Em grande entrevista ao nosso jornal, o académico moçambicano Jaime Macuane abriu o peito, pela primeira vez, depois do atentado que sofreu há pouco mais de ano e meio. No seu jeito característico de homem frontal nas suas análises e opiniões, Macuane comentou de tudo um pouco. Dos temas mais polémicos aos suaves, o presente e perspectivas para o futuro, falou sem rodeios e sem fugir a qualquer assunto, incluindo o que mais lhe marcou num passado recente: o atentado que sofreu.
Há um ano e meio, foi vítima de um atentado que o silenciou enquanto analista político com intervenções semanais no programa Pontos de Vista da STV. Como é que interpretou este acto?
Embora seja trágico e em certo ponto duro, o atentado não foi assim tão surpreendente, tendo em conta o contexto social vivido na época. Era de se esperar, como disse numa edição do programa Pontos de vista: “todos nós podíamos ser potencialmente vítimas da violência que havia no momento”. O acto em si de forma alguma me demove do facto de acreditar que é meu dever, também direito, contribuir para que se possa debater as questões do meu país. E mesmo que sejamos vítimas desta violência que periodicamente se abate sobre nós, acho que recuar e deixar de participar não fará com que esse espírito de resolver as coisas de forma violenta acabe. Pelo contrário, vai dar mais espaço e encorajar ainda mais os protagonistas destes ataques, que pretendem silenciar os moçambicanos que não fazem nada mais do que exercer os seus direitos.
Isto significa que este atentado não vai condicionar a forma como vai colocar as suas exposições...
De forma alguma. Só faz sentido participar de um debate público se eu puder dar o meu contributo de forma consciente e de forma que vale a pena. Se sentisse que o atentado iria cortar a minha forma de ver as coisas, penso que não valeria muito a pena continuar a participar do debate público.
Como está o processo, meteu queixa?
O processo foi à Polícia de Investigação Criminal (PIC). Como mandam os procedimentos, eu fui ouvido, abriram-se autos, mas de Maio do ano passado (2016) até ao momento não tenho nenhuma informação substantiva, a não ser uma nota no último informe da Procuradoria-Geral da República que fala de forma abstracta de alguém que foi raptado, baleado e que supostamente estivesse ligado ao meu caso. Mas fora isso, não tenho dados nenhuns. Agora, lembro-me que um ou dois dias após ter sido raptado e baleado, a STV entrevistou o ministro do Interior, e na altura disse que “nós temos que ver que existem crimes que muitas vezes não têm solução”. Para mim, isto foi uma mensagem bem clara de que no meio de tantos crimes que não têm solução, e tendo a pensar que o meu fará parte dessa lista. Entendi que foi um crime de natureza política e que o acto do qual fui vítima, assim como outros que de certa forma foram vítimas é um acto de pressão. Só um sistema político opressivo é que pode tratar as pessoas desta forma e cabe ao Estado cumprir a sua parte, porque, acima de tudo, o que temos é um crime que deve ser esclarecido, para que as pessoas se sintam seguras e vivam no Estado que protege a vida e protege o exercício de seus direitos.
Falou de um crime de natureza política e, olhando para o assassinato de Mahamudo Amurane, há quase um mês, crime que ocorreu depois de publicamente romper com o seu partido e fazer pronunciamentos contundentes sobre a sua versão da corrupção, até que ponto acha que tem contornos políticos?
Sempre que uma figura pública que exerce um cargo de natureza política é vítima de assassinato ou outro tipo de violência extrema, naturalmente, tendemos a ver isto como um crime de natureza política. Particularmente olhando para o caso de Mahamudo Amurane, é difícil a gente não associar este assassinato ao ambiente político em que ele está. Agora, não estou muito tentado a dizer se foi A ou B, mas entendo que é um crime que muda profundamente o xadrez político de Nampula, tanto para o MDM como para a Frelimo e como vimos, este crime tocou de forma profunda o sentimento étnico, que é extremamente sensível e é importante, sob ponto de vista político em Nampula. É um crime que, independentemente de quem tenha sido o autor moral e material, tinha como objectivo desestabilizar.
O MDM sempre se assumiu como um partido sem histórico de sangue e armas nas mãos e, mesmo sem culpa formal, alguns munícipes acusam o partido pela morte de Amurane. Até que ponto esta situação fragiliza o MDM e como o partido pode dar a volta a esta situação?
Sem dúvidas o MDM sai extremamente fragilizado, por todo o histórico do conflito com Amurane. O partido está numa situação extremamente sensível, tendo em conta o seu modelo de crescimento. Se olharmos para as eleições autárquicas de 2013 e as gerais de 2014, vemos claramente que o MDM não tem uma base provincial nacional sólida, é um partido de “consórcio”, ou seja, cresce baseado em lideranças que emergem regionalmente, no caso, em municípios. Então, a partir do momento em que é um partido que parece não ter uma forte coesão a nível nacional, quando existe algum sinal de que este arranjo de “consórcio” está a ser posto em causa e não como parte de uma estratégia participativa de o partido deixar de ser pólos para ser um partido nacional, penso que isto coloca um sério problema de crescimento e de sobrevivência, pelo menos na base deste modelo, para o MDM. Mas é claro que as eleições de Nampula podem ser um teste, para vermos que danos este assassinato causou.
A morte de Amurane aconteceu a quase um ano das eleições autárquicas e a dois das eleições gerais e das assembleias provinciais. Como é que vislumbra o futuro deste partido em Nampula?
Há-de ser um grande teste, dependendo do sentimento “nampulense” como o sentimento macua, que é uma realidade, embora não se possa assumir que os macuas sejam um grupo étnico homogéneo. Mas pelas questões que surgiram depois desta morte e a forma como podem ser elemento de mobilização, acho que vai ser fundamental, para vermos o que vai ser do MDM em Nampula. Se por acaso vier algum candidato fora dos três grandes partidos (Frelimo, Renamo e MDM) para essas intercalares, talvez seja cedo agora, mas para as próximas eleições, talvez seja possível ver o verdadeiro dano que esta morte de Amurane terá tido no partido.
De que forma este episódio pode repercutir-se noutros municípios com a liderança do MDM, como Quelimane e Beira?
Temos um sistema partidário com ligeira mudança na Frelimo. Nós temos partidos com uma forte base regional. por exemplo, a Frelimo é forte no sul, em Cabo Delgado e Niassa. Esta forte base regional que existe na Frelimo como na Renamo, que é mais forte no centro, acho que pode sofrer mudanças, porque, a meu ver, os nossos partidos estão numa crise. Dá a entender que o sistema partidário está numa forte crise. Esta articulação do MDM, em termos de consórcio, vai sofrer um sério abalo com esta morte, ou seja, com a possibilidade de se ter outros líderes se rebelando em relação a esta liderança. Por que, regionalmente, eles são fortes. Por exemplo, Manuel de Araújo é forte em Quelimane; Mahamudo Amurane estava a ficar forte em Nampula; Venâncio Mondlane teve uma votação histórica nas últimas eleições em Maputo, então, a não ser que o MDM articule outra fórmula, isto vai ser um problema muito sério.
Tendo em conta que a primeira medida do edil interino, Manuel Tocova, foi demitir todos os vereadores de confiança de Amurane, como analisa esta decisão do ponto de vista de gestão da crise que o partido enfrenta? é uma medida que aumenta a divisão no seio do partido?
A medida vai criar um mal-estar, por conta das reacções e a forma como o processo em Nampula está a ser gerido pelo MDM. acho que está a sinalizar coisas desagradáveis para os outros que têm força. Resta saber se têm força em função do partido a que pertencem ou da sua capacidade de se afirmar onde estão. Então, quando há uma gestão do partido como está a ser feita a questão da transição em Nampula, que não colhe consenso, acho que lança um sinal muito mal para os outros e pode ser que eles, em algum momento, achem que aquele projecto pode não ser o mais indicado, a não ser que o MDM saiba como encontrar uma forma sustentável de sair da situação.
Manifestou falta de confiança nas instituições da justiça. Saindo do seu caso, como olha para o sistema da justiça no que diz respeito à decisão tomada sobre a condenação do edil interino de Nampula?
Foi uma acção rara. Olhando numa outra perspectiva, a decisão no caso do edil interino de Nampula tem efeitos a curto prazo e se a justiça não age de forma rápida, as consequências vão ser danosas. Ou seja, ele está a assumir uma autarquia, está a tomar decisões ilegais. a não ser que alguém o pare a tempo, o dano há-de ser muito grande. Não quero dizer que a justiça, sempre que existem situações como esta, é tão célere como foi neste caso.
Falando dos recentes ataques protagonizados por grupos radicais em Cabo Delgado, concretamente em Mocímboa da Praia e Palma, qual é o seu parecer, tendo em conta que o Estado tem mecanismos de antever estes sinais e tomar medidas preventivas.
Depende do que o Estado está a olhar como base para a sua acção. A questão inicial devia ser de onde surgem estes ataques? de onde vêm os seus protagonistas? São apenas um foco de jovens que se radicalizaram ou isto é um foco que informa sobre uma dinâmica social mais profunda? É preciso, também, olhar para a história daquela região. O “banditismo” foi um recurso usado desde o século 17/18 por alguns homens fortes locais para vários fins. A principal questão é como essa informação estava a ser recebida, analisada, e até que ponto aquele assunto era considerado prioritário, sob ponto de vista de segurança do Estado. Nem sempre o Governo funciona de uma forma linear, às vezes, os assuntos que merecem atenção podem ser caóticos ou banais.
As recentes mexidas do presidente da República a nível do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE), das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), da Polícia da República de Moçambique, será no sentido de priorizar estes novos fenómenos que ocorrem no nosso país e trazer respostas à altura?
Não sei, penso que se trata de um processo mais amplo. Repare que, no SISE, o Presidente já havia colocado alguém, mas no exército não. Não se pode entender apenas como uma questão de priorização, pese embora também possa ser. Mas também tem a ver com a dinâmica que o presidente quer dar mexendo pessoas de um posto para o outro, assim como trazendo novas pessoas. Não adianta montar um sistema de segurança que vai recolher muita informação sobre o que acontece, se depois essa informação não é analisada e interpretada de modo a influenciar a tomada de decisões estratégicas. Era importante usar todos os meios que existem, inclusive a própria academia, para estudar certos fenómenos sociais como estes. É preciso ir além de montar um aparelho repressivo, mas analisar as causas e procurar uma solução mais sustentável em relação a este assunto.
Estes ataques acontecem num momento em há avanços no diálogo político, para acomodar as exigências da Renamo e numa zona de investimento bilionário que alimenta a esperança de desenvolvimento económico do país. Que comentários têm sobre isto? Acredita na teoria de mão externa?
Mão externa existe para qualquer país do mundo. Os países devem estar prontos para se defenderem da mão externa, é preciso definir prioridades e olhar como estamos a conceber a nossa segurança como Estado e não apenas reprimir. É pensar profundamente onde estão os erros e ter mais lucidez no que consideramos ameaças externas e temos um sério problema no país para definirmos ameaças externas. Há 42 anos de independência, ainda pensamos que pessoas que pensam diferente são ameaça externa são essas banalizações, e quando ela existe, corre-se o risco de não ser levada a sério.
Fonte: O País – 03.11.2017
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