segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Líbia: as fissuras de uma sociedade tribal e sem instituições

Por Cecília Araújo
Batalhas violentas entre partidários e opositores de Kadafi podem levar à sua quedaOs residentes da capital líbia, Trípoli, preparam-se neste sábado, 26, para batalhas sangrentas diante da ameaça do coronel Muamar Kadafi de armar os seus seguidores para derrotar a revolta popular. Os rebeldes já controlam a região petrolífera no leste do país e muitos militares passaram para o lado dos revoltosos. Os confrontos entre apoiantes do governo e opositores, que já duram mais de dez dias, mostram as fissuras dentro da sociedade e podem culminar com a queda do terceiro ditador no mundo árabe desde o início do ano.


A verdade é que o regime na Líbia é bem diferente daqueles que existiam na Tunísia e no Egipto antes das suas revoluções. “A Líbia tem um regime muito mais autoritário do que tinha o Egipto, por exemplo. Mubarak era bastante repressivo, mas havia uma sociedade civil egípcia, com instituições independentes. Existiam, por exemplo, partidos políticos da oposição, que fornecem bases para se estabelecer uma democracia estável”, diz o cientista político Tom Malinowski, director da Human Rights Watch (HRW) em Washington.

'Famílias estendidas' - Desde que assumiu o poder, em 1969, Kadafi proibiu todos os tipos de associação civil na Líbia. Não conseguiu desbaratar, no entanto, as ligações de uma sociedade tradicionalmente tribal. “Em outros países, as uniões familiares acabaram tornando-se menos importantes com o surgimento de outras formas de associações civis. Na Líbia, as tribos foram a única maneira que as pessoas encontraram para se organizar e se ajudar”, explica a especialista sobre o Médio Oriente da Northwestern Univeristy, nos EUA, e PhD na Universidade de Harvard, Wendy Pearlman.

Há cerca de 30 tribos de grande influência na Líbia, mas existem inúmeras outras menores. Os grupos são independentes entre si, e, nesta revolta popular, alguns apoiam Kadafi e outros estão contra ele.

População - Cerca de 6,5 milhões de habitantes vivem num território de 1,77 milhão de quilômetros quadrados, dividido em 22 estados. Mas os contornos do país hoje são resultado de uma fusão de três províncias otomanas no passado - Tripolitânia (onde está a capital, Trípoli), Cirenaica (região que abrange a segunda maior cidade do país, Benghazi) e Fezzan.

As regiões, separadas por desertos, são povoadas por diversas tribos e têm uma relação distante entre si. A maioria esmagadora da população (97% do total) é de origem bérbere e árabe, e a pequena fatia restante abriga imigrantes gregos, malteses, italianos, egípcios, paquistaneses, turcos, indianos e tunisinos. Quanto à religião, cerca de 97% dos habitantes são muçulmanos sunitas.

Exército - Assim como Kadafi não permitiu que instituições civis independentes se desenvolvessem sob as suas regras, também não deixou que os militares ganhassem poder o suficiente para se voltar contra ele. Na Líbia, não há um Exército coeso e capaz de tomar grandes decisões, muito menos contra o regime. “As Forças Armadas são relativamente fracas, e existe uma série de outras forças militares paralelas e milícias, inclusive vindas de outros países. Há também forças especiais lideradas pelo filho de Kadafi, e também serviços de segurança interna, como a polícia secreta, que também é separada”, refere Wendy.

“O que vemos hoje nas ruas da Líbia são autoridades a desertar do regime individualmente: diplomatas e outros funcionários que anunciaram a sua oposição a Kadafi. O ditador criou um sistema onde os indivíduos só podem agir sozinhos”, diz a especialista. De acordo com Malinowski, as próprias Forças Armadas da Líbia são organizadas de acordo com as tribos, o que é mais um elemento de desunião. “Há no leste do país um colapso completo da autoridade do governo, e as tribos dominantes da área agora são a coisa mais próxima de uma autoridade”, completa ele.

Esta é mais uma diferença importante da Líbia em relação ao Egipto e à Tunísia. Neste segundo país, o chefe do Exército disse ao ditador que os militares não o defenderiam, sinalizando que era hora de ele renunciar. Já no Egipto, o Exército também decidiu que os seus interesses dependiam da saída de Mubarak. Ambas as Forças Armadas deixaram de apoiar os seus presidentes e, por essa razão, recusaram-se a reprimir os protestos. "Essas instituições foram um contrapeso para o poder dos respectivos presidentes e limitaram a sua habilidade de usar a violência e cometer crimes contra manifestantes pacíficos", aponta Wendy.

Política e economia - Na Líbia, não existe Parlamento, eleições, nem sequer partidos políticos. Kadafi criou um sistema baseado numa filosofia própria, ditando o que seria “democracia” e “estado”. Esses princípios estão descritos numa espécie de “bíblia” da sua autoria, o “Livro Verde”. Defensor de um “socialismo islâmico”, mesmo sem ser exactamente socialista, tampouco religioso, Kadafi fez de tudo para convencer a população de que o sistema de representatividade não funciona.

Logo que tomou o poder, o coronel decretou a nacionalização das empresas, dos bancos e dos recursos petrolíferos do país. Aproveitou-se da riqueza produzida pela exploração das grandes reservas de petróleo para construir o seu poderio militar e reprimir aqueles que ousassem opor-se às suas regras.

Todo o seu regime é financiado pelo dinheiro vindo do petróleo, e a população depende completamente do governo. “Todos os postos de trabalho estão ligados a ele de alguma forma. Até os cargos privados estão ligados a Kadafi, que age de maneira corrupta”, explica Wendy.

Imprensa - A organização Repórteres Sem Fronteiras considera a liberdade de imprensa na Líbia “virtualmente inexistente”. Até setembro de 2009, existiam apenas 323.000 usuários de internet no país, entre os 6,5 milhões de habitantes.

Em 2007 alguns canais de TV e jornais impressos de veículos não-governamentais foram permitidos, mas em 2009 todos foram novamente nacionalizados. Os principais meios de comunicação do país são controlados pelo ditador, e os jornais internacionais disponíveis sofrem censura.

Fonte - Veja.com.br - 27.02.2011

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