Por: Gento Roque Cheleca Jr., em Bruxelas
“Nas coisas do poder político quem não liberta a sociedade, com transparência e responsabilidade, amarra-se a si próprio ao comboio da hecatombe”. Marcolino Moco, jurista angolano.
O título desta crónica pode parecer precogitado, mas como dissemos não é de carácter justo de um cristão (como é o nosso caso) julgar a um morto, muito menos o faríamos, agora que as redacções dos jornais e das televisões andam gordurosas com notícias sobre a morte do coronel Muammar Kadhafi, este que foi para muitos o mais fiel "discípulo de Lúcifer"
As glórias e os defeitos do coronel Kadhafi são assuntos que, quanto a nós, dizem respeito ao povo líbio, porquanto a dor alheia não se escoa nem se amaina com mergulhos no mar das prosas, qual “maziones” no rio Jordão temperando seus enfermos, com palavras consoladoras. Não há frases que possam consolar órfãos e viúvas.
E um povo mutilado, por mais elaboradas que sejam as palavras do seu líder, o caminhar da luta pela conquista da liberdade jamais cessará, enquanto não lhe for devolvida à liberdade, justamente porque as suas memórias são povoadas pelas negruras da vida. Dizia o poeta Aguinaldo Fonseca, nenhum obstáculo detê-lo-á na estrada longa da sua esperança.
Nisso, com todo o respeito que devemos ao povo líbio, terá a nossa maior consideração.
Contudo, queremos enfatizar que em política, como na vida em geral, não há poderes eternos. Nenhum sistema político, por mais matusalém que pareça ser, é elástico. Há limites. A liberdade de castigar um povo sob pretexto de ser, esse partido ou aquele governante, libertador da pátria ou o escolhido da sorte, quando não é combatida pelo voto democrático, acaba no momento em que os golpes do estômago esfomeado desse mesmo povo aplicar seus votos aos carcereiros da liberdade.
Exemplos disso transbordam os compêndios, infelizmente os políticos não aprendem dessas lições e preferem contornar a filosofia da vida: não se pode colher sem semear, ou seja, cá se faz cá se paga. Quase todos eles, praxes ou aprendizes, acabam por provar do próprio veneno. Contudo, na hora de ajustes de conta, no dito tribunal popular, aparecem os "enviados de Lúcifer", os ditadores, suplicando entre lágrimas e clemências, para que os cavaleiros da justiça popular (o povo) os perdoe e liberte dos grilhões, que eles próprios recorrem para acorrentar o seu próprio povo.
As imagens televisivas e a memória dos povos registaram os apelos de complacência, no acto de desespero, dos presidentes Ben Ali, da Tunísia, Hosni Mubarak, do Egipto, Saddam Hussein, do Iraque, Samuel Doe, da Libéria, Laurent Gbagbo, da Costa do Marfim, Slobodan Milosevic, da Sérvia, Nino Vieira, da Guiné-Bissau, Kamuzu Banda, do Malawi, só para citar alguns exemplos.
Não é que o povo não saiba perdoar, nos casos em que os "discípulos de Lúcifer" foram levados ao pelourinho e mortos, é que o grito da liberdade é muito mais forte do que o pedido de clemência de qualquer tirano compulsivo. No dito tribunal popular a verdade não prescreve e não há espaço para a defesa do tiranete.
Alguns companheiros destes tiranos, uns aposentados e outros ainda no activo, terão o mesmo fim. O desfile destes sanguinários prova que a ditadura não tem latitude, tanto pode acontecer (e acontece) em África como na América, na Europa como na Ásia, ou na Oceânia. A escola de ditadores é impressionante, com o recurso à poligamia, muitos pintainhos de ditadores nascem, crescem e desenvolvem-se dominando a arte de apunhalar o seu próprio povo.
Todavia, não deixam de ser ditadores os líderes que se alimentam de actos democráticos (eleições) destruindo o ninho alheio. Exemplos dessa natureza também engordam os compêndios.
Por isso é que o sarampo das manifestações tem encontrado sérias dificuldades em varrer a "ditadura democrática". Porém, acreditamos nós que as manifestações populares que neste momento abalam os continentes Africano, Europeu e Americanos, são ventres do presente que embalarão o novo amanhã. São sinais inequívocos de que os povos destes continentes estão fartos da cogumelação de políticos e de políticas que conduzem o mundo à hecatombe e ao precipício.
Talvez não seja inútil precisar que o nosso país, Moçambique, esteja a registar casos gritantes de frinchas de pobreza extrema entre a população rural, que poderão resultar em situações semelhantes às manifestações de 2008 e 2010, respectivamente.
Como observador, preocupamo-nos a intenção do governo em querer rever a Constituição da República, que a maioria parlamentar da Frelimo aprovou em 2004, acomodando os interesses deste partido. Esta atitude não é de gago nem de ingénuo, há interesses duvidosos nisso, mas o povo está atento e já dorme de coelho (com os olhos bem abertos).
Preocupa-nos pois que a bandeira do país, no lugar de reflectir os valores do povo moçambicano e da soberania nacional, tende a ser o símbolo da corrupção. Juízes envolvem-se em esquemas de corrupção, ex-ministros presos por roubo e abuso do poder, empresas públicas em estado terminal, arruinadas pela sofreguidão de alguns camaradas, fazendo lembrar “capivaras” roendo capim, enfim, o Estado cada vez mais de braços estendidos para o exterior como se fossemos incapazes e não tivéssemos chão.
Voltando ao submundo da política, assunto abordado há três semanas nesta gazeta, no que toca a Líbia, é preciso ter-se muito cuidado com a conjuntura das relações internacionais.
Aqueles que hoje lançam apelos de reconciliação para o povo líbio, no sentido deste virar a página da sua história com a morte do coronel Kadhafi, são os mesmos que há poucos anos, do outro lado do continente, regaram campos de produção com bombas de fragmentação e nucleares.
Por outro lado, o rebuçado que estimulou o povo líbio a correr com o ditador pode já estar a terminar a sua doçura. Por isso, antes de festejar a queda do regime do coronel Kadhafi, vale a pena questionar quem são os elementos do Conselho Nacional de Transição (CNT) da Líbia? Antes mesmo de estudarmos qualquer que seja a nova ordem nacional, é preciso compreender quem são os autores? Quem os financia? Qual é o volume de negócios que eles representam?
É preciso desmistificar pequenas partículas que a prior não parecem visíveis. O CNTL não surgiu como papaieira, do nada, tem a sua génese que urge fossilizar das brumas dos túneis das relações internacionais…
Nada em relações internacionais é fruto do acaso, aliás, em política internacional os beija-mãos não acontecem à toa. Os beijos às mãos de Kadhafi pelos seus companheiros (parceiros) não aconteciam por adoração ao ditador, queriam saciar os sacos vazios. Já aqui dissemos que em relações internacionais a amizade é regida pelos interesses, ou seja, a política internacional exprime interesse muita das vezes irracionais.
Portanto, é nossa preocupação que o que foi destruído na Líbia seja reconstruído com a mesma velocidade que a destruíram. Desde logo (seria um sinal inequívoco de transparência), apelamos aos doadores para que assistam imediatamente os que mais precisam da ajuda humanitária e que colassem rapidamente remendos nas frinchas das bombas da NATO, em detrimento dos cobiçados poços de petróleo.
Como é consabido, a lei internacional não é mais do que um tratado. E um tratado não é mais do que um contrato entre dois ou mais Estados do Direito Internacional. Caberá, então, a esses Estados do Direito Internacional evitar a “somalização” da Líbia, que de resto a acontecer seria vantajoso para os abutres que debicam da riqueza alheia.
Não estamos aqui a dizer, porém, que os ditos Estados do Direito Internacional são fiscais do mundo, não há quanto a nós nem bom nem mau poder, o que há são poderes diferentes.
Para terminar, de Angola, o presidente José Eduardo dos Santos mandou um recado ao mundo dizendo “aqui não há ditadura”. Bem, não há pior engano do que aquele que alguém se engana a si próprio. Aliás, não conhecemos nenhum poder que não se justifique ou legitima a si próprio. É tempo do nosso irmão mangolê, José Eduardo dos Santos, abdicar do poder.
As pernas podem faltar quando o estômago do povo angolano acusar esgotamento. Acabar na sarjeta não é digno de um líder, a ninguém é digno, aliás!
“ K o c h i k u r o ” ( O b r i g a d o )
Wamphula Fax – 27.10.2011
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