Joaquim Chissano deu ontem uma aula sobre “desafios de liderança e boa governação em Moçambique”. O evento marcou as celebrações do primeiro aniversário do Instituto de Governação, Paz e Liderança, de que o antigo Estadista é patrono.
A introdução da democracia multipartidária em 1990 foi uma das maiores transições políticas que Moçambique experimentou desde a proclamação da independência. À época Presidente da República, Joaquim Chissano defende que a abertura política e económica foi uma resposta antecipada aos desafios que se colocariam no futuro: o momento histórico da evolução do Estado e da sociedade moçambicana impunha um novo modelo de governação capaz de defender os interesses comuns dos moçambicanos. E mais: a democracia multipartidária constituía-se como o único mecanismo capaz de viabilizar as negociações de paz e reconciliação no período pós-guerra.
Mas há outras razões que ditaram o fim do monopartidarismo. O antigo Estadista lembra que, na segunda metade da década de 1980, começaram a registar-se profundas transformações políticas e económicas, tanto a nível regional como internacional. Essas transformações tiveram o respaldo da comunidade internacional ou, para ser mais preciso, do Ocidente, que faz coro pela democratização dos Estados africanos. Em Moçambique, a pressão externa pela abertura política é recebida num contexto de guerra fratricida, pelo que o risco de haver “revoluções incontroladas” era maior. Por isso, nota Chissano, era preferível ser a Frelimo a controlar as mudanças. E assim foi.
Vinte e sete anos após a aprovação da primeira Constituição democrática, Chissano só vê vantagens. Uma delas é que, através do pluralismo democrático, Moçambique tem conseguido evitar a instrumentalização política das diferenças étnicas. “A governação exercida dentro de um quadro de pluralidade política, económica, social e cultural afigura-se como a melhorar maneira de assegurar a convivência entre os moçambicanos nas suas múltiplas diferenças”, defendeu, exortando todos os partidos a evitarem a mobilização política baseada nas diferenças socioculturais.
O Estadista que liderou a transição democrática no país defende que a maior preocupação da sociedade, hoje, deve ser a preservação e consolidação da democracia multipartidária. E uma das formas de o fazer é assegurar que “todas as decisões, incluindo a alteração do regime democrático, sejam tomadas só e somente através das regras democráticas estabelecidas e acordadas por todos”.
Mas a preservação da democracia e, sobretudo, o apoio da sociedade ao regime democrático tem um custo: os governos devem ter a capacidade de gerar, através das suas acções e políticas públicas, ganhos e benefícios sociais e económicos tangíveis para os cidadãos. Caso contrário, a democracia perde a sua aura de ser “o sistema político menos mau”, segundo Winston Churchill, o lendário primeiro-ministro britânico. Chissano é mais detalhista: “Uma democracia e governação que se demitem da nobre e vital missão que é a melhoria da qualidade da vida dos seus cidadãos arriscam-se a perder a sua razão de ser e de existir”.
Nem sempre a maioria tem razão
A transição democrática de 1990 não foi uma decisão fácil. Chissano conta que a necessidade de aprovação de uma constituição multipartidária foi colocada em 1989, mas a ideia foi questionada tanto por dirigentes da Frelimo como pelas populações. Poucos estavam interessados numa abertura política em Moçambique. No lugar de referendo, o governo do dia discutiu a ideia em comícios populares. “Apresentámos seis razões a favor do multipartidarismo e seis contra este sistema. Apresentámos outras seis razões a favor do monopartidarismo e seis contra. Os debates foram acesos e no fim tivemos 15% de pessoas a preferirem o multipartidarismo e 85% a favor do monopartidarismo”, contou, sem avançar o universo dos inquiridos. Chissano diz que ninguém esperava por esses resultados, nem a Frelimo, muito menos a comunidade internacional. “Alguns até podiam pensar que o debate foi viciado, mas não foi. Acho que as pessoas ainda não tinham percebido o que é isso de governação democrática”. Como dirigente máximo, levou os resultados à apreciação da direcção do partido e os seus “camaradas” defenderam que era preciso respeitar a preferência da maioria (monopartidarismo). “Foi preciso assumir o papel de liderança e antecipar-se aos desafios. Tive que convencer as pessoas de que nem sempre a maioria tem razão. A maioria expressou-se, mas não tinha aquela visão da minoria. E disse que nós não somos uma ilha e não era fácil viver como ilha”.
Apesar das imperfeições, democracia popular proporcionava aos cidadãos espaço de participação
O antigo Estadista diz que os moçambicanos participavam do processo de tomada de decisões a partir dos seus bairros. E a governação foi sempre orientada por um elevado sentido de responsabilidade e promoção do bem comum.
Sobre a boa governação, Joaquim Chissano fez notar que o conceito tem sido objecto de críticas e acesos debates em África. E há correntes que “colocam a boa governação como algo proposto de fora para dentro de África”, isto é, mais uma imposição. Mas o antigo Estadista lembrou que a ideia segundo a qual os problemas económicos e os dramas sociais experimentados pelos países africanos resultam da ausência da boa governação ficou cristalizada no seio da comunidade internacional logo a seguir à publicação do relatório do Banco Mundial, em 1989.
O documento sublinhava que “por detrás dos problemas de desenvolvimento em África está a crise de governação”. Apesar de a boa governação ser assumida por algumas correntes como mais um elemento da vasta lista de condicionalidades externas, Chissano frisou que a ideia foi inspirada por um grupo que integrava académicos africanos. E cita o nigeriano Claude Ake, o senegalês nakthtar Diouf e o queniano Ali Mazrui como os académicos que deram as suas contribuições ao Banco Mundial, defendendo que o principal desafio de África era o estabelecimento de relações entre o Estado e a sociedade que propiciassem o “desenvolvimento, o respeito pela democracia, pelos direitos dos cidadãos e a inclusão social”.
Portanto, na “óptica dos intelectuais africanos, a boa governação seria entendida e avaliada pela maneira através da qual o triângulo desenvolvimento, democracia e inclusão é sustentado”.
Revisitando os propósitos dos movimentos independentistas de África, Chissano nota uma preocupação constante em relação à construção de novos Estados cuja governação seria orientada para a promoção do desenvolvimento, da inclusão social e do respeito pelos direitos dos cidadãos. Por outras palavras, o antigo governante e combatente pela independência defende que os movimentos nacionalistas propunham-se a estabelecer a boa governação. E para sustentar esta afirmação, chama à colação o “sucesso” de Moçambique na expansão dos serviços de educação e saúde nos anos imediatamente após a independência. “Durante o período imediatamente posterior à proclamação da independência, a nossa governação foi sempre orientada por um elevado sentido de responsabilidade, de preservação e promoção do bem comum”, disse, sem falar do momento e das causas da ruptura em relação a esse modelo.
Sem descurar as críticas presentes, o antigo Estadista diz ainda que “todos” os moçambicanos tinham a oportunidade de participar do processo de tomada de decisões a partir dos seus bairros. “Era a democracia popular que, apesar das suas imperfeições ou limitações objectivas, proporcionava aos cidadãos um importante espaço de participação e inclusão”.
Desafios do presente e do futuro exigem a formação de líderes
O tema da aula também incluía a liderança. Chissano começou por definir a liderança como a capacidade de influenciar pessoas para a realização de um objectivo comum, sublinhando que ela é uma condição importante para a formulação de “boas políticas públicas” num contexto de pluralidade, como é o caso de Moçambique. De novo voltando ao passado, o orador fez notar que as lutas pelas independências e a construção de novos Estados em África, e em Moçambique em particular, foram conduzidas por figuras carismáticas que revelaram qualidades inatas de liderança. Apesar de reconhecer este tipo de liderança na construção do Estado moçambicano, Chissano defende que os desafios do presente e do futuro exigem a formação e treinamento de líderes. “Da minha experiência pessoal, guardo muito respeito e grande admiração por aqueles líderes com qualidades inatas. Porém, estou convicto de que hoje existem vários motivos que tornam necessária uma formação que eduque o cidadão sobre os valores da liderança e boa governação, para reforçar as suas qualidades inatas”.
Fonte: O País – 29.11.2017
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