Povo não sabe onde
pôr o coração.
Aspirações do povo:
O Povo sente na
carne e no espírito todas as violência: os massacres, os assassinatos, os maus
tratos e as torturas. Sente a humilhação e a degradação. Sente a perda da sua
própria vida e da sua própria alma: a perda da sua personalidade, identidade e
cultura. E sente, com uma intensidade ainda maior, o profundo desejo de um
tempo melhor: um tempo de maior justiça e de maior dignidade; um tempo de um
bem estar maior a todos os níveis: a nível político, económico, administrativo
e militar, a nível espiritual, moral e cultural. O Povo, esmagado por tantas
violências e por tantas carências, aspira, de facto, a um tempo de maior
justiça e de maior amor. Mas parece não saber donde poderá surgir,
efectivamente, esse tempo de maior justiça e de maior amor. A desilusão é
grande, e, como dizem os velhos, «o Povo não sabe onde pôr o coração».
Nenhuma das forças
em presença lhe merece inteira confiança. Uns e outros, mercê das arbitrariedades
e injustiças cometidas, humilharam-no e desiludiram-no. Mas, apesar de tudo
isso, continua a sonhar com um tempo de justiça e de paz. Continua a esperar
que alguém o tome a sério e lhe devolva a dignidade e a liberdade a que tem
indiscutível direito. Impõe-se, portanto, o aparecimento de homens que façam
uma verdadeira e clara opção pelo Povo, pela sua vida e os seus direitos, pelo
seu desenvolvimento e bem-estar, pela sua personalidade e cultura, pela sua
independência e soberania. Homens que façam sinceramente uma opção pela paz,
contra a guerra e contra todas as armas de guerra, uma opção pela vida e contra
todas as formas de destruição e de morte, uma opção pelos valores que possam
salvar, efectivamente, a Nação Moçambicana.
Opção por uma política
de maior verdade:
Em primeiro lugar,
a opção pela verdade. Urge, de facto, uma política de maior verdade, a todos os
níveis. A mentira, tão infiltrada nas Instituições, no Aparelho do Estado e do
Partido, nos diversos sectores da vida nacional, terá que dar lugar a uma
política de maior verdade. A hipocrisia, as meias-verdades, os discursos
alienantes, a informação orientada, as diversas formas de manipulação e de
instrumentalização, terão que dar lugar à sinceridade, à honestidade, ao
respeito pelas consciências, pela inteligência, pela liberdade e
co-responsabilidade de todos e de cada um dos cidadãos do nosso País. Só pelo
cultivo da sinceridade e da verdade poderá haver, nos diversos sectores da vida
da Nação, na Comunidade Política e nas Instituições partidárias, políticas,
sociais, económicas, jurídicas, educacionais e culturais, consciências vivas,
inteligências criadoras, liberdades solidárias e responsabilizadas,
participação consciente e generosa.
A mentira, tenha
ela a face que tiver, corrompe e aliena. Um povo governado ou orientado por
mentiras organizadas ou por ideologias mutiladas ou redutoras, jamais será um
Povo saudável e adulto. Será, pelo contrário, um Povo ameaçado naquilo que ele
tem de melhor e mais profundo: a sua consciência, a sua liberdade, a sua
dignidade e criatividade. Impõe-se, portanto, uma política de maior verdade e
de maior sinceridade, uma política de maior serviço à dignidade, à liberdade, à
criatividade e responsabilidade de todo o nosso Povo.
Opção por sistemas
e modelos mais próximos e mais ajustados:
Impõe-se, também,
uma opção por sistemas e modelos que tenham mais em conta o homem concreto, o
Povo inteiro, ou seja, a totalidade dos seus legítimos direitos e deveres, e
das suas justas e irreprimíveis aspirações. Que tenham mais em conta a inteira
personalidade da Nação Moçambicana. Torna-se, portanto, imperiosa a revisão dos
sistemas e modelos em curso, abandonando o que neles possa haver de humilhação
e opressão, e conservando, com um espírito sempre mais crítico e mais aberto, o
que neles houver de verdadeiro e autêntico crescimento do homem e do Povo.
Verificamos com
tristeza que, apesar dos esforços havidos e dos sucessos alcançados, o Povo
Moçambicano continua, na sua maioria, a ser objecto e não sujeito do seu
próprio crescimento e da sua própria história. Continua, sobretudo, a servir,
com grave prejuízo para a sua personalidade e liberdade, ideologias e culturas
estranhas. Impõe-se, na verdade, uma lúcida análise das ideologias, dos modelos
e sistemas, os quais, julgados, num dado momento, os melhores para servir a
libertação e o crescimento do Povo, hoje se revelem como sistemas ou modelos
menos ajustados e menos aptos a contribuir, eficazmente, para um real e
solidário crescimento do Povo e da Nação. Impõe-se uma opção por sistemas e
modelos mais próximos da cultura e índole do Povo. Não se trata de contrapor
uma ideologia a outra, um sistema a outro sistema ou modelo, mas de
proporcionar a todo o Povo possibilidades reais de ser, ele próprio, o sujeito
indiscutível do seu desenvolvimento e da sua história, o primeiro responsável
da sua independência e do seu destino.
Opção pelo homem
concreto:
Esta opção por
ideologias, sistemas ou modelos mais próximos e mais ajustados, implica,
naturalmente, a opção pelo homem concreto, pelo Povo concreto e pelos valores
que são inerentes e inalienáveis. Com isto queremos dizer que, no centro de
toda a actividade política, económica, social, jurídica, cultural, deverá estar
presente o homem concreto, real, o homem na sua inteira verdade, com a sua
dimensão individual e social, com a sua imanência e transcendência, a sua
vocação histórica e trans-histórica. O homem concreto e inteiro, e não o homem
utópico, abstracto, reduzido ou parcelados. Devera estar presente o homem todo
e o Povo todo: o Povo real, concreto e não o Povo abstracto ou utópico.
Opção pelos valores
superiores do homem e do povo:
A opção pelo homem
e pelo Povo, como tais, exige a opção pelos valores que os caracterizam e lhes
dão, no conjunto dos Povos, uma fisionomia inconfundível. Exige, também, uma
opção pelos direitos e pelas liberdades que lhes são inerentes. Urge, de facto,
uma política de maior respeito e de maior empenho pelos valores essenciais ao
homem e à sociedade, e pela cultura própria do Povo e da Nação Moçambicana. A
experiência diz-nos que não basta, empenharmo-nos em alcançar mais valores
científicos e tecnológicos, mais valores ideológicos, jurídicos e políticos,
mais valores económico-sociais. Urge, efectivamente, um empenho que permita dar
aos valores espirituais, éticos, morais, religiosos, culturais e humanos o
lugar que lhes compete na libertação e crescimento de cada um e de todos, na
construção da sociedade e na edificação da nossa Pátria. Urge um empenho mais
sério e mais autêntico no sentido da defesa e promoção dos valores próprios do
Povo e cuja perda ou destruição constituiriam um grave atentado à personalidade
e à identidade da Nação Moçambicana, um prejuízo irresponsável para o
património espiritual da humanidade e dos Povos.
Sem dúvida, não
basta crescer ideológica, política e economicamente. Não bastam os valores que
fazem o bem-estar material. Impõe-se a opção clara pelos valores do espírito,
pelos valores superiores do homem e da sociedade. Caso contrário, poderemos
assistir a um certo crescimento científico, tecnológico, político,
económico-social e constatarmos, ao mesmo tempo, um crescimento e imparável
degradação moral, espiritual e cultural do homem e da sociedade, do Povo e da
própria Nação. O clima de violência, de arbitrariedades, de abuso e de egoísmo,
os diversos crimes contra a vida, contra dignidade humana e contra os valores
mais sagrados do Povo - como são os valores espirituais, morais e religiosos -,
as mentalidades e comportamentos imorais, mostram bem a degradação e a
corrupção do homem, da mulher, da família e da sociedade moçambicana não são,
infelizmente, um simples receio, mas sim uma triste e preocupante realidade.
Urge, portanto, uma ampla e corajosa promoção e defesa dos valores humanos, dos
valores espirituais, morais e religiosos. A par dos valores da ciência, da
tecnologia, da política e do progresso económico-social. Urge uma atenção maior
e mais esclarecida aos sistemas de ensino, de educação e de cultura.
Opção pela
não-violência:
A opção pelos valores
espirituais, morais, culturais e religiosos, isto é, pelos valores superiores
do homem e da sociedade, arrasta consigo uma outra opção inadiável: a opção
pela não-violência. Talvez esta opção pela não violência possa parecer, à
partida, um pouco ingénua ou irrealista. Contudo, ninguém ignora que a
violência gera violência e que o cultivo da violência jamais levará à
construção de uma sociedade não violenta. O avanço e generalização da violência
arbitrária e assassina obriga-nos, por isso, a propor a opção pela
não-violência. Só deste modo conseguiremos, verdadeiramente, uma sociedade e
uma Nação de homens não-violentos, isto é, de homens capazes de vencer a
tentação dos meios violentos, e de construir uma sociedade, recorrendo a meios
humanos, racionais e pacíficos. A unidade nacional, a paz civil, a concórdia, a
solidariedade, a amizade entre as diversas tribos, línguas e culturas que
integram e caracterizam o nosso País, não virão pela violência das armas nem
pelo cultivo do ódio e do espírito de represália e de vingança. Não virão pelas
estratégias ou políticas de liquidação e destruição do adversário, mas sim pelo
cultivo e defesa dos meios não-violentos. A paz digna, humana e duradoura, será
fruto da justiça, da reconciliação, do entendimento, das conversações, da
magnanimidade e da sinceridade de uns e de outros. Será fruto dos meios
não-violentos, dos meios racionais, éticos, morais, políticos, diplomáticos e
jurídicos.
Esta opção pela não
violência, sem dúvida imperiosa e inadiável, implica, por um lado, que se
encontrem as medidas adequadas no sentido de se pôr termo imediato às
crueldades organizadas e premeditadas - como são os massacres, as execuções
sumárias, os assassinatos, os castigos degradantes e as torturas -, de se
acabar com as represálias indiscriminadas, as detenções arbitrárias, os
julgamentos a partir das Polícias ou das Forças Militares, a captura e
deslocação compulsiva de populações, o abuso das armas e a arrogância do poder.
Impõe-se, de facto, uma ordem que proíba, terminantemente, esta prática
hedionda da violência assassina. Uma ordem que exorcize, de vez, o espírito de
vingança, de represália, de humilhação e liquidação física do inimigo, ou de
pessoas e populações julgadas suspeitas ou encontradas nas áreas de influência
do adversário.
Uma ordem que
proíba as arbitrariedades, os roubos às populações indefesas, a destruição de
casas e de bens, a violação de mulheres, o desprezo sistemático pelo direitos
da pessoa humana e do próprio Povo. Que proíba às Tropas, e operações de reconhecimento,
de controle ou de «limpeza», liquidar os homens que encontram e de levar
consigo as mulheres, situando-as em zonas obrigatórias ou estratégicas. Uma
ordem que proíba os abusos contra a Constituição, a Legalidade, a Ética e a
Cultura da nação. Por outro lado, a opção pela não-violência implica que se
promova e favoreça, a nível das consciências, da sociedade e da Nação, um clima
de maior respeito e de maior concórdia. Um clima que permita, a nível das
forças em presença, reduzir as posições extremadas, ultrapassar os ódios e o
espírito de vingança, e faça nascer, pelo concurso de ambos os lados, aquele
conjunto de meios não-violentos que tornem possível a reconciliação e a paz.
Isto exigirá, à
partida, uma confiança maior na força moral e espiritual do homem e do próprio
Povo, uma vontade maior de entendimento e de reconciliação, uma aceitação mais
corajosa da política do diálogo e das conversações, como política decisiva para
a paz nacional. Exigirá, também, que se abandone a linguagem da violência e se
promova, a nível da Nação, uma linguagem, uma mentalidade e um comportamento de
não-violência. Que se promova e assuma, com maior sinceridade, a prática da
clemência, do amor solidário e da justiça. A paz nacional não virá da violência
das armas, ou da violência do Povo armado, mas sim da força dos meios humanos,
políticos e éticos, da força da justiça e do amor.
Opção pela justiça:
Urge, portanto, uma
política de maior justiça, a par da política de não-violência. Uma política que
se concretize, por um lado, na eficaz ultrapassagem de situações de injustiça e
de medidas ou programas que segreguem, de algum modo, a discriminação, ou que
favoreçam o aparecimento de novas formas de opressão e de alienação. Uma
política que, por outro lado, abra caminho à prática da justiça e ao livre
exercício dos direitos e liberdades de cada cidadão, particularmente no campo
dos direitos políticos. Concretamente, a discriminação a partir dos privilégios
e das facilidades de acesso aos bens de consumo, a partir do poder de compra em
divisas, ou a partir de ideologias, posições partidárias, etnias,
nacionalidade, região, cultura, religião.
Não basta,
efectivamente, a preocupação pela justiça social, desconhecendo outros aspectos
essenciais da justiça. Por isso, a opção pela justiça, garantia e guardiã da
dignidade da pessoa humana e, bem assim, da unidade nacional e da paz civil,
obriga a ter em conta aquela justiça que sirva o homem todo, isto é, o homem
com os seus direitos individuais e sociais, os seus direitos económicos e
políticos, os seus direitos culturais e espirituais, morais e religiosos, as
suas liberdades objectivas e subjectivas. Aquela justiça que sirva o Povo
inteiro, isto é, o Povo com as suas legítimas e indiscutíveis aspirações, com
as liberdades fundamentais e indissociáveis da sua dignidade, criatividade e
independência, com o direito indiscutível de ser, ele mesmo, o sujeito do seu
próprio desenvolvimento, da sua libertação e da sua cultura.
Não é necessário
lembrar a degradação da justiça, praticamente a todos os níveis. Sente-se, por
toda a parte, uma grave e injuriosa forma de injustiça: o desprezo pela pessoa
humana e, simultaneamente, uma crescente e irresponsável violação dos direitos
humanos. As próprias Instituições, criadas e organizadas para defender e
garantir a justiça, o direito, a dignidade de cada um e do próprio Povo,
parecem claudicar neste ponto, agravando o desprezo pelo homem concreto e a
violação sistemática dos direitos e de liberdades fundamentais. Impõe-se, na
verdade, uma política de maior justiça em todos os campos, de maior defesa dos
direitos invioláveis de cada um e da cada uma, e de maior respeito pela
dignidade da pessoa humana, seja homem ou mulher, velho, jovem ou criança.
Opção pelo amor:
A opção pela
justiça anda junta com a opção pelo amor. Não se trata de um amor abstracto,
platónico, sentimental e inoperante. Trata-se, pelo contrário, de um amor que,
na prática, se manifeste no reconhecimento e defesa do homem e do Povo, o
compromisso com a vida e com as alegrias e tristezas, aspirações e frustrações,
vitórias e fracassos de cada um e da cada uma, e que se empenha seriamente nos
combates pela dignidade, a libertação, o desenvolvimento de todo o Povo, na
partilha, na solidariedade, na amizade e na fraternidade. Trata-se de um amor
que, em última análise, é «a lei fundamental da perfeição humana e, portanto,
da transformação do mundo», de um amor que, pela sua força de libertação, de
humanização e de entendimento, gera, alimenta e consolida a paz social, a paz
civil, a paz nacional. Não será o ódio a força motriz dos homens novos, das
sociedades novas e dos povos novos, mas sim a justiça e o amor. Não será a
civilização do ódio e da violência assassina a civilização da paz e do
progresso dos homens e dos povos, mas sim a civilização da justiça e do amor.
Senhor Presidente:
Na efectivação
destas opções, que consideramos imperiosas e urgentes, Vossa excelência pode
contar com o apoio que de nós dependa, como Bispos, como pastores da justiça,
da verdade, da liberdade, do amor, da reconciliação, da concórdia e da paz,
como pastores do homem e da sua dignidade, vocação e direitos. Terminamos,
pedindo que não veja nesta nossa exposição outra intenção além de querermos
ajudar seriamente na libertação e desenvolvimento do nosso Povo, na construção
de um país sempre mais livre da humilhação e da violência, na edificação de uma
Pátria sempre mais digna, mais culta e mais próspera. Aceite, Senhor
Presidente, as nossas respeitosas e cordiais saudações e os nossos votos de
muitas prosperidades, sobretudo no trabalho pela paz e pala unidade nacional.
Que o Ano Internacional da Paz traga a paz a Moçambique, à África Austral, ao
Continente Africano, Ao Mundo Inteiro.
Nampula, 25 de
Setembro de 1986
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D. Manuel da Silva
Vieira Pinto
Fonte: O Jornal, 16-09-1988
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