta, porque não vou responder.
Que critérios usa para
avaliar o patriotismo numa imprensa?
É complicado. Olha, eu
já tive uma conversa com um jornalista americano há tempos. Eu disse assim: mas
vocês são muito agressivos, críticos, atacam o Governo… Ele disse-me: olha meu
amigo, você diz que nós atacamos o
Governo, mas se analisar
globalmente a nossa actuação nós somos muito patriotas. Criticamos para que o
nosso Governo seja realmente americano. Nunca me esqueci disso. Quando Obama
chegou mandou parar com a tortura. Mas se a gente tortura em Moçambique dizem
que são comunistas, estão a violar os direitos das pessoas. Você, para criticar
tem de estar limpo dos crimes que está a atribuir aos outros.
Corrupção
Entende que a guerra
contra a corrupção está ganha em Moçambique?
A guerra contra a
corrupção é uma guerra permanente. Hoje, em nenhuma parte do mundo se disse que
a guerra contra a corrupção terminou. E isso não é só em Moçambique, na Europa,
nos EUA, há casos de corrupção que são
revelados e condenados
pelas estruturas do Estado. Mesmo envolvendo pessoas do Estado, elas são
levadas ao tribunal.
É uma guerra permanente
que devemos fazer, mesmo que não haja crimes de corrupção os nossos olhos devem
estar sempre atentos para qualquer acção nesse campo.
Mas o porta-voz da
Frelimo, Edson Macuácua, disse na recente reunião do Comité Central que estava
ganha, pelo menos, no sector público…
Ganhar não significa
eliminar. Talvez controlada. Mas ganhar, não significa acabar completamente.
Nós não somos Deus para dizer que a partir de agora não há isto ou aquilo, e
para nunca mais haver.
MDM melhor que a
Renamo
Como vê o MDM?
É um movimento novo. E
na minha apreciação é constituído fundamentalmente por ex-membros da Renamo.
Vamos ver como é que
eles vão dirigir esse MDM. Recentemente, fizeram uma viagem pela Europa e
contactaram por onde a Renamo passou. Mas tenho a impressão que o MDM é melhor
que a Renamo.
Então, acha que vai
fazer frente à Frelimo e a Guebuza…
Desta vez não. Nem
pensar. Eles vão dar alguns ensaios políticos. Precisam ainda de se reforçar. E
eles não estão suficientemente reforçados para um embate contra a Frelimo. É a
minha opinião. Agora para o futuro vamos ver. Mas desta vez realmente penso que
nós estamos muito mais fortes do que nunca. A Frelimo de hoje parece aquela dos
pós-Luta Armada. Muito forte.
O que dinamizou a
Frelimo. Foi a chegada de Armando Guebuza à liderança …
Não. Não é a chegada de
ninguém. É a percepção nossa, sobretudo, da Comissão Política que analisa
questões políticas. Houve um aperto em 1975 e, gradualmente, começámos a
desapertar. Nós não éramos membros do Banco
Mundial, nem do FMI. Nos
princípios da década 80 aderimos a essas instituições. Nós vimos que a
realidade indicava que devíamos fazer isso para o nosso desenvolvimento. Foi
uma boa decisão e hoje estamos a fazer muita coisa graças a essa abertura.
A guerra dos 16 anos
atrasou muita coisa?
Sim, com certeza. Uma
guerra é sempre prejudicial ao desenvolvimento.
SNASP e Campos de
Reeducação
Numa entrevista ao Notícias em Outubro de 2006, a-propósito da
passagem dos 20 anos após a morte de Samora Machel, chegou a dizer que a
actuação de alguns agentes do extinto SNASP (Serviço Nacional de Segurança
Popular)
não era do agrado dos
cidadãos. Que tipo de excessos cometiam?
Tortura. Eu fui
ministro da Segurança e sei disso. Fazia campanhas dentro da Seguraança.
Incluindo comícios públicos aqui em Maputo. Era para denunciar as pessoas da
Segurança que utilizavam o nome do SNASP para fins pessoais. Nós éramos
extremamente intransigentes nessa altura e o SNASP tinha muita autoridade na
altura. As suas funções eram amplas.
Era quase autónoma?
Sim. E não só. É preciso
ver que o SNASP não prestava contas ao Estado, mas ao presidente do partido
Frelimo.
Foi por isso que a gente
mudou para SISE. Imaginem se o SNASP ainda funcionasse com as mesmas funções
que tinha, e a Frelimo perdia as eleições em 1994. Nós teríamos uma situação
muito interessante que um órgão do Estado como o SNASP prestar contas à
oposição, neste caso ao presidente da Frelimo como estava estipulado. Seria
caricato e numa situação de multipartidarismo seria inadmissível. Tivemos que
mudar, e eu participei na mudança e acho que fizemos bem.
Os campos de
reeducação foram um erro político?
Não, não foi nenhum
erro. Nunca. Foi uma forma de reeducar pessoas. Quem ia aos campos de
reeducação? Eram marginais da sociedade.
Mas houve exageros?
Ah, houve exageros, mas
a reeducação existe até nos Estados Unidos. As prisões livres onde as pessoas
vão trabalhar e depois voltam para a cadeia para dormir é reeducação.
Na entrevista ao Notícias
a que fizemos menção anteriormente, disse que a pena de morte era contra os
inimigos. Inimigos de quem? Considera de inimigos todos que foram sacrificados
em nome da Revolução?
Inimigos da nossa linha.
Inimigos da nossa moçambicanidade. Por exemplo, há um que foi fuzilado na
fronteira com o Zimbabwe, cooperava com Ian Smith e Ian Smith era nosso
inimigo. Quem coopera com nosso inimigo é nosso inimigo também. Eu não estou
arrependido de nada, aqueles que morreram, morreram porque pediram para morrer.
Cidadão comum
moçambicano, obediente da lei, vivendo como moçambicano, nunca foi fuzilado. Os
que foram fuzilados estavam contra a Revolução e contra os desígnios da pátria.
Não eram adversários, eram inimigos que estavam contra o desenvolvimento de
Moçambique.
Na biografia de Urias
Simango, “Um Homem Uma Causa” de Bernabé Lucas Nkomo, o General aparece a dizer
que o Bureau Político não foi informado sobre o fuzilamento de alguns presos
políticos. E que Samora não queria ver aqueles homens, caso de Urias e esposa,
mortos. Ele queria mostrar-lhes o Moçambique independente com que sonhava. Como
foi possível?
Foi possível porque
achou-se que a condenação daquela gente foi feita pela Frelimo, portanto, eram coisas
da Frelimo. Não tinha nada a ver com o Estado. É verdade que o Bureau Político
devia ser
informado, mas não foi.
Por que é que não foi não sei. É preciso ver que aquela gente foi condenada
antes da independência e na Frelimo tínhamos a pena de morte. Todos aqueles que
saltassem para o inimigo eram tidos como inimigos e eram fuzilados. O primeiro
fuzilamento de que me lembro foi em 1965 ou finais
de 1964, de um indivíduo
chamado Said, em
Cabo Delgado. Era guerrilheiro, pegou na arma e foi invadir
as populações para roubar galinhas. Foi fuzilado e fuzilámos muito mais.
Durante a guerra não se pode brincar. Multipartidarismo durante a guerra é
mentira. Você não faz guerra nenhuma. Alguns perguntam, por que é que não
permitimos que os outros também lutassem pela independência de Moçambique sem estar
necessariamente na Frelimo? Há uma regra que todo o militar conhece: não pode
haver vários comandos no mesmo sítio. Pode haver vários exércitos, mas um
comando comum. Não pode haver vários comandos e nós recusámos isso durante a
luta armada.
No mesmo livro, é
citado como tendo dito que Samora foi pressionado a mandar fuzilar presos políticos.
Quem o terá pressionado?
Sim, penso que foi
pressionado. Agora quem o pressionou, não sei. Mas foi pressionado porque ele
disse uma coisa e não podia mudar para outra.
Mas sabe dizer se
foram pressões internas ou externas?
Penso que não foi uma
força externa.
Naquela altura só
podia ser uma pessoa ou pessoas com muita influência sobre Samora…
Sim. Tinha de ser uma
pessoa com muito poder.
Tem ideia de quem
terá sido, dada a sua posição da Frelimo?
Não.
Como é que se sentiu
quando teve conhecimento do fuzilamento de Uria?
Naturalmente, eu fiquei
um bocadinho ressentido. Mas que era norma na Frelimo fuzilar pessoas era.
Samora disse que não ia mandar fuzilar, queria que eles ficassem lá para um dia
serem soltos, fazê-los passear por todo o país e ver o que estávamos a
construir.
Para além de camaradas,
tinha outras relações, como de amizade, por exemplo, com Urias Simango durante
a luta?
Ele era vice-presidente
da Frelimo, (risos) ele era meu chefe.
É verdade que no II
Congresso da Frelimo, o General Matsinhe estava na lista de Urias Simango que
disputava a presidência da Frelimo com Eduardo Mondlane?
Não. Naquela altura não
havia listas. Hoje há candidato fulano, sicrano, beltrano que querem ser
presidente. Ali não havia listas, engraçado, talvez era desconhecimento nosso.
Como procederam,
então?
Chegámos lá, reunimos e
decidimos que vamos eleger o presidente da Frelimo. Cada qual escrevia no seu papelinho
Mondlane, Urias Simango… No fim contaram-se votos e Mondlane tinha mais votos.
Já passam 40 anos após o
II Congresso, pode dizer qual foi a sua escolha?
A votação era secreta.
Secreta à nossa maneira, porque a gente escrevia nomes. Hoje é cruz. Pela
caligrafia podia-se descobrir quem votou em quem.
Em quem votou senhor
General?
Ele era meu padrinho.
Tinha de votar nele.
Quem? Urias Simango?
Não. Eduardo Mondlane.
Era meu padrinho de casamento. Ah, mas não sei se nessa altura já era meu
padrinho.
Mas quase todos
reconhecíamos Eduardo Mondlane como dirigente. Eu comecei a pensar nisso aqui
em (ex) Lourenço Marques. Ouvi falar pela primeira vez de Mondlane aqui em (ex)
Lourenço Marques, sobretudo, quando me filiei ao Núcleo dos Estudantes Secundários
Africanos, no Centro Associativo em Xipamanine. Vim a saber que quem formou o núcleo
tinha sido Eduardo Mondlane. Cada um sentia que aquele é um dirigente. A gente
não dizia que você é nosso líder, você vai ser presidente amanhã. Achávamos que
ele tinha força suficiente para correr com os portugueses aqui.
Como? Ninguém sabia
nessa altura. Não era uma pessoa desconhecida.
Alguma vez sonhou ser
presidente de Moçambique?
Eu? Nunca. Nem me fale
sobre isso. Agora estou reformado tranquilamente.
Mas quando era jovem,
nunca sonhou?
Nunca pensei nisso. Nem
sei se havia pessoas que pensassem ser alguma coisa depois da independência. Eu
próprio quando fui chamado, era representante da Frelimo em Lusaka. E quando éramos
chamados íamos preparados para qualquer eventualidade, qualquer tarefa.
Levávamos farda militar e civil, porque não sabíamos qual era a missão. Se fosse
para o interior calçávamos botas e farda militar, se fosse para o exterior púnhamos
fato civil. Cheguei em Dar-es-Salaam, isso em 1974, e o Presidente disse assim:
Mariano você vai ser ministro do Trabalho. O quê? Você vai ser ministro do
Trabalho. Eu respondi que nunca tinha sido ministro na vida. O Presidente
Samora disse-me que Chissano também nunca foi ministro, vão lá batalhar,
aprendam. Fiquei assustado e perguntava-me: o que é ser um ministro? O que é
que faz um ministro? Daí não regressei a Lusaka para buscar outras coisas,
parti logo para Lourenço Marques.
Para o Governo de
Transição?
Sim, Governo de
Transição. Naquela altura todo o Governo era composto por portugueses. Os
poucos moçambicanos eram serventes. Começámos a aprender pouco a pouco, cada
dia era anotar coisas novas. Mais tarde descobrimos que um ministro é um
administrador. Um médico podia ser ministro, tratar bem os quadros, levar os quadros
a cumprirem com a política definida para aquele ministério. Nós quando
chegámos, a nossa preocupação central e principal era a tomada do poder. Eu
lembro que como ministro do Trabalho recebi pessoas que vinham reclamar
salários, fui preterindo nisto e naquilo e realmente o conselho que tivemos no
Governo de Transição era que sim senhor essas preocupações pequeninas devíamos
tratar, mas a preocupação nossa é a tomada do poder. Isso era fundamental em
1974 e 1975. Depois disso vamos ver o que fazer.
Fonte: Savana – 04.11.2009
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