domingo, outubro 09, 2011

O modus operandi da justiça em Nampula Relato de uma cidadã indignada e revoltada*

Escrito por Carlos

Por volta das 12.30 do dia 16 de Setembro, 6ª Feira, eu, Irene da Conceição Hermínio Mendes a exercer o cargo de Directora da Escola Superior de Estudos Universitários de Nampula (ESEUNA), uma unidade pertencente à Universidade Politécnica, acabava de chegar a casa, vindo de uma palestra que decorrera no Anfiteatro da Academia Militar, quando recebo uma chamada de um número estranho, perguntando se eu era a Dra.
Irene Mendes e se era a Directora da Universidade Politécnica de Nampula. Confirmei os dados. Em seguida, eles disseram que eu me devia apresentar ao tribunal da cidade de Nampula. Perguntei qual era o assunto, a pessoa que estava na linha disse apenas que estivera pela manhã na Escola, onde dirijo e que não me tinha encontrado. Acrescentou que, na semana passada, estivera lá e a secretária (administrativa) dissera que eu recusara dar uma informação. Fiquei intrigada e telefonei de imediato para a Secretária Executiva da Escola. Ela confirmou que tinham aparecido uns senhores do tribunal que queriam falar comigo. Ela informou-os que eu estava na palestra e eles pediram o meu contacto. Ela deu-lhes. Entretanto, ela sugeriu que eu lhes telefonasse para insistir sobre o assunto. Assim o fiz, eles não adiantaram nada e insistiram para me apresentar no tribunal. Disse-lhes que só ia ao tribunal se fosse notificada para tal. Perguntaram onde eu me encontrava. Disse-lhes que estava na minha residência e dei-lhes o endereço.
Quando eram quase 14.00h, enviei-lhes uma mensagem a informar que às 15.00h iria trabalhar. Responderam que estavam quase a chegar e, de facto, dez minutos depois, enviaram a mensagem a dizer que já tinham chegado.
Coincidentemente, estava acompanhada por uma colega. Estava à espera de ver um carro com inscrições de tribunal da cidade, mas deparei-me com dois indivíduos numa motorizada. Um deles saiu da mota, veio ter comigo e apresentou-se como o indivíduo que me tinha telefonado. Logo em seguida, pediu que os acompanhasse. Disse-lhe que só o faria depois de ver a notificação. Respondeu que veria isso lá no tribunal. Recusei, afirmando que não os conhecia de lado nenhum e era estranho que, sem qualquer documento, me pedissem para os acompanhar. Foi então que o mesmo indivíduo, que estava a falar comigo, pediu ao colega que me mostrasse um papel que tinha numa pasta entre vários outros papéis. Aquele assim o fez. Não li todo o documento, mas li o essencial: desobediência. Fiquei completamente estupefacta e, num tom revoltado, disse-lhes que aquilo era uma brincadeira. Perguntei-lhes a quem e o quê eu tinha desobedecido. Voltaram a responder que essas respostas tê-las-ia no tribunal. Voltando a pedir-me para os acompanhar. Convencida que estava perante um engano que precisava de ser esclarecido, pedi-lhes que esperassem enquanto eu me preparasse decentemente (estava com bermudas caseiras e de chinelos). Assim fizeram. Comentei com a minha colega que o assunto parecia sério. Decidimos ir de carro que a minha colega estava a conduzir.
Chegados lá, entrámos pelas traseiras, o que me deixou a ainda mais desconfiada, mas como estava com a minha colega, fiquei um pouco tranquila. Ele explicou-me que os escritórios ficavam no quintal. Ainda pouco convencida, segui-o.



No local que até agora não sei se é uma esquadra ou uma sala de audiência, pediu-me que aguardasse porque, naquele momento, estava a decorrer um julgamento. Assim o fiz. Pensei que seria por pouco tempo. Entretanto, no verso da mesma folha que ele me mostrou em minha casa, ela rabiscou qualquer coisa que me pediu para assinar. Disse-lhe que não assinava nada sem ler primeiro. Não li todo o texto, apenas o suficiente para reagir mal. Logo no início, aparecia: “ Capturei a senhora fulana de tal”. Fiquei chocada e indignada. Afinal tinha sido capturada? Não me considerava como tal, por isso recusei assinar esse documento. Ele respondeu: “Para nós isso não tem qualquer importância”. E saiu de seguida.
O tal julgamento nunca mais terminava, comecei a ficar impaciente porque estava convencida que ainda ia trabalhar àquela tarde. Entretanto chegaram os meus colegas. Duas das minhas colegas imploraram que eu fizesse um requerimento a pedir a minha soltura, mediante o pagamento de uma caução. No início, resisti bastante porque, por um lado, não me considerava presa nem detida, e, por outro lado, continuava a achar que tinha havido um engano porque nunca recebera antes uma notificação e, por isso, nunca tinha desobedecido à justiça. Mas, vendo passar a hora e, por se tratar de uma 6ª Feira, acabei, contrariada, escrevendo o tal requerimento dirigido à 2ª secção do Tribunal da cidade a solicitar a minha soltura.
Entretanto, enquanto aguardava na sala, ia acompanhando o movimento de indivíduos, todos homens, que entravam naquele espaço onde me encontrava, eram metidos num compartimento com apenas um quadrado, com aproximadamente 10cm, para comunicarem com o exterior. Esse compartimento cheirava a urina. Depois desse compartimento, eram metidos numa viatura com destino à cadeia.
Depois de mais de uma hora, aparece uma senhora que pergunta se sou representante da Universidade Politécnica. Confirmei, pediu-me o meu nome e a minha naturalidade. Dei-lhes os dados. Era a primeira pessoa que se dirigia a mim, por isso, perguntei-lhe se ainda demorava a entrar para ser ouvida porque pretendia ir trabalhar. Ela respondeu que sim e que não devia contar que ainda fosse trabalhar naquela tarde. Apercebi-me que o assunto estava a ganhar contornos muito sérios. Voltei a sentar-me pacientemente à espera que a qualquer momento me chamassem para ser ouvida e pudesse esclarecer definitivamente aquele imbróglio. Continuava a achar que havia um engano. Entretanto, as minhas colegas foram dar entrada o requerimento que eu escrevera.

A CAMINHO DA CADEIA FEMININA
Quando eram cerca das 15.30, chamaram-me, estranhamente na direcção oposta, chamaram-me para fora. Perguntei-lhes onde ia: disseram-me que ia para a cadeia feminina. Nem tive tempo de reagir tal foi a rapidez neste processo e, de uma forma rude (foi a única vez que senti rudeza no tratamento), obrigaram-me a entrar num carro prisional completamente lotado com homens e um guarda prisional. Os homens, que lá estavam, informaram-me que a partir dali não devia usar telemóvel, mas como o guarda prisional era compreensivo, poderia fazê-lo antes de chegar à cadeia, onde era completamente proibido o uso de telemóveis. Escrevi várias mensagens aos meus superiores hierárquicos, às minhas colegas da ESEUNA e aos meus familiares a informar que estava a ser presa. Numa das mensagens, pedi aos meus colegas que perseguissem o caro prisional para eu lhes entregar os meus haveres.
Quando chegamos à cadeia Rex, eu e a minha companheira de viagem, completamente inconsolável, fomos submetidas à revista. Como uma criminosa, mandaram-me despir a blusa e começaram a apalpar os seios para verem se não havia nenhum objecto proibido Mandaram abrir a braguilha das calças e perguntaram se não tinha nada nos bolsos das calças.
Depois da minha entrada no carro prisional, esta foi a segunda humilhação por que passei. Interrogava-me interiormente o que se estava a passar. Até ali ninguém me tinha dito de que era eu acusada, para além de ter lido “desobediência”. Pensava desobediência a quem e de que, não conseguia obter qualquer resposta. Depois de as guardas prisionais analisarem a minha carteira, entreguei aos meus colegas o que não era permitido entrar na cadeia: telemóveis, relógio e brincos. Elas indicaram a cela onde iria ficar: cela número 2. Continuava indignada e revoltada.
Na cela, quiseram saber o que fiz, quando lhes disse que tinha sido acusada de desobediência, mas não sabia de que assunto tratava, pois nunca tinha recebido qualquer notificação. Elas ficaram muito admiradas e uma delas, a que já estava a mais tempo na cela (9 meses), disse que nunca tinha ouvido um caso como o meu. Não me consolava e de vez em quando vinham lágrimas de revolta e impotência. Sabia que as guardas não tinham qualquer culpa na minha detenção ou prisão. Elas apenas cumpriam ordens.
Chegou a hora do jantar, claro que não comi. Tinha a garganta completamente seca, mas não me apetecia ingerir absolutamente nada, nem água.
Enquanto estive na sala, fui me entretendo com televisão e escrevendo estes apontamentos. Mas, quando chegou a hora de entrar na cela e senti os cadeados a fecharem, mais uma vez senti que os meus direitos estavam a ser violados. Eu estava numa situação de criminosa sem o ser. Por volta das 18.30, apareceram o meu irmão, a minha cunhada e a minha colega. Iam deixar roupa, chinelos, escova de dentes, capulana e lençóis. Primeiro levei uma bronca porque, quando me perguntaram se tinha familiar em Nampula, respondi-lhes que não. Sinceramente que não tinha cabeça e, no momento, só pensei em familiares na minha residência. Como vivo sozinha em Nampula, habituei-me a dizer que sou só. Tive que lhes explicar que não tinha sido por mal que lhes disse que não tinha familiares em Nampula, a minha cabeça não estava em condições para pensar nesse tipo de pormenores, aé porque foram os meus colegas que me acompanharam em todo este processo. Uma delas, mais compreensiva, permitiu que eu fosse cumprimentar o meu irmão. Mais tarde soube que afinal estiveram dois colegas meus, um deles advogado, que foram impedidos de me ver. Compreendo perfeitamente estas limitações devido à segurança das reclusas.
Quando eram por volta das 20.00h, uma guarda prisional foi-me chamar. Já estava a instalar-me com muita dificuldade no primeiro andar do beliche: tenho 51 anos e um peso que já não me permite subidas em beliches. Fui à sala e deparei-me com 3 senhores. Apesar de escuro, reparei que havia mais gente lá fora. Apercebendo-me que se tratava da minha soltura, voltei a fazer a mesma pergunta: “porque é que eu estou aqui?”. Um deles, mais tarde soube que foi o juiz que deu ordem para a minha “captura” e que naquele momento estava a escrever algo que determinou a minha soltura , respondeu que aquele não era o espaço para saber isso. Iria saber o motivo na 2ª Feira seguinte na sede. Não insisti, naquele momento apenas queria ir para casa depois de muito vexame, humilhação e atentado à minha dignidade.

UM JUIZ PREPOTENTE
Na 2ª Feira, perante o tribunal, pela primeira vez, soube de era acusada. Nos autos consta que, no dia 26 de Agosto, a secretária d’A Politécnica de Nampula recusou a receber uma notificação feita a um suposto estudante desta instituição por ordens superiores, acrescentando que a Direcção dera ordens para não receber qualquer notificação do tribunal.
Fiquei completamente admirada porque nesse período eu estava ausente de Moçambique, mas também porque eu já autorizara dois trabalhadores nossos a apresentarem-se ao tribunal, perante uma notificação. O Juíz perguntou se eu conhecia o senhor Anastácio, respondi-lhe que não. Mas também lhes expliquei que não era muito fácil localizar um nome de um estudante sem a indicação do curso, nem do ano. Informei também que as aulas teóricas na Universidade Politécnica não eram obrigatórias pelo que é extremamente saber se o estudante está ou não presente na Universidade, tornando-se difícil fazer o controlo de presença de estudantes. Mas mesmo tendo em conta este facto, como leiga em termos jurídicos, acho que o mais correcto seria enviar uma notificação para mim para eu ser ouvida. Repito, nunca recebi qualquer notificação antes do mandato de captura.
Referir que o clima do julgamento foi muito pesado porque o juíz entrou a atacar. Começou por dizer que íamos ser uma aula de direito para demonstrar se ele era ou não conhecedor de leis. Acrescentou que o certificado dele não era falso e que ele tinha cinco anos de experiência na matéria, pelo que não podia permitir que dissessem que ele não era conhecedor de leis.
Ficou marcada a data de 10 de Outubro para voltar ao tribunal. Vão ser notificados, de novo, o senhor Anastácio e a secretária administrativa, a senhora Malita Brito. Presumo que seja para cruzamento de informação e leitura da sentença.
Quando cheguei à universidade no período da tarde, convoquei uma reunião extraordinária entre os membros da direcção e a senhora Malita Brito, secretária administrativa. Quis saber o que tinha acontecido de facto no dia 26 de Agosto. Ela contou que, nesse dia, viera o oficial da justiça com uma notificação para um senhor de nome Anastácio Daniel. Como não estava ninguém da direcção, ela diz que pediu ao colega da tesouraria para confirmar se existia aquele nome no sistema. O colega, depois de consultado o sistema, disse que não existia ninguém com aquele nome. O oficial da justiça pediu e insistiu que ela escrevesse a dizer que o nome não constava na lista de docentes d’A Politécnica. Segundo a senhora Malita, ao que esta respondeu que não tinha autorização para escrever porque o documento carecia de uma assinatura de um dos elementos da direcção. Explicou-lhe que ela não estava autorizada a assinar documentos. Eis a versão da senhora Malita.
Depois desta exposição, pergunto: onde foi que eu errei? Que crime cometi para ser capturada e lavada à cadeia? quem e como é que vão limpar a minha imagem? E a imagem da instituição que dirijo como é que fica no meio deste imbróglio? Houve muitas incorrecções em todo este processo e, sobretudo, um evidente abuso de poder.

Fonte: Savana - 07.10.2011

9 comentários:

Anónimo disse...

Muitíssimo estranho...até estou as lácrimas nos olhos, nós todos estamos ser mal governados a culpa é da Frelimo e a justiça trabalha parece-me sem códigos.

Marvin

Anónimo disse...

A senhora anda bem servida, com 51 anos a viver neste pais e nao este prato, pergunte aos seus compatriotas vao te explicar. Respete a maioria foi oque nos escolhemos.

XAMUNURROWA

Heyden disse...

Historia autentica? Ta cheia de detalhe para ser verdadeira. Se for vardadeira, so imaginavel na Bananalandia.

Nelson disse...

Fiquei com a sensação que ao usar a expressão "modus operandi" o autor procura generalizar demasiado. Não tenho dúvidas que hajam problemas na justiça não só em Nampula mas custa-me acreditar que oque aqui narrado seja o modo geral de agir.

Anónimo disse...

Se autentica a História é de lastimar, mas sugerir aos comentadores, não aproveitemos a situação para defamar este ou aquele partido. Analisemos o caso como humanos, sensíveis e se possivel académicos. Os juízes tem liberdae para para decidir quando e como querem, isso idependentemente da cor partidária.

Danolle

Nelson disse...

Caro Danolle, não sei se foi como "humano, sensível, académico ou tudo junto" que comentaste, até começaste bem o comentário mas "entrate no mato" e discordo completamente quanto dizes que "Os juízes tem liberdade para decidir quando e como querem". Talves seja por isso que aconteceu oque aconteceu com a pobre dessa senhora mas não é como devia ser. Existem leis, nesse país e devia ser com base nelas que os juízes e todos outros envolvidos na administração da justiça se deviam guiar e decidir. Não é "quando e como querem"

Reflectindo disse...

quando um juiz se decide quando e como quer pode decidir a favor de um partido, meu caro "Danolle".

E não é segredo que em Mocambique tudo é uma salada russa e não podemos negar que a culpa é da Frelimo que está no poder desde a independência do país e que tudo já frelimizou. A Frelimo não deixa nada que fruncione segundo as regras num Estado de Direito Democrático. Tens algum contra-argumento, "Danolle"?

Aires Mendes disse...

Isso é tão triste e muito Lamentável...



#Aires Mendes

Unknown disse...

Isso é tão triste e muito Lamentável...