As histórias dos “sete milhões”
O Acesso ao Fundo de Investimento de Iniciativas Locais, vulgo “’sete milhões”, está envolto em várias histórias interessantes, como constatou há dias a nossa reportagem durante a II Sessão Extraordinária do Conselho Consultivo (CC) distrital de Marromeu, em Sofala.
São histórias que partem desde a base, onde os projectos são aprovados até se chegar ao desembolso dos fundos por parte do Governo. Fala-se, por exemplo, de que lá nas localidades e povoações muitos interessados acabam obtendo o Bilhete de Identidade (BI) só quando se vêem na contingência de conseguir fundos, dado que esta constitui uma das cláusulas do contrato, a par da conta bancária, esta que, à semelhança do documento de identificação, também é aberta para satisfazer este princípio.
Segundo alguns depoimentos dos próprios membros do Conselho Consultivo, muitas declarações de residência apresentadas também são falsas, havendo indivíduos que apresentam declarações de uma zona quando, na verdade, vivem numa outra. Como é que eles obtêm estes documentos, eis a questão. Uns dizem que corrompem alguns secretários dos bairros, enquanto outros defendem que as facilidades são dadas por familiares residentes naquelas áreas. Enfim, são outras inverdades neste processo de desenvolvimento distrital que se pretende.
Também há o facto de que em muitas povoações as pessoas acabam aderindo ao Fundo de Investimento de Iniciativas Locais, ou seja, aos ‘’sete milhões”, por imitação ao vizinho, pois, segundo soubemos, muitos beneficiários carecem de iniciativas concretas. Aliás, estes, segundo disseram os nossos interlocutores, fazem parte do grupo de indivíduos que acabam tendo problemas nos reembolsos.
O DILEMA
Depois de satisfeitas as condições primordiais e outras solicitadas para o efeito, conforme explicámos no outro texto, os beneficiários recebem os respectivos fundos solicitados para viabilizarem as suas iniciativas nos seus locais de origem. A partir daqui começa o dilema, pois soubemos que nem todos são honestos em seguir escrupulosamente o idealizado nos seus planos. Quer dizer, optam por desvio de aplicação, chegando alguns até a comprarem aparelhagens sonoras, bicicletas e motorizadas no lugar de investimento.
São estes que, conforme apurámos, acabam tendo dificuldades na amortização do fundo alocado, pois não encontram formas de conseguir produzir lucros para o efeito. A estes também juntam-se outros que optam pela agricultura. Estes, geralmente, alegam que não tiveram resultados porque choveu muito, ou, então, porque houve seca ou mesmo pragas!
E mais: lá nas localidades ou postos administrativos donde provêm as iniciativas também há “medo de barulho” por parte dos líderes que fazem parte do Conselho Consultivo Distrital. Estes, segundo relatos, receiam que os vizinhos, neste caso os mutuários, os ultrajem caso sejam cobrados ou persuadidos a amortizarem a dívida. Acontece, porém, que alguns mutuários aproveitam-se dos factores naturais para se justificaram ou furtarem da sua obrigação de pagar a divida contraída, sobretudo na área agrícola considerada âncora para o desenvolvimento.
Segundo apurámos, muitos até produzem o suficiente para amortizarem os valores, mas “’entram na onda”’ dos que também não pagam, ou seja, do tipo se aquele não paga e não lhe acontece nada, por que é que eu vou pagar?! Como exemplo, apontam-se alguns comerciantes de bancas fixas e outras actividades rentáveis, alguns dos quais chegam a fornecer produtos às instituições do Estado, portanto, com lucros que poderiam servir para pagamento da divida mas não o fazem.
A maior preocupação reside presentemente nos beneficiários dos fundos entre 2007 e 2008, cujos reembolsos são tidos como muito baixos em todas as zonas, com particular realce para o posto administrativo de Malingapansi.
No entanto, o administrador distrital, Tomé José, disse durante a sessão que apesar dos constrangimentos, sobretudo de morosidade no reembolso dos fundos, o Governo vai continuar a desenvolver esta acção, uma vez que tal tem em vista combater a pobreza absoluta. Ele respondia a algumas sugestões levantadas pelos membros do Conselho Consultivo Distrital para a eventualidade de se cortar o financiamento, particularmente nas áreas onde o processo se afigure insustentável em termos de retorno.
“’Não podemos ficar com os fundos sem financiarmos as comunidades, sob o risco de também sermos retirados o dinheiro para outros distritos. O que temos que fazer é garantir uma gestão transparente desses fundos, não se pagando de qualquer maneira sem observarmos os requisitos”- afirmou.
Aclarou ainda que o que deve haver a partir deste ano é o aperto de cerco e monitoria permanente aos beneficiários de modo a que o nível de retorno seja aceitável no distrito. Também disse que os membros dos conselhos consultivos a cada nível devem demonstrar maior seriedade na altura da aprovação dos projectos, não reparando, por exemplo, nas afinidades, nem na filiação partidária e muito menos na linhagem.
Assim sendo, a II sessão extraordinária do CC distrital de Marromeu, realizada há dias na sede distrital, aprovou para este ano um total de 294 projectos, dos quais 132 de rendimentos e 162 para a produção de comida. Na globalidade, todas as actividades vão consumir 7.896 mil meticais, tendo o processo de desembolso iniciado na passada quarta-feira.
CERCO NA BASE
A II sessão extraordinária do CC distrital de Marromeu decidiu como nota de cumprimento obrigatório a nível dos postos administrativos, localidades e outros povoados donde provêm os projectos, a responsabilidade de monitoria que deve ser assumida por cada área. É a nível da base, sobretudo a partir dos conselhos consultivos locais, onde as propostas são seleccionadas, passando sucessivamente para a localidade, posto administrativo, até chegar ao Conselho Consultivo Distrital para tomada de decisão final e desembolso de fundos.
No encontro, em que tomaram parte 34 dos 50 membros efectivos do CC, também ficou decidido que a nível da base deve haver monitoria e cerco aos mutuários de modo a que doravante haja honestidade na execução das acções propostas, e consequente celeridade nos desembolsos. Haver acompanhamento permanente das actividades de cada beneficiário.
Para o Padre Rodrigues, é importante que seja encontrada uma forma mais realística de modo a persuadir os mutuários a cumprir os seus compromissos.
“’Vamos utilizar outros métodos que se julgarem lógicos ou adequados para que os retornos destes fundos sejam mais céleres”- disse.
Sugeriu, no entanto, a criação de equipas de monitoria em cada região que possa articular entre os beneficiários e os conselhos consultivos de modo a fazer com que haja uma informação atempada sobre as realizações e o nível dos reembolsos.
Enquanto isso, Domingos Oliveira, membro do CC residente no posto administrativo de Chupanga, foi mais lacónico ao afirmar que houve falha na atribuição dos fundos, tendo, por isso, sugerido para que a partir deste ano seja revisto o sistema de atribuição de modo a não se incorrer em erros como os que se verificaram, pois, na sua opinião, houve pessoas que se beneficiaram mas que não mereciam devido à sua conduta duvidosa.
“’Cada beneficiário deve receber os fundos por fases, sobretudo na agricultura. Julgo que não se deve entregar todo o valor, e sugiro o mesmo procedimento para a área de comércio. Além disso, estes mutuários deveriam ser obrigados a pagar mensalmente uma verba a estipular, logo após se beneficiar dos fundos, e garantir-se o cumprimento rigoroso dos prazos”- sugeriu.
José Dom Luís, igualmente membro do Conselho Consultivo, desta feita proveniente do posto administrativo de Chupanga, foi de opinião de que em cada localidade deveria ser aberta uma conta bancária de modo a se transferir todos os valores referentes aos projectos ali aprovados, o que na sua opinião poderia facilitar o controlo.
‘’O que penso ser importante nesta ideia é que cada beneficiário não receba outra tranche enquanto não amortizar a primeira, até concluir o valor total a que tem direito. Digo isto porque agora cada um possui a sua conta bancária e ninguém o controla. Cada um utiliza o dinheiro quando e como quiser, daí as dificuldades de pagar o que deve, porque muitos nunca imaginarem possuir tanto dinheiro de uma única vez”- disse.
Por seu turno, Mouzinho Rafael, outro membro daquele órgão, defendeu a necessidade de haver maior pujança em termos de persuasão por parte dos conselhos consultivos locais aos beneficiários dos fundos. Segundo ele, cada estrutura local deve possuir plano de todos os mutuários de modo a poder exercer maior controlo, tanto do desembolso dos fundos como na sua restituição.
‘’Qual é o papel das estruturas de base onde começam os projectos? A partir da aprovação da proposta também deve haver maior preocupação de monitoria, porque senão estaremos a dar dinheiro às pessoas para desenvolverem as suas regiões sem que tal aconteça efectivamente”- referiu.
FALTAM INICIATIVAS
Ainda durante a plenária, Pinto Domingos, chefe da localidade de Nensa, apontou que o que se verifica com os níveis de reembolso significa que há grande falta de iniciativa por parte das pessoas, pois muitos chegam a levar os fundos por imitação de outros.
‘’Em Nensa há muita gente sem iniciativas. Não sabem o que fazer com o dinheiro que pedem e alguns chegam mesmo a comprar aparelhagens sonoras com este dinheiro dos sete milhões, ao invés de investirem em projectos para os quais pediram o dinheiro. No entanto, sou de opinião de que cada estrutura da localidade deve controlar os mutuários que se beneficiam dos fundos, sobretudo desde a recepção, passando pela execução das actividades até ao próprio reembolso”’-afirmou.
Francisco Filipe Muchanga, residente no povoado de Sweza, também foi outro membro daquele órgão que se mostrou contrariado com os actuais níveis dos reembolso.. Tal como outros, ele é de opinião de que a disponibilização dos fundos deve ser repartida, ou seja, por tranches de modo a garantir também a monitoria da sua aplicação.
“’àquele que não pagar tomam-se medidas convenientes”- sugeriu.
O Régulo Nhane, um dos influentes neste processo de consulta comunitária, também defendeu a criação de equipas a nível dos povoados para que haja maior controlo na aplicação do dinheiro em cada projecto. Acrescentou que “também é importante que seja reforçada a monitoria, não só sobre o grau de execução das acções, mas, também, sobre o impacto que cada empreendimento produz em cada região de modo a que das outras vezes não sejam atribuídos fundos a outras pessoas que tenham propostas da mesma actividade”’- disse.
João Jonas, chefe do posto administrativo de Chupanga, realçou o que o Chefe do Estado, Armando Guebuza, tem afirmado repetidas vezes de que o dinheiro disponibilizado para o desenvolvimento distrital deve servir apenas às populações vulneráveis.
‘’às vezes é difícil saber qual o comportamento de cada beneficiário e, por isso, muitos acabam sendo descobertos de que são desonestos após terem se beneficiado dos fundos. Estas pessoas levantam o dinheiro como se de seu salário se tratasse, enquanto os fundos vieram para combater a pobreza. No entanto, sou de opinião de que os mutuários, para além do contrato, devem assinar também um compromisso de honra para o pagamento do dinheiro porque sabemos que este processo (sete milhões) vai e deve continuar porque está a trazer benefícios para as comunidades, embora exista esta particularidade de morosidade nos desembolsos”- anotou.
O CONTRASTE
Entre 2007 a 2009, foram financiados 488 projectos nos três postos administrativos existentes no distrito de Marromeu, nomeadamente na sede, Malingapansi e Chupanga. Foram criados 1442 postos de empregos nas áreas de produção de alimentos e de rendimentos.
O administrador distrital, Tomé José disse que neste momento a maior preocupação reside no posto administrativo de Malingapansi onde o nível de reembolso contrasta com os valores ali alocados para os projectos de iniciativa local, pese embora a região possua pouco mais de 4300 habitantes. Exemplificando, disse que em 2007 foram disponibilizados 605 mil meticais mas até agora só 50 mil meticais é que foram reembolsados, enquanto em 2008 o governo alocou 716.817 meticais dos quais foram recuperados apenas 19.300 meticais. Já no ano passado, as propostas financiadas tiveram um valor total de 899 mil meticais e até agora não foi devolvido nenhum centavo.
Contrariamente a isso, no posto administrativo de Chupanga, com pouco mais de 37 mil habitantes, os reembolsos são considerados aceitáveis. Por exemplo, em 2007 a região recebeu 663 mil meticais e conseguiu reembolsar 157.950 meticais, enquanto em 2008 beneficiou de 789 mil tendo sido reembolsados 27.200 meticais. No ano passado aquele posto administrativo beneficiou de um fundo no valor de 1.065 mil meticais tendo sido recuperados somente 2.500 meticais.
Já no posto administrativo da sede distrital, os proponentes beneficiaram na globalidade de 1.462 mil meticais em 2007 tendo sido já reembolsados 410 mil meticais. Em 2008 e 2009 a mesma zona recebeu 5.883.210 e 5.699 mil meticais, cujos retornos foram de 656.700 e 49.500 meticais, respectivamente.
Só para ilustrar, desde 2007 até o ano passado foram desembolsados em todo o distrito 17.778.627 meticais para financiar um total de 488 propostas de projectos. Deste valor, até agora foram reembolsados apenas 1.289.890 meticais o que representa somente 7,7 porcento do valor disponibilizado.
“’O que decidimos visa dar a responsabilidade de monitorar a execução dos projectos aos conselhos consultivos de cada nível. Como se pode depreender, a nível do conselho consultivo distrital não conhecemos na essência as pessoas que propõem os projectos pelo que só lá nas povoações é que deve haver esta rigorosidade na selecção não só das propostas como, também, dos proponentes tendo em conta a sua idoneidade”- apontou.
O administrador de Marromeu explicou também que cabe a estas estruturas locais avaliar o estado de execução de cada actividade financiada, apoiando os seus mentores de modo a que não só se garanta o reembolso, mas sobretudo isso, que o combate à pobreza seja uma realidade, pois é este o objectivo deste fundo. (António Janeiro)
Fonte: Jornal Notícias - 06.11.2010
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