sábado, fevereiro 24, 2018

É POSSÍVEL QUE O “PAI” DA DEMOCRACIA NÃO CONHEÇA SEU FILHO?


Por Alfredo Manhiça

Em tom de celebração de vitória, começando por recordar os principais passos que marcaram o percurso das negociações entre os presidentes da República e da Renamo, Filipe Nyusi anunciou, no dia 7 do mês em curso, os consensos alcançados no domínio da descentralização.

Considerando as mediocridades que desde o princípio marcaram a nossa história democrática e, julgando que as  reivindicações da Renamo e de Afonso Dhlakama visavam corrigir tais mediocridades através de um acordo sobre novas regras e práticas s a conquistobrea e manutenção de poder político, quando o Presidente da República lia solenemente os conteúdos dos consensos alcançados, me questionava se o “Pai” da democracia não estaria equivocado sobre o seu “Filho”.

É indiscutível que sem o sistema dos partidos políticos não há possibilidade do exercício do regime democrático: são os partidos políticos que recrutam e preparam os dirigentes políticos que, depois, os apresentam para serem eleitos dirigentes máximos da nação, ou para assumirem outras funções públicas; os partidos políticos são a “caixa negra” de David Easton, onde os cidadãos, as organizações não governativas e os outros vários grupos sociais colocam as suas manifestações de apoio ou de contestação (inputs) que serão, depois, transformados em programa político (outputs) a ser apresentado na altura dos partidos políticos pedir o voto, ou em políticas públicas (outcomes), no curso da governação.


Todavia, para merecer a designação de democrático, no verdadeiro sentido da palavra, um sistema político, além de garantir a existência e funcionamento adequado do jogo dialéctico entre as várias formações políticas, deve também criar espaço para o exercício da dialéctica entre os partidos políticos e os eleitores, garantindo que o papel do eleitorado não se limite apenas em chancelar os interesses dos partidos políticos, algumas vezes resultantes de concertações perversas, mas sirva de contrapeso quando, por equívoco, os políticos perdem a vereda do interesse colectivo e focalizam as próprias atenções nos interesses partidários. A eliminação da eleição directa dos presidentes dos Municípios e o consenso que impede a eleição directa dos Governadores e Administradores tira do pouco ou do quase nada que existia da possibilidade do eleitorado opor-se aos interesses exclusivos dos partidos políticos, em detrimento do interesse comum.   

Por sua vez, a descentralização visa, em sistemas democráticos, não à partilha de poder entre partidos políticos, nem a uma subordinação hierárquica, de baixo para cima da pirâmide, mas à devolução aos poderes locais da autonomia nas decisões sobre certas matérias políticas, administrativas e económicas, de forma a garantir uma relação dialéctica de pesos e contrapesos entre o governo central e os governos locais. A eliminação da eleição directa do Presidente do Município diminui ainda mais  a precária autonomia que as autoridades locais tinham e, por conseguinte, a chefia da Província “por um Governador nomeado pelo Presidente da República, sob proposta apresentada pelo partido político, coligação de partidos políticos ou grupo de cidadãos eleitores que obtiver maioria de votos nas eleições para a assembleia provincial” não trás nenhum progresso institucional na política moçambicana.

O Moçambique que o Presidente da Renamo diz que “vai ser diferente de Moçambique de hoje”, claro que vai ser deferente porque, além dos lugares que a Renamo e Afonso Dhlakama sempre esperam obter na Assembleia da República, o novo consenso assegura-lhes outras posições. A Frelimo, cuja agenda é ainda aquela de excluir todos aqueles que não se deixam condicionar mostrou-se, por enquanto, disposta a ceder algumas migalhas do poder à Renamo porque se não Dhlakama vai bloquear as vias de comunicação e atacar os civis.

Ao dizer que o acordo conseguido com a Frelimo “vai permitir mesmo que um partido não consiga chegar ao poder central, pequenos partidos terão oportunidade de governar províncias” (Savana, nº 1257/2018), Dhlakama mostra claramente que a sua agenda nas correntes negociações não tem nada a ver com o seu “Filho”, mas com a “oportunidade de governar”, mesmo que isso implique sacrificar o seu “Filho”.

Enquanto a maioria dos Moçambicanos esperava que fosse desta vez em que se ia corrigir aquela redundância de ter na mesma cidade um presidente do Município e um Administrador, os quais só passam a vida a atropelar-se um ao outro (enquanto o Estado vai gastando por eles os recursos que não os temos), a Renamo e Afonso Dhlakama ―  impedindo qualquer forma de debate público ― condenaram as províncias a um desagradável casamento entre a nova figura de Secretariado de Estado e o Governador.

As províncias que terão a “desgraça” de ser governadas por um partido de oposição, poderão testemunhar o fenómeno do ensombramento  da figura do Governador, e a emergência da figura do Secretário de Estado, o qual, além do apoio político, poderá contar também com o controlo dos recursos económicos e os meios de produção. Ampliar-se-á, assim, o número de chorões que passarão o tempo todo a cantar a ladainha da lamentação porque o governo central congela os recursos operativos.

Como bem disse o Presidente da República no seu anúncio do consenso “o Governador responderá diretamente à Assembleia Provincial”. Além de pecar pela ineficiência ― como acima demonstramos ―, este sistema contém também um elevado potencial de instabilidade política. Os governadores que não tiverem maiorias absolutas nas Assembleias Províncias e, por isso, precisarem de coligações com outros partidos para serem propostos à nomeação, da parte do Presidente da República, poderão estar constantemente sob pressão de ameaças de retirada da coligação, o que poderá ditar a paralisação da governação ou a queda do governo provincial, por falta de apoio dos partidos de coligação.

Dhlakama e a Renamo deveriam ter já aprendido que o papel que acreditam que a história lhes reserva, de serem os catalisadores da resistência contra a constante tentação que o partido no poder tem, de esvaziar os ganhos democráticos e reconsolidar o autoritarismo e o absolutismo, não se compadece com o vício ― copiado da Frelimo ― de julgar que o simples facto de terem empunhado em armas (as quais eram muitas vezes utilizadas para roubar e destruir bens alheios, ou para ceifar vidas inocentes), automaticamente conquistaram o direito exclusivo de baratar os destinos do país a seu bel prazer.

Percebe-se perfeitamente porquê é que o Presidente Nyusi leu o anúncio dos consensos como se estivesse a fazer uma narrativa de vitória. O regresso de Dhlakama às matas de Gorongosa, que parecia ter o potencial para forçar a Frelimo a redimensionar a sua nociva governação de tipo absolutista, revelou-se ser uma boa oportunidade para a Frelimo capitalizar. Doravante não será só o ex-presidente Joaquim Chissano a orgulhar-se de ter enganado Dhlakama. Terminado o seu mandato, Nyusi também tem de que orgulhar-se: aquele mesmo homem e as suas reivindicações que pareciam o maior desafio da sua carreira política e do seu predomínio no seio do próprio partido, tornaram-se o seu trampolim. Ao narrar esta peripécia dirá que a sua astúcia consistiu em negociar e conseguir o afastamento da Sociedade Civil, dos Religiosos, da mediação nacional e internacional, para depois defraudar o ingénuo  Dhlakama.

Quando Dhlakama diz que “outras coisas poderão ser corrigidas no futuro” mostra apenas que ainda não percebeu a agenda da Frelimo, que enquanto todos os moçambicanos, pacientemente, esperam um progresso institucional, o partido no poder está empenhado na reconsolidação  do absolutismo e, muitas vezes, usando as próprias reivindicações de Dhlakama e da Renamo para formalizar os passos do seu programa.

O Documento do consenso Frelimo-Renamo sobre a descentralização já está na Assembleia da República, onde os senhores marionetes, enriquecidos pelo sangue e suor dos moçambicanos, estão à espera para discutir e decidir o que já foi discutido e decidido. O que gostaria de ver – embora saiba que estou proibido de ver – era uma enorme moldura de gente em frente da Assembleia da República e das Assembleias Provinciais a dizer “NÃO” aos consensos anunciados, e “NÃO”,  não queremos ser representados por fantoches.

                                                                                                                                                                                                    Alfredo Manhiça

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