Por Raúl Chambote
Falacioso e intelectualmente desonesto é o argumento que sustenta que o sector público é viveiro e propagador da corrupção. Embora permanentes reformas sejam necessárias ao sector, verdades sobre corrupção ainda estão por ser ditas.
O presente texto defende que o se denomina de corrupção não é um fenómeno exclusivamente do sector público, quer seja nos Países Desenvolvidos (PDs) ou País em vias de Desenvolvimento (PvDs). Actos ou prácticas de corrupção – “pequena e grande corrupção” - de vária ordem podem também serem observados no sector privado, sector das Organizações Não-Governamentais (ONGs), sector das Organizações Religiosas (ORs) e sector da Economia Informal (EI). O imaculado sector de doadores ou parceiros de cooperação, entanto que representações de interesses institucionais, é igualmente passível de questionamento quanto à sua aversão a cultura de corrupção. As assunções deste argumento deriva do facto de o fenómeno corrupção não ser exaustiva e objectivamente justificável na base de postulados quantitativos que as instituições financeiras internacionais anualmente apresentam sobre o sector público em Moçambique e/ou noutros Estados. O texto defende uma investigação mais alargada sobre corrupção em Moçambique que inclua observação e análise sobre prácticas de corrupção – pequena e grande corrupção - no sector privado, sector das ONGs, sector das ORs, sector da EI e o sector dos doadores, com enfoque nas interacções políticas e sócio-económicas, quer seja desses sectores entre si, quer seja como as pessoas interagem com aqueles sectores. Essa abordagem, talvez, nos oferecesse uma visão mais abrangente do fenómeno dos meandros das práticas de interacção sócio-económicas no mundo da corrupção.
Desde os meados da década de 90 a minha geração tem sido bombardeada pelos diferentes canais de comunicação social nacional e internacional sobre corrupção, apropriação ilegal de fundos, abuso de poder e outros. Embora sejam inegáveis as conjecturas sobre os meandors da corrupção em qualquer sociedade humana, a correlação entre corrupção, apropriação ilegal de fundos e/ ou abuso de poder tem sido excluída nas sondagens, análises e relatórios apresentados por vários consultores às instituições internacionais.
Enquanto reclamações sobre corrupção no sector público tem enfoque na apropriação ilegal de fundos, percebida e confundida por alguns segmentos da sociedade como abuso de poder por parte de superiores hierárquicos ou governantes, no sector privado apropriação indevida de fundos já não se enquadra na esfera da ilegalidade. Entende-se como sendo “cobertura indispensável à percentagem de risco no orçamento”; “ajuste orçamental”; “erros de sobre-facturação” ou sub-facturação como “necessária fuga ao fisco” tudo com vista a maximizar os fins para os quais um determinado empreendimento económico foi elaborado. Enquanto muitos se queixam do efeito nocivo da corrupção, escassas são acções que visam, por exemplo, travar prácticas de sobre-facturação nos finais de um ano de exercício económico ou na importação de viaturas usadas em Moçambique. Ou seja, quando em tempo útil do exercício económico tem de se fazer aquisições e pagamentos de bens e serviços para o funcionamento das actividades tanto as instituições públicas, privadas e ONGs são relutantes de desembolsar fundos para que as instituições funcionem. Contraditoriamente, é no fim do ano económico, da empreitada ou do projecto se que observa fenómenos como compra de computadores para escritórios onde não se usa corrente eléctrica, organização de workshops intermináveis, impressão de camisetes e bonés, desgastantes visitas de monitoria e avaliação. Será que o excesso de zelo para adequadamente justificar os fundos não usados tenha motivações de engendrar prácticas de corrupção? Em Moçambique, os sectores público, ONGs e doadores não fogem a esta realidade.
Se é possível justificar que apropriação ilegal de fundos esteja relacionada com abuso de poder por um governante no sector público, como é que se justificaria uma possível não prestação de contas de fundos numa instituição religiosa cujas doações de benfeitores se destinam a “salvação das almas”, entanto que filosofia de acção religiosa? Temos alguma reserva se questões de poder alicerçadas na fé foram seriamente abaladas em Moçambique por causa de uso indevido de fundos? Num questionamento semelhante, como analisaríamos as interacções sócio-económicas entre os importadores informais - mukheristas no sul de Moçambique (Namaacha, Ressano Garcia); jumbabodas/jumper-borders (Manica, Rotanda, Penhalonga, Nkhutchamano) ou nadyanji (Mutarara, Zobwe), centro de Moçambique, e os agentes alfandegários ou polícias, numa situação em que as fronteiras são desprotegidas e os procedimentos de controlo fiscal possa não estar ao alcance do fiscalizador. Obviamente, que regras arbitrárias serão aplicadas tanto para suprir o “vazio legal” como satisfazer os apetites neo-liberias: maximizar as oportunidades. Há alguma irracionalidade nisso? Argumentamos que não há, pois em Estados ou instituições onde nem todos tem à disposição as regras de jogo sócio-económica, a irracionalidade da informalização dessas regras constitui sua racionalidade. Portanto, justificável e aplicável nos termos da racionalidade informal.
Com ou sem fundamento objectivo o sector público nos PvDs, Moçambique inclusive, tem sido alvos de alarmantes notícias sobre práticas de corrupção. Parece não haver espaço para pensarmos duma forma diferente e encararmos o sector público com uma outra atitude que não seja de suspeição institucional. Certos argumentos nos convencem a olhar para o sector público com desdém e a sermos indiferentes às interacções sócio-económicas e políticas que esse sector tem com outros sectores (privado, ONGs, ORs, EI e até com os doadores), assim como, as interacções que ocorrem diariamente na sociedade Moçambicana. Se o sector público nos PvDs é o pior sector sócio-económico, comparativamente com o sector privado, as ONGs ou ORs quanto à corrupção, porque se preserva o sector? Não seria melhor substitui-lo? Ou por outra, existirá melhor sector para substituir o sector público? Por causa da gênese do sector que aparece conjuntamente com o surgimento da própria noção do Estado, me parece que está-se mais confortável com o sector público e todas as suas fraquezas que assumir um outro sector qualquer, porque o sector público, pela natureza burocrática, é o sector mais estável. Em abono da verdade, os PvDs e respectivos sectores públicos não existem como entidades imaginárias, isoladas ou dissociadas de toda essa interacção sócio-económica inevitável em qualquer sociedade humana. Existem em Moçambique, para além do sector público, o sector privado, as ONGs, Organizações da Sociedade Civil (OSCs), Organizações Religiosas (ORs) e outros segmentos da sociedade: será que não se verificam práticas de corrupção nessas instituições que possam merecer investigação científica, análise e repreenção pública? Precisamos um pouco de coragem para desvirtualizar as actividades e transações do sector privado, as ONGs, OSCs e as ORs em Moçambique, tidas até então como instituições isentos de corrupção, para evitarmos olhar as coisas do ponto de vista que sempre nos parece confortável.
Penso que não basta dizer que há corrupção no sector público ou má governação em Moçambique, quando há silêncio absoluto sobre as transações económicas e observância de dispositivos legais que regulam as actividades e interacções sócio-económicas nos outros sectores. Evasão fiscal tem sido referido como um dos maiores deslizes do sector privado. E parece que o sector privado está muito confortável com Código Contencioso Fiscal Aduaneiro, aprovado pelo Decreto n° 33.351, de 21 de Fevereiro de 1944. Talvez em 1975 quando o Estado Moçambicano foi criado esse instrumento funcionasse, mas em 2009, o silêncio do sector privado sobre as questões fiscais aduaneiras sugere haver institucionalização da corrupção no sector. Há quem poderá defender o sector dizendo que é da responsabilidade do Estado criar normas consentâneas com a realidade económica actual. Concordar-se-ia com essa posição só e só se o sector privado não se aproveitasse das fissuras legais contidas na Lei 10/2001, de 7 de Julho que cria os Tribunais Aduaneiros e confere a respectiva competência, a Lei 2/006 de 22, de Março, que estabelece a relação jurídico-tributária e Lei 2/2004, de 21 de Janeiro, que definem a competência, organização, composição e funcionamento dos Tribunais Aduaneiros e Fiscais.
Precisamos perceber a natureza de interacção sócio-económica e política de todos os segmentos da sociedade para termos a imagem um pouco mais realista sobre o fenómeno. Se o sector público interage com outros sectores sócio-económicos, faz sentido incluir na investigação e discussão sobre corrupção nesses outros. Por ainda desconhecidas motivações a sociedade Moçambicana deixou politizar a corrupção, comercializar a política e (des)valorizar o sector público já de se ineficiente. Para além de problemas de magros salários, processo moroso de recrutamento (2 anos para obter autorização do Tribunal Administrativo) e outros, a politização da corrupção não atrai aos jovens a servir o Estado. Para onde é que nos leva a “corrupcao”?
A tabela abaixo contem informação estraída do compacto conhecido por Worldwide Governance Indicators (WGI), criado pelo trio de economistas: Daniel Kaufmann, Aart Kraay and Paolo Zoido-Lobatón, do Instituto do Banco Mundial. O compacto destina-se a medir e comparar o desempenho de governação e corrupção no mundo. No que concerne ao cluster de indicadores sobre a corrupção (Control of Corruption) em 1996 Moçambique foi avaliada usando apenas 3 fontes, em 1998 e 2000 usou-se 6, em 2002 usou-se 8, em 2004 escolheram 13 e em 2006 e 2007 usou-se 16 fontes. Um país como Moçambique com 20 milhões de habitantes, vários sectores sócio-económicos pode objectivamente ser rotulado de corrupto apenas com base ou de 3 ou 16 fontes? Há alguma coisa que certamente não bate bem nisso. Faltam alguns ingredientes como, por exemplo, número total de trabalhadores repartidos por todos sectores; verificar qual é o sector que movimenta avultadas somas monetárias; investigar se o problema é o sistema ou são as pessoas que interagem com o sistema de cada sector que induzem as pessoas ou os sectores a optarem pela corrupção que práticas que promovam eficiência institucional. Sem negar a existência do fenómeno de corrupção em Moçambique, não nos parece que a imagem do fenómeno de corrupção tenha sido devidamente captada no WGI.
WGI on Control of Corruption
Ano 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2007
Número de Fontes 3 6 6 8 13 16 16
Adaptado do: Governance Matters, 2007. Worldwide Governance Indicators-World Bank Institute
Mas que corrupção é essa de que tanto se fala no sector público? Ainda não há resposta sistematizada sobre corrupção entanto que fenómeno social, onde suburnos, apropriação de fundos, abuso de poder, prestação de contas em ORs, não devem ser dissociadas à análise de interacção sócio-económica e política de sectores e pessoas. Economistas das instituições financeiras internacionais dizem conseguir objectivamente observa-la nos PvDs, particularmente no sector público. Já não há dúvidas que os apelos à “boa governação ou democratização” (Banco Mundial, 1992b), que embora sejam importantes “não estão ainda cientificamente provados que são condições necessárias e indispensáveis para desenvolvimento” (Leftwich, 2005; Diamond, 2003) e também, ninguém apareceu com argumentos cientificamente sólidos a convencernos que democracia e boa governação se opõem ao desenvolvimento, ou que onde há desenvolvimento não se verifica a corrupção.
Finais dos anos de 90 e princípios do Sec. XXI vimos a ser introduzidos e implementados: os Poverty Reduction Strategy Papers - PARPA em Moçambique; Objectivos de Desenvolvimento do Milênio, Nova Parceria para Desenvolvimento em África e o Millenniun Challenge Corporation/ Millenium Challenge Account, esta última, iniciativa pela qual Administração Bush será políticamente amável nalguns países em Africa. Duma forma simplificada “boa governação” significou “boa gestão pública”. Na década de 1990 tudo sugeria haver consenso sobre essa matéria quando preocupações relacionadas com pobreza em África eram tidas como reflexo da natureza de governação (má gestão pública) em África (Banco Mundial, 1997) e, considerável ajuda externa foi e continua a ser concedida para tornar eficiente a governação (estirpar corrupção no sector público) em África. Embora os actores externos dizem ter identificado o problema e continuam com vontade de elimina-lo, hoje acredita-se menos que o problema de corrupção será resolvido, porque ainda se ignora questões prévias do fenómeno: sistema de interacção sócio-económica e a estrutura de regras de jogo e a que servem essas estruturas. Como consequência, não se sabe quais são os instrumentos apropriados para o combate a corrupção. Por exemplo, os actores externos financiam tanto o sector público, o privado, ONGs, ORs. Mas quando se trata de avaliar a corrupção em Moçambique só o sector público é inequivocamente avaliado. Será que os outros sectores transacionam suas actividades sem mácula? Duvidamos.
Já lá vão 8 anos (desde 2003) que venho acompanhando uma iniciativa da KPMG Moçambique de eleger as 100 maiores empresas de Moçambique. É inquestionável o nível de transparência tanto do método como dos critérios de eleição das “10 mais” e o respectivo ranking. Todavia, o que parece questionável é a tónica sugestiva de que tudo vai bem no sector privado. Em outras palavras não há corrupção no sector privado em Moçambique. Deve, evidentemente, haver razões porque só temos informações sobre o lado positivo do sector privado. Um dia talvez alguém fará justiça ao sector público quando tiver a coragem de nos apresentar, das 100 maiores empresas, também nos apresentar pelo menos as 10 mais corruptas e o respectivo ranking entre as 100. Pode ser que a minha geração não terá a oportunidade de ler ou ouvir coisa semelhante, mas seria desejável para democratizar as nossas mentes. Pode o sector privado, ONGs, OSCs e até ORs levantar a mão e dizer que são isentas de corrupção institucional ou desvio de fundos para fins inconfessáveis?
Porque insistimos que precisamos saber o nível de corrupção e respectivo ranking noutros sectores? Ajudar-nos-ia a perceber se Moçambique é um país corrupto ou não como Transparência Internacional (TI), WGI, MoIbrahimo Governance Indicators e outros nos convencem do facto. De acordo com o Censo de 2007 Moçambique tem aproximadamente 20 milhões de habitantes. Os dados que dispomos não fornecem a imagem real, em termos de quantidade da mão-de-obra que perfaz o sector público em Moçambique, ou da força produtiva laboral activa nos sectores aqui referidos. No sector público parece que não ultrapassam os 2 milhões. Assumamos que é o caso. Portanto, os 18 milhões restantes estão distribuidos entre sector privado, ONGs, OCSs, ORs, camponeses, sector informal e outros. Se o sector público é o maior empregador comparativamente com o sector privado, ONGs, OSCs e ORs, e, dada a complexidade do fenómeno corrupção, parece inconsequente atribuir aos 2 milhões de pessoas absorvidas no sector público como representação significativa e realista do fenómeno de corrupção em Moçambique (dos 20 milhões de habitantes). Portanto, concluir, mesmo que, seja o Banco Mundial através do seu Country Policy and Institutional Assessments (CPIAs) ou WGI, TI com o seu Corruption Perception Index (CPI), a avaliação dos 2 milhões de habitantes, espelha a imagem real da corrupação de Moçambicano salta a nossa vista como problemático. Em termos de número as alegações sobre corrupção em Moçambique são insustentáveis pois quase 18 milhões de habitantes ficam excluídas da análise. Visto que já me referi sobre a importância de interacções sócio-económica e políticas, o peso da minoria que detem o poder económico (por exemplo as 100 maiores empresas, portanto, sector privado), as ONGs e OSCs poderiam reforçar o argumento de que há ou não corrupção em Mocambique, expondo o outro lado das suas respectivas transações institucionais. Creio que daqui há pouco TI, Economic Intelligence, Banco Mundial/CPIAs), Freedon House, Afrobarometre vão publicar os rankings de Moçambique sobre corrupção. Será que estamos a obter informação realística sobre o fenómeno? Só podemos lamentar, porque também não vamos, com certeza, ter oportunidade de ver o ranking sobre corrupção das 100 maiores empresas, das 100 ONGs, das 100 OSCs ou das 100 ORs, que perfazem a sociedade Moçambicana, transacionam bens e interagem em redes de alianças sócio-económicas e políticas, muito à margem do sector público e parte significativa de seus funcionários honestos.
Estamos na era da institucionalização de consensos e é desconfortante não desafiar os consenos quando determinadas situações históricas (1975-1985?) nos indicam que nem sempre o sector público em Moçambique espelhou corrupção embora dificuldades institucionais existissem; que a “governação e corrupção” parecem ser apenas assuntos do sector público em África. O sector privado, as ONGs, OSCs e outros segmentos da sociedade nunca são publicamente tidos como instituições com problemas de corrupção. Ainda não ouvimos e continuamos a pesquisar se alguma vez TI, Freedom House, Economic Intelligence, Banco Mundial e outras já apresentaram os ranking de corrupção ou das maiores empresas, ou das grandes ONGs e OSCs, no mundo, da Africa ou mesmo de Moçambique. Será que o sector privado, as ONGs ou OSCs não precisam de se orientar pelos valores de boa governação institucional? Imaginemos que a KPMG decida no ano de 2010 combinar o ranking das 100 maiores empresas com pelo menos 10 empresas mais corruptas de Mocambique? Mexendo esse ponto, não reuniremos consensos e detractores não faltarão, visto que interesses institucionais estarão em causa. Há quem se importa que nos oponhamos à vulgarização do sector público?
*Raul Chambote, moçambicano, é colunista do Pambazuka News Lingua Portuguesa. MSc em Desenvolvimento Internacional e leitor de politicas de desenvolvimento em Africa.
Fonte: Pambazuka News - 2009-10-07
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