Homenagem ao Dr. Domingos Arouca
Por Luís Loforte
Fica sempre bem evitar-se a tentação de nos pormos em bicos de pé na expectativa de uma referência por algo que tenhamos feito. Pergunto-me, no entanto, sobre o que fazer quando se atribui um feito a pessoa errada. Continuar-se calado apenas porque é de bom-tom que nos não insinuemos para que nos não chamem de pretensiosos? E mesmo quando isso contribui para adulterar a História?
É pois, em nome da historiografia moçambicana, e até de justiça, que decidi escrever estas linhas, e pelas quais assumo exclusiva responsabilidade. E tudo por causa do livro do Coronel Sérgio Vieira, Participei, por isso testemunho.
No seguimento da abordagem que entendeu fazer à figura do Dr. Domingos Arouca, Sérgio Vieira afirma (pág. 182) que “Em 2008 os juristas moçambicanos homenagearam, pelo seu octogésimo aniversário natalício, este patriota, primeiro advogado negro, último presidente do Centro Associativo dos Negros da Província de Moçambique, veterano das cadeias da PIDE.”
Sérgio Vieira falta à verdade quanto à iniciativa do tributo. A homenagem ao Dr. Domingos Arouca não foi feita por juristas moçambicanos, mas sim pelos seus “familiares e amigos”, título genérico encontrado para dar corpo a uma iniciativa que partiu de cinco pessoas: João Carlos da Conceição, Pedro Loforte, Carolina Menezes, Matânia Odete Dabula e Luís Loforte. Ora, nenhum destes é jurista ou estudou, sequer, Direito. E não fora o imperativo deste desmentido, este elenco ficaria para sempre no anonimato, como foi sempre seu desejo, ou apenas conhecido como “um grupo de cidadãos moçambicanos”, para citar o intróito da biografia então lida do homenageado. Mas é bom que se diga mais qualquer coisa à volta não só à volta deste assunto, como também do livro, globalmente.
Avesso como era seu timbre a homenagens e a encómios, o Dr. Domingos Arouca recusou, durante largos meses, a ideia de um tributo público à sua pessoa. E só quando lhe mostrei a composição da equipa que tencionava formar para estar à frente do propósito, e ainda o projecto das personalidades que tencionava convidar para se pronunciarem a seu respeito se decidiu pela anuência em que tal pudesse acontecer, não fosse ouvir os cinismos de costume, como aliás estes que todos podemos conferir no Participei, por isso testemunho, de Sérgio Vieira.
Felizmente, o Dr. Arouca não os pode ler, nem ouvir, embora nos doa a nós, vivos ainda e amigos e admiradores que foram daquele intrépido nacionalista, por uma vez mais assistirmos ao vilipêndio e à conspurcação da sua memória, e sem que ele se possa defender. E isto porque Sérgio Vieira não se ficou apenas pelo erro na atribuição da iniciativa do tributo do Dr. Domingos Arouca. Já lá iremos.
Entre os convidados, de um largo espectro político e social, estiveram juristas, alguns dos quais magistrados. De juristas, juntando-se-lhes os magistrados, contavam-se pelos dedos de duas mãos. E se calhar sobrassem alguns. Convidámos muitos outros juristas e magistrados, mas primaram pela ausência. Mais tarde, alguns deles haveriam de se maçar em nos confidenciarem as razões. Não precisavam.
Acresce que às razões da ausência alguns magistrados haveriam de acrescentar o lamento pelo erro de cálculo, pois nunca imaginaram que o Dr. Rui Baltazar, então Presidente do Conselho Constitucional, lá estaria para repor a verdade histórica sobre o Dr. Domingos Arouca. Mas sobretudo porque não imaginaram que o Chefe de Estado mandasse um seu ministro (Cadmiel Muthemba) para ler uma mensagem elogiosa à figura do homenageado. Em resumo, eles e outros, não necessariamente magistrados ou juristas, fugiam à conotação com quem sempre pensou pela sua própria cabeça, algo que tanto rareia neste país de consensos forçados. Mas talvez nem precisassem de se maçar com as razões, nem com os lamentos, pois somos moçambicanos com alguma idade e suficientemente frescos de memória para não nos esquecermos do passado, de um passado que criou em muitos as “razões de força maior” para que lá não pudessem estar para “o abraçar”, para utilizar, por empréstimo, algumas passagens dos escritos de Sérgio Vieira a respeito do Dr. Domingos Arouca. E para o caso de Sérgio Vieira, como aliás não espanta àqueles que acompanham a personalidade e a postura política do coronel, lançadas a destempo, pois ciente estava de que não seria confrontado com o contraditório de quem já não se conta entre os vivos. Ainda assim, sem a habilidade suficiente para esconder a malícia que sempre o caracterizou. Numa palavra: sabujice!
“Em 1974 não aceitou integrar o Governo de Transição, como secretário de Estado da Informação. Afirmou ao primeiro-ministro Chissano que só estaria interessado se o nomeassem Governador de Inhambane, creio. Partiu para Portugal onde se instalou”
“Creio”, diz Sérgio Vieira, sem ter em linha de conta que com esse “creio” introduz um forte elemento de dúvida, a ele próprio e a quem o lê, como é o meu caso. Daí a pergunta: afirmou-o, ou não, “ao primeiro-ministro Chissano” que “só estaria interessado se o nomeassem Governador de Inhambane”? E porventura o Governo de Transição teve governadores provinciais?
“Partiu para Portugal onde se instalou.” Muito bem.
Sérgio Vieira é calculista, conhece as conclusões que daí se tiram: não tendo logrado a sua indigitação para o cargo de governador de Inhambane, o Dr. Arouca partiu para se instalar em Portugal. Quando todos nós, e o Sérgio Vieira incluído, sabemos que se o Dr. Arouca tivesse permanecido no país não teria sido sequer septuagenário, quanto mais octogenário.
Aliás, apelidar hoje de “patriota” ao Dr. Domingos Arouca por alguém ligado ao poder político dominante só foi possível depois de o Dr. Rui Baltazar dizer a verdade sobre a sua trajectória política, e também, sobretudo, após o discurso lido, na ocasião, pelo representante do Presidente da República. Para muito boa gente, que normalmente não pensa pela sua própria cabeça, as coisas só são aquilo que são depois de ditas pelo chefe. E espanta que para Sérgio Vieira, o grande paladino do conhecimento e da verdade, que está em todo o lado, ao mesmo tempo e em todos os tempos, e depois de tudo quanto escreveu no passado, buscando ruidosos aplausos dos correligionários, o Dr. Domingos Arouca passe de traidor, de inimigo público a abater e latifundiário a grande patriota e a quem não teve oportunidade de abraçar na sua homenagem. O raciocínio é simples: se Guebuza o diz, e eu preciso que ele me tenha em boa conta, também passo a dizê-lo. Veja-se como Sérgio Vieira, apesar de expulso da Tanzânia e vivendo no longínquo Magreb consegue, ainda assim, assistir ao II Congresso da Frente de Libertação de Moçambique, quase nos descrever as reacções faciais dos seus delegados, de assistir aos interrogatórios a N’Kavandame e Simango. Enfim, ele é, em pessoa, a História de Moçambique.
E o que posso concluir de tudo isto, ou seja, do livro Participei, por isso testemunho?
Em primeiro lugar, que a partir de um facto, já aqui desmentido, posso inferir que o resto, ou muito do que ele diz é pouco sustentável; que o nosso coronel apenas crê que muitas coisas se passaram conforme o seu desejo e interesse, e não como ocorreram; que Sérgio Vieira formatou os factos de acordo com a sua conveniência, e sobretudo aqueles em que sabe que não terá o devido contraditório; que tendo sido politicamente influente na História recente do nosso país, Sérgio Vieira pode ter crido em muitos factos da nossa História (ainda por escrever) e, por via da sua configuração conveniente, determinado muitos amargos de boca por que passaram muitos patriotas moçambicanos, e se calhar até o próprio Dr. Domingos Arouca.
E para terminar, gostaria de me socorrer das palavras sábias saídas de um homem que conheceu o percurso político e humano do Dr. Domingos Arouca, e não precisou de calcular o tempo e a circunstância para nos deixar o seu testemunho:
“A História desnuda-se e revela-se em toda a sua complexidade a longuíssimo prazo, e mitos de hoje podem amanhã reduzir-se às suas verdadeiras dimensões, se não mesmo desaparecer, recuperando-se do olvido factos e personagens que ficaram envoltos em denso nevoeiro.
Por isto esta ocasião é também uma oportunidade para resgatar essa parte da nossa História e trazer, à memória de uns e ao conhecimento de outros, esse combate pela liberdade de Moçambique que também foi protagonizado pelo Dr. Domingos Arouca.
(...) Enorme foi o preço que pagou pela sua verticalidade, pela sua coerência, pela sua determinação em estar do lado do povo e do país. Nessa altura, acreditava-se em ideais, lutava-se por eles até às últimas consequências, aceitavam-se sacrifícios.
Os predadores das riquezas do país e do trabalho dos moçambicanos, esses, eram, então, os colonos.
O país mudou, o mundo mudou, agora vivemos outras realidades e contextos, e já não estamos tão seguros sobre se ainda existem ideais, sonhos e valores.
Mas sabemos, isso sim, de ciência certa, que ao saudarmos o Dr. Domingos Arouca, ao desejarmos-lhe muita saúde e muitos mais anos de vida, estamos a saudar o que de melhor foi capaz de dar um ilustre filho do povo moçambicano, e estamos a saudar outros heróis que, inspirados no seu exemplo, estão para vir e que saberão resgatar, com novos valores, um diferente combate libertador, por outros ideais e esperanças que verdadeiramente sirvam o povo moçambicano.” (Dr. Rui Baltazar dos Santos Alves.)
Fonte: Savana - 29.10.2010 in Diário de um sociólogo
2 comentários:
Esse livro ainda vai dar muito que falar...
De facto, que me lembro não há livro em Mocambique que tenha dado muito que falar como o de Sérgio Vieira.
Houve muitas fantasias nesse livro.
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