Por Amosse Macamo
Não pude resistir a este debate sobre o mérito ou não da periodização da história recente do país tomando como base marcos históricos que delimitam processos históricos decisivos da nossa gesta pela dignidade e independência nacional. Machado da Graça e Júlio Muthisse corporizam o debate num dos jornais da praça. O semanário Domingo também debateu as 3 gerações num dos seus mais recentes editoriais. Entro no debate na convicção de que ao se destacarem alguns marcos e gerações do nosso devir histórico não se pretende, de forma alguma, desvalorizar a acção de outras gerações que contribuíram, a longo termo, para a cristalização da ideia que hoje temos de Moçambique, a nossa Pátria Amada.
Considero também que, ao debater esta questão há que ter presente um facto incontestável: houve neste país uma geração que teve um privilégio inigualável. O privilégio de lutar pela conquista da independência. De lutar pela reconquista da dignidade nacional e da soberania. Pode-se assim dizer que a geração do 25 de Setembro teve uma acção e mérito únicos, irrepetíveis e decisivos na configuração da história da pátria. Do que posso deduzir da literatura (Jean Penvenne, We are all Portuguese: challenging the political economy of assimilation, e Aurélio Rocha, Associativismo e nativismo em Moçambique: contribuição para o estudo das origens do nacionalismo mocambicano) a maioria dos proto-nacionalistas que Machado da Graça cita despertou para a necessidade da luta pelo tratamento não discriminatório quando se apercebeu que os direitos que pensava que tinha não eram respeitados, no contexto do propalado conceito de portugalidade. Esta forma de ver os desafios de então viria a ser ultrapassada pela geração do 25 de Setembro. Pode-se dizer até que esta luta pela integração e igualdade de direitos, nesse discutível conceito de portugalidade, não incluía a esmagadora maioria do nosso povo.
Reconhecidamente, há nos escritos de alguns desses precursores textos de indignação veemente pelas servícias a que estava submetida a maioria do nosso povo que incluíam o trabalho forçado, o imposto de palhota, as deportações e as punições humilhantes – se os direitos porque lutavam tivessem sido reconhecidos, a sua acção política subsequente só pode ser objecto de especulação e conjecturas académicas. O que é facto, porém, é que a ter tido sucesso, a luta protagonizada pelos proto-nacionalistas traria ganhos apenas para uma pequena minoria de assimilados e alguns mestiços. Existe, portanto, uma diferença abismal entre luta pela independência e a luta por direitos cívicos dentro de um sistema de dominação estrangeira. Ademais, há um aspecto que Machado da Graça falha em compreender e que Júlio Muthisse aborda na sua réplica. As fontes (permita-se-me que que use este termo) do nacionalismo devem ter sido várias. Alguns chegaram à consciência nacional evoluindo a partir das reivindicações de igualdade de direitos dentro desse discutível conceito de portugalidade, ou lendo textos dos precursores do nacionalismo moçambicano como João Albazine, José Albazine, Karel Pot, Estácio Dias e outros. Outros chegaram à consciência nacional a partir das suas experiências concretas de dominação e humilhação. Muitos destes não leram nem ouviram falar do Brado Africano. Outros ainda pela sua experiência nos países vizinhos onde o fervor pela libertação era notável. Atrevo-me a dizer que esmagadora maioria dos que corporizaram a FRELIMO pertence a estes dois últimos estratos. Outros ganharam a consciência nacional a partir de um percurso ligado às igrejas protestantes. O próprio Eduardo Mondlane foi produto dos mintlawas que, eram alternativas informais de educação da juventude africana face às restrições práticas e legislativas impostas pelas autoridades portuguesas às igrejas protestantes, através do Estatuto Orgânico das Missões Portuguesas em África, de 1926. Os mintlawas, de acordo com Teresa Cruz e Silva, na sua obra Protestant Churches and the formation of Political consciouness in Southern Mozambique, realizavam “um programa especial de educação da juventude da Missão Suíça, cujo objectivo principal consistia em moldar a personalidade dos jovens dentro de um espírito cristão”. Aqui ensinava-se, entre outras, e sem fugir das tradições dos pastores de gado, da cultura dos povos, e recuperando Tereza Cruz e Silva, as “capacidades como planeamento, organização, auto-suficiência, liderança, disciplina do corpo e do espírito”, o que fazia com que os jovens abrissem os seus horizontes sobre os aspectos sociopolíticos. A isto se junta o movimento de 1949, designado de Lumuku, ou desmame, que consistia em a Pos. utonomizar a missão suíça em Moçambique para dar origem à Igreja Presbiteriana de Moçambique. O ecumenismo que ganha maior expressão através do Seminário de Ricatla e outros pode ser visto neste contexto de criação de consciência sobre necessidade de independência e de unidade na acção para o seu alcance.
Algumas igrejas protestantes passaram a ser veículos de ideias pan-africanistas e anticoloniais. Esta atitude reflectiu-se através dos hinos cantados durante as orações. Um deles, por exemplo, incitava a África a lutar para sair da inércia em que se encontrava e que, por causa dela, se tornou um “ridículo para todas as nações” porque os seus filhos “são escravos dos estrangeiros”. Uma canção evocativa de Ngungunyane foi introduzida nos cânticos da Igreja Etiópica Luso-Africana, nos anos 30, denunciando as atrocidades coloniais e cantando a angústia de que a população se encontrava imbuída. Recordando Ngungunyane, a canção apelava à revolta e à expulsão dos colonizadores.
Foi destas formações que despontaram, entre outros, nomes de nacionalistas como Gabriel Macávi, Zedequias Manganhela e José Sidumo, tendo os dois últimos sido assassinados pelo regime colonial, que via ameaça na missão das igrejas protestantes de onde estes eram pastores, na sua política de educar o chamado indígena, dotando-o de capacidades analíticas, críticas e de intervenção.
De recordar que as igrejas protestantes, ao adoptarem as línguas moçambicanas como veículos de difusão de informação e formação faziam nascer a auto-estima, o sentido de dignidade e a consciência colectiva de nacionalismo, de pertença, faziam nascer a alma de todo um povo, criavam a revolta positiva e concertada que levou à acção: a criação de uma frente que cresceria na base da sua estruturação celular no seio do povo oprimido. Uma frente que encarnou o sofrimento comum e o ideal da libertação do homem e da terra.
Duvido e muito, repito, que a maioria dos jovens da geração de 25 de Setembro se tenha inspirado nos textos de revolta dos irmãos Albazines no jornal o Brado Africano. Uma grande parte deles inspirou-se no ensino que as igrejas protestantes persistentemente transmitiam, falando directamente para seus corações (usando as suas próprias línguas) em jornais como Nyeleti Ya Misho, da Missão Suíça, escrito em Tsonga, mais tarde substituído pelo Jornal Mahlahle; o Kuxa Kamixo, escrito em tshwa, ligado à Igreja Metodista Episcopal, e o Djambu da África, escrito em ronga. Estes jornais, inspirados por figuras como João Thomaz Chembene, Samsom Chambale, Lindstrom Matite e Benjamim Augusto Moniz estes fundadores do ANC de Moçambique, nos anos 1920, bem como Mot Sicobele, entre outros, transmitiam o ideal de libertar o homem e a terra. Voltemos à Tereza Cruz e Silva mesmo a terminar que diz: “Embora orientados para os interesses dos crentes e das igrejas, os jornais vernáculos publicavam notícias sobre a actualidade política da época” e prossegue “tomando partido do facto de os portugueses serem hostis às línguas africanas e portanto na maior parte dos casos incapazes de compreender o verdadeiro sentido das mensagens transmitidas (...) os jornais publicaram análises sobre a situação política em Moçambique e o mundo, defendendo muitas vezes posições políticas que jamais poderiam ter sido apresentados em língua portuguesa, jogando assim um papel de intervenção social”. É também daqui, e muito daqui, que nasceram verdadeiros nacionalistas, uma Geração de sonhadores que acreditaram na utopia de gerar uma nação. Houve, certamente, outras fontes do norte a sul do nosso país, entre todos os grupos étnicos e sociais. Houve, também, outras personalidades que inspiraram a geração do 25 de Setembro no desencadeamento da luta de libertação nacional.
Não posso pois concordar com Machado da Graça quando faz da periodização da história um exercício baseado nas emoções, em afectividades e em datas cronológicas. Concordo com Júlio Muthisse quando sugere uma periodização baseada em marcos que delimitam processos históricos que marcam decisiva e profundamente o nosso devir histórico. A primeira geração que, sem dúvida imprimiu uma marca indelével na história de Moçambique e do mundo é a geração do 25 de Setembro. A geração do 8 de Março foi continuadora audaz de todo este processo. Esperamos que, também a geração da viragem, da qual faço parte, venha a marcar a história do nosso país com páginas de ouro.
Fonte: Mocambique para todos - 22.04.2010
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