Pode causar alguma surpresa a sugestão de uma reflexão sobre os produtos florestais não lenhosos, no quadro dos sistemas alimentares, quando todas as tendências se inclinam para a modernização da agricultura e o aumento da produtividade das áreas actualmente cultivadas.
A fome e a malnutrição afectam cerca de 800 milhões de pessoas no mundo inteiro, com maior incidência na África subsaariana e Sul da Ásia. É uma problemática complexa, multifacetada e generalizada. Moçambique está entre os países mais afectados, com uma incidência de insegurança alimentar crónica, estimada em 24% da população.
De um modo geral, cresce a pressão sobre os recursos naturais que sustentam a vida no planeta e permitem a produção alimentar sustentável do ponto de vista ambiental: solos, fauna, ar atmosférico, água e florestas.
A questão florestal é uma das maiores preocupações ambientais em Moçambique, pois ela representa uma das mais importantes fontes de subsistência da população rural. Dos cerca de 29 milhões de habitantes, a maioria vive nas áreas rurais e depende dos recursos naturais, especialmente florestais, para a manutenção dos seus modos de vida. Apenas 10% da população tem acesso à electricidade – a grande maioria utiliza lenha e carvão como fonte energética. A recolha de lenha e a produção de carvão destinadas à preparação de alimentos e aquecimento representam 85% do consumo total de energia no país. A população rural, estimada em 60% da população depende quase exclusivamente da floresta para obter materiais de construção e alimentos. A floresta é ainda uma importante fonte de símbolos culturais e religiosos, medicamentos, cosméticos e mesmo de protecção contra ventos e erosão pluviométrica.
As florestas tropicais do norte do país, bem como as vastas áreas de savana da região centro e sul, constituem uma das mais ricas áreas florestais em biodiversidade da África Austral. A área florestal total é de aproximadamente 40,6 milhões de hectares, albergando pelo menos 5.992 espécies de plantas vasculares, das quais 3,8% são endémicas, ou seja, não existem em nenhum outro local. A biomassa florestal em Moçambique corresponde a cerca de 1.692 milhões de toneladas métricas de carbono.
Esta riqueza atrai naturalmente a ganância das grandes corporações de exploração madeireira, o que é agravado pelo desmatamento para a abertura de novas áreas de produção agro-pecuária e a realização de queimadas descontroladas.
Entre 1990 e 2010, Moçambique perdeu em média 217.800 há por ano, totalizando uma perda de 4.356.000 na sua cobertura florestal total. Num quadro desolador e caricato, as pessoas que mais necessitam da floresta assistem impotentes à destruição da sua fonte de subsistência.
Neste sentido, o país ganhará com a aposta na exploração sustentável destas áreas para produtos não lenhosos, pois é uma das regiões com maiores vantagens comparativas e competitivas para a sua promoção.
O alcance da aposta na exploração de produtos florestais não lenhosos pode ser mais amplo, pois muitos dos factores de degradação ambiental acima mencionados estão intimamente ligados ao fenómeno do aquecimento global, que ameaça descaracterizar os sistemas agroalimentares a nível global, promover eventos climáticos extremos, derreter os glaciares, elevar o nível das águas do mar e alterar os regimes pluviométricos, com consequências graves para a economia, tecido social e modos de vida das populações mais vulneráveis e expostas.
Uma exploração organizada e sistematizada de produtos florestais não lenhosos pode aliviar a pressão sobre os recursos naturais e ser um ponto de partida para a mudança de paradigmas económicos, sociais, culturais, ecológicos, políticos, institucionais e legais que se almejam. Pode contribuir para garantir a preservação da base ecológica e produtiva, sem descorar os objectivos de desenvolvimento económico e a partilha justa de bens, possibilidades e oportunidades.
Pode ainda respresentar uma saída da armadilha de certas práticas destrutivas, obsoletas e retrógradas para outras mais virados para o futuro, mais sustentáveis e com elevado potencial de gerar renda. Estes produtos naturais e exóticos podem ser exportados para os mercados globais. Existem em forma de produtos alimentares (ex: mel, frutos silvestres, carne selvagem, peixes selvagens, cogumelos, legumes, bebidas, nozes, castanhas,etc.) e não alimentares (ex: medicamentos, cosméticos, fibras, peles, plantas ornamentais, objectos de arte, forragens, corantes naturais, elementos de decoração etc).
Os produtos florestais não lenhosos constituem, assim, uma alternativa para as populações que vivem nas florestas e das florestas, permitindo-lhes a sua integração na economia, através de produtos inovadores e com uma aceitação crescente no mercado. Permite ainda a produção dos seus alimentos, minimizando a pressão que exercem sobre os recursos naturais.
Para garantir a viabilização económica de tais actividades, é importante promover o ciclo completo da cadeia de valor de cada um dos produtos, individualmente ou de forma combinada, de uma maneira organizada e certificada, por forma a acrescentar o máximo de valor possível e atender às necessidades específicas dos novos nichos de mercado, em franca expansão mas extremamente exigentes.
A produção, por exemplo, de mel com base em flores tropicais selvagens oferece uma variada gama de sabores e propriedades nutricionais. Os cogumelos também representam um filão de oportunidades a explorar, tanto do ponto de vista comercial como nutricional. E outras práticas como a cultura de insectos, a exploração sutentável e certificada de espécies selvagens, podem ajudar na pesquisa de novas fontes alimentares.
Há muito que se vem falando da exploração de frutos silvestres em Moçambique. Existe uma imensa variedade deles: mafilwa, malambe, mafurra, kanyu, maphisha, mavungo, maçanica, mangas silvestres. Esta pode ser uma oportunidade de fazer avançar essa agenda.
A procura de cosméticos e substâncias com propriedades curativas e infusões com sabores intensos e naturais, bem como as de peças de artesanato e utensílios domésticos crescem de forma consistente e sistemática, expandindo as oportunidades e os mercados dos produtos do género.
Tudo isso representa um potencial enorme que não pode ser ignorado. Naturalmente que os esforços carecem de novos paradigmas institucionais como, por exemplo, a criação de zonas de protecção específicas, a adopção de legislação (fundiária e outras afins) e incentivos fiscais específicos, e a disponibilização de oportunidades de crédito.
A nível político, as prioridades devem também estar orientadas para a elaboração de planos nacionais concretos baseados na realidade local e o desenvolvimento de mecanismos de diálogo e consulta com as populações envolvidas, de modo a dignificar e humanizar os processos em todas as suas etapas, e permitir a solução dos problemas e constrangimentos que venham a surgir.
Requer também a promoção de programas de pesquisa para mapear as potencialidades e variedades disponíveis e respectivas tecnologias recomendadas, bem como a abertura de estradas, pontes, aeroportos e infra-estruturas de armazenagem e conservação.
No contexto internacional, é importante que os mecanismos de apoio e incentivo das práticas de exploração sustentável dos recursos naturais como o REDD +, REDD++ e GEF continuem a expandir-se, a abraçar estas iniciativas inovadoras, e a edificar uma plataforma global de cooperação e colaboração em prol de um mundo mais digno e sustentável.
Fonte: O País – 23.03.2017
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