Samora Machel e
Manuel Vieira Pinto fazem parte da História de Moçambique. O primeiro foi o
líder incontestável líder que conduziu o país à independência tornando-se no
primeiro presidente durante 11 anos. O segundo foi o único bispo português que
se insurgiu pública e abertamente contra a dominação colonial, pronunciando-se,
em coerência, pela autodeterminação do povo moçambicano o que lhe custou a
expulsão, dias antes do 25 de Abril. Nos 11 anos de independêcia, as
relações entre o Estado e a Igreja estiveram longe de ser as melhores. Apesar
disso, Vieira Pinto e Samora Machel nutriam uma sincera admiração e respeito um
pelo outro. Eles procuravam manter encontros pessoais. Em 25 de Setembro de
1986, Manuel Vieira Pinto escreveu a carta que não chegaria ao destinatário, em
virtude deste morrer (19 de Outubro) antes de a receber, num encontro a dois.
Era um inventário frontal das inúmeras situações provocadas pela guerra
provocadas pelos dois lados e do apontar dos caminhos julgados mais eficazes
para a obtenção da paz. Eis o conteúdo da carta:
O
Povo não sabe onde pôr o coração.
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A confiança que
Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular
de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de
humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação,
os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor
Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais
humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobre de vergonha e
de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n.... e as
torturas.
Massacres:
As informações de
que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não
são um boato ou uma pura invenção, mas, sim, uma triste e dolorosa realidade.
Sabemos que ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de
populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o
número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes,
mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes
crimes, destes actos executados, e pergunta igualmente por quem os comete ou
manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra
é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral.
O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?
O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?
Perguntas
fundamentais:
O povo pergunta se
na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de
desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de
liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e
irredutíveis. O povo pergunta se na base destas atrocidades não estará o
princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há
lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se na origem destes abusos
não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética,
da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se os massacres e
outros actos abomináveis são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das
populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.
Crueldades:
Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactentes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e em seguida encurraladas pelas armas e barbaramente destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas a golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.
Estas e outras
vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e
levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se,
a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de
degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e
do Povo Moçambicano. O Povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e
infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas
que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a
alma e a vida do País.
Execuções:
As execuções
sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções
sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à
legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano,
bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja
examinada, com equidade e publicamente, por um Tribunal Independente e Imparcial.
Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de
tribunais improvisadas e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns
destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e
acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e
chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue.
Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito, e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres, deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.
Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito, e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres, deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.
Sentimo-nos, por
isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a
cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da
Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade,
seja de quem for.
Assassinatos:
Os assassinatos, a
partir sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre
mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda
praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é
nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida
das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que
mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da
vida estão postos em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando
vêem pela frente homens armados.
Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação «os homens da Renamo desprezam e matam», «os homens da Frelimo desprezam e matam», uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando muitas vezes métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas ainda vivas, obrigando-as previamente a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio Povo.
Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação «os homens da Renamo desprezam e matam», «os homens da Frelimo desprezam e matam», uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando muitas vezes métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas ainda vivas, obrigando-as previamente a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio Povo.
Maus tratos e
castigos desumanos:
O clima de
violência engendra e autoriza mais violência. Os maus tratos, os castigos
humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais não deveriam ter
lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País,
não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus
tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas, estão presentes
no dia a dia das populações. Há maus tratos, há medidas político-militares e
administrativas que magoam e humilham o Povo. Os castigos desumanos e os maus
tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o
melhor da consciência universal dos Povos, tão clara e corajosamente
manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra
a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes,
aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de
1948.
Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar. qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.
Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar. qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.
Torturas:
As torturas são
actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem,
contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a
tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o deu direito e a sua
justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade,
usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A
tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o
poder constituído, antes o corrompe e o põe em grave perigo. Tais abusos e
crimes também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional,
antes as destroem e dificultam.
Aspirações do povo:
Continua.
Fonte: (O
Jornal. 16-09-1986), Transcrição de
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