Por Alfredo Manhiça
Em tom de
celebração de vitória, começando por recordar os principais passos que marcaram
o percurso das negociações entre os presidentes da República e da Renamo,
Filipe Nyusi anunciou, no dia 7 do mês em curso, os consensos alcançados no
domínio da descentralização.
Considerando as
mediocridades que desde o princípio marcaram a nossa história democrática e,
julgando que as reivindicações da Renamo
e de Afonso Dhlakama visavam corrigir tais mediocridades através de um acordo
sobre novas regras e práticas s a conquistobrea e manutenção de poder político,
quando o Presidente da República lia solenemente os conteúdos dos consensos
alcançados, me questionava se o “Pai” da democracia não estaria equivocado
sobre o seu “Filho”.
É indiscutível que
sem o sistema dos partidos políticos não há possibilidade do exercício do
regime democrático: são os partidos políticos que recrutam e preparam os
dirigentes políticos que, depois, os apresentam para serem eleitos dirigentes
máximos da nação, ou para assumirem outras funções públicas; os partidos
políticos são a “caixa negra” de David Easton, onde os cidadãos, as
organizações não governativas e os outros vários grupos sociais colocam as suas
manifestações de apoio ou de contestação (inputs)
que serão, depois, transformados em programa político (outputs) a ser
apresentado na altura dos partidos políticos pedir o voto, ou em políticas
públicas (outcomes), no curso da
governação.
Todavia, para
merecer a designação de democrático, no verdadeiro sentido da palavra, um
sistema político, além de garantir a existência e funcionamento adequado do
jogo dialéctico entre as várias formações políticas, deve também criar espaço
para o exercício da dialéctica entre os partidos políticos e os eleitores,
garantindo que o papel do eleitorado não se limite apenas em chancelar os
interesses dos partidos políticos, algumas vezes resultantes de concertações perversas,
mas sirva de contrapeso quando, por equívoco, os políticos perdem a vereda do
interesse colectivo e focalizam as próprias atenções nos interesses partidários.
A eliminação da eleição directa dos presidentes dos Municípios e o consenso que
impede a eleição directa dos Governadores e Administradores tira do pouco ou do
quase nada que existia da possibilidade do eleitorado opor-se aos interesses
exclusivos dos partidos políticos, em detrimento do interesse comum.
Por sua vez, a
descentralização visa, em sistemas democráticos, não à partilha de poder entre
partidos políticos, nem a uma subordinação hierárquica, de baixo para cima da
pirâmide, mas à devolução aos poderes locais da autonomia nas decisões sobre
certas matérias políticas, administrativas e económicas, de forma a garantir
uma relação dialéctica de pesos e contrapesos entre o governo central e os
governos locais. A eliminação da eleição directa do Presidente do Município
diminui ainda mais a precária autonomia
que as autoridades locais tinham e, por conseguinte, a chefia da Província “por um Governador nomeado pelo Presidente da República, sob proposta
apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos
ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições
para a assembleia provincial” não trás nenhum progresso institucional na política moçambicana.
O Moçambique que o Presidente
da Renamo diz que “vai ser diferente de Moçambique de hoje”, claro que vai ser
deferente porque, além dos lugares que a Renamo e Afonso Dhlakama sempre
esperam obter na Assembleia da República, o novo consenso assegura-lhes outras
posições. A Frelimo, cuja agenda é ainda aquela de excluir todos aqueles que
não se deixam condicionar mostrou-se, por enquanto, disposta a ceder algumas
migalhas do poder à Renamo porque se não Dhlakama vai bloquear as vias de
comunicação e atacar os civis.
Ao dizer que o
acordo conseguido com a Frelimo “vai permitir mesmo que um partido não consiga
chegar ao poder central, pequenos partidos terão oportunidade de governar
províncias” (Savana, nº 1257/2018), Dhlakama mostra claramente que a sua agenda
nas correntes negociações não tem nada a ver com o seu “Filho”, mas com a
“oportunidade de governar”, mesmo que isso implique sacrificar o seu “Filho”.
Enquanto a maioria
dos Moçambicanos esperava que fosse desta vez em que se ia corrigir aquela
redundância de ter na mesma cidade um presidente do Município e um
Administrador, os quais só passam a vida a atropelar-se um ao outro (enquanto o
Estado vai gastando por eles os recursos que não os temos), a Renamo e Afonso Dhlakama
― impedindo qualquer forma de debate
público ― condenaram as províncias a um desagradável casamento entre a nova
figura de Secretariado de Estado e o Governador.
As províncias que
terão a “desgraça” de ser governadas por um partido de oposição, poderão
testemunhar o fenómeno do ensombramento da
figura do Governador, e a emergência da figura do Secretário de Estado, o qual,
além do apoio político, poderá contar também com o controlo dos recursos
económicos e os meios de produção. Ampliar-se-á, assim, o número de chorões que
passarão o tempo todo a cantar a ladainha da lamentação porque o governo
central congela os recursos operativos.
Como bem disse o Presidente
da República no seu anúncio do consenso “o Governador responderá diretamente à
Assembleia Provincial”. Além de pecar pela ineficiência ― como acima
demonstramos ―, este sistema contém também um elevado potencial de
instabilidade política. Os governadores que não tiverem maiorias absolutas nas
Assembleias Províncias e, por isso, precisarem de coligações com outros
partidos para serem propostos à nomeação, da parte do Presidente da República,
poderão estar constantemente sob pressão de ameaças de retirada da coligação, o
que poderá ditar a paralisação da governação ou a queda do governo provincial,
por falta de apoio dos partidos de coligação.
Dhlakama e a Renamo
deveriam ter já aprendido que o papel que acreditam que a história lhes
reserva, de serem os catalisadores da resistência contra a constante tentação
que o partido no poder tem, de esvaziar os ganhos democráticos e reconsolidar o
autoritarismo e o absolutismo, não se compadece com o vício ― copiado da
Frelimo ― de julgar que o simples facto de terem empunhado em armas (as quais
eram muitas vezes utilizadas para roubar e destruir bens alheios, ou para
ceifar vidas inocentes), automaticamente conquistaram o direito exclusivo de baratar
os destinos do país a seu bel prazer.
Percebe-se
perfeitamente porquê é que o Presidente Nyusi leu o anúncio dos consensos como
se estivesse a fazer uma narrativa de vitória. O regresso de Dhlakama às matas
de Gorongosa, que parecia ter o potencial para forçar a Frelimo a redimensionar
a sua nociva governação de tipo absolutista, revelou-se ser uma boa
oportunidade para a Frelimo capitalizar. Doravante não será só o ex-presidente
Joaquim Chissano a orgulhar-se de ter enganado Dhlakama. Terminado o seu
mandato, Nyusi também tem de que orgulhar-se: aquele mesmo homem e as suas
reivindicações que pareciam o maior desafio da sua carreira política e do seu
predomínio no seio do próprio partido, tornaram-se o seu trampolim. Ao narrar
esta peripécia dirá que a sua astúcia consistiu em negociar e conseguir o
afastamento da Sociedade Civil, dos Religiosos, da mediação nacional e
internacional, para depois defraudar o ingénuo
Dhlakama.
Quando Dhlakama diz
que “outras coisas poderão ser corrigidas no futuro” mostra apenas que ainda
não percebeu a agenda da Frelimo, que enquanto todos os moçambicanos,
pacientemente, esperam um progresso institucional, o partido no poder está
empenhado na reconsolidação do
absolutismo e, muitas vezes, usando as próprias reivindicações de Dhlakama e da
Renamo para formalizar os passos do seu programa.
O Documento do
consenso Frelimo-Renamo sobre a descentralização já está na Assembleia da
República, onde os senhores marionetes, enriquecidos pelo sangue e suor dos
moçambicanos, estão à espera para discutir e decidir o que já foi discutido e
decidido. O que gostaria de ver – embora saiba que estou proibido de ver – era
uma enorme moldura de gente em frente da Assembleia da República e das Assembleias
Provinciais a dizer “NÃO” aos consensos anunciados, e “NÃO”, não queremos ser representados por fantoches.
Alfredo Manhiça
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