sábado, outubro 15, 2011

Samora Machel explica-se

Samora Machel

explica-se
Artur Portela entrevista Samora Moisés Machel,
Presidente da RPM, e um dos homens mais odiados pelos colonialistas.
Ele aí está, ao longo de um diálogo
franco, vivo, por vezes, desconcertante.
Falando de Portugal, dos expulsos,
da História, do Futuro.
E também da luta contra Ian Smith,
contra o imperialismo, contra o racismo,
contra a miséria, a ignorância, a doença.
Um retrato psicológico. E político.



- Em que fase é que se encontra a cons­trução do socialismo moçambicano?
- Como é que se mede a fase dum proces­so de edificação do socialismo?
-Na verdade, não há nenhuma medida científica…
   -Parece que nós só medimos quando se trata de padarias, Não é verdade? Quando queremos produzir pão, quando queremos medir a capacidade da nossa padaria. Quan­tos pães devemos produzir por dia. Só medimos quando fazemos a escavação de um po­ço, a perfuração. Quantos centímetros por dia fazemos, Aí, medimos, com muita facili­dade. Agora, medir a consciência, o crescimento da consciência dos homens, parece que ainda não há possibilidade de o fazer. Só se mede, a partir do momento em que nós temos quadros. Primeiro, mobilização, organização, consciencialização, transforma­ção das mentalidades. Socialismo não são palavras! Socialismo é construído pelos ho­mens. Portanto, quanto à sua primeira questão, eu perguntaria: A FRELÏMO já tem quadros suficientes para, realmente, cons­truir o socialismo científico?
- Poderá dizer-se que há um socialismo africano?
- Eu pergunto-lhe: há socialismo euro­peu, e asiático, e americano?
— Neste momento, há quem creia que sim. É o chamado eurosocialismo.
   — Portanto, quanto à fase em que está a construção do socialismo em Moçambique, nos diríamos que está na fase do processo da Democracia Popular.
— Prevê-se qualquer período para essa pri­meira fase?
—Não se mede! É preciso criar as bases materiais, as bases ideológicas. Esses são os alicerces para a construção do socialismo. É preciso um trabalho profundo de transfor­mação das mentalidades. Criar a nova men­talidade. Produzir o homem novo, Aí, dire­mos: vamos construir o socialismo! Primei­ro, produzir o homem novo. É essa a nossa primeira tarefa!
— E, neste momento, já há quadros sufi­cientes para isso?
— O processo avança. São as conferências provinciais, é a criação das aldeias comunais, é a criação dos bairros, é a criação dos con­selhos de produção, é a criação dos comités do partido...
— E não há dificuldade em encontrar quadros para todo esse mecanismo transfor­mador?
Eu diria: quando se faz a revolução, é preciso contar com as dificuldades a toda a hora. Uma revolução não é uma linha recta, É um processo sinuoso. E tem inimigos, em primeiro lugar. É preciso ter inimigos!

«É preciso ter inimigos!»

— A não existência de inimigos é mau si­nal?
— A revolução tem sempre inimigos!
— Os inimigos fundamentais da revolução moçambicana, quais são?
— Nós diríamos: quais são os inimigos da revolução portuguesa? Parece que há inimi­gos da revolução portuguesa e inimigos da revolução moçambicana!
— Mas serão os mesmos?
— Os nossos inimigos são comuns.
— Mas serão exactamente, os mesmos?
— São os mesmos!
— E, do seu ponto de vista, a revolução socialista p


ortuguesa em que fase se encon­tra?
— É difícil... Não posso falar.
— Não pode falar?
— Não sei, não sei... Eu acompanho o pro­cesso. Eu sei que há revolução em Portugal.
— Que há... ou que houve?
   — Que há. Há! Não é que houve. É um processo. Tem que conhecer os avanços. Tem que conhecer os recuos. Essa é a revo­lução. Tem que ter ultras, tem que ter mo­derados, tem que contar com toda essa gen­te. Tem que ter o equilíbrio, a pedra da ba­lança. Assim, dizemos que está a revolução portuguesa.

«Entre Portugal
e Moçambique
não há nenhum
contencioso!»

— E as duas revoluções, a portuguesa e a moçambicana, estão numa fase de aproxima­ção ou estarão afastadas?
— Estiveram sempre aproximadas. Nunca se afastaram. Os dois processos caminharam sempre juntos, nos mesmos carris. Sempre nos mesmos carris. Sempre para derrotar os mesmos inimigos. Portanto, não há distância nenhuma. Só há especificidades em cada um de nós, em cada uma destas revoluções. A revolução portuguesa tem as suas especifici­dades, tem os seus aspectos particulares. Nós também temos os nossos. Aí, temos; que res­peitar.
- E, no entanto, há aquilo que se pode definir como um contencioso entre os dois países...
- Não há contencioso nenhum!
-Não há?
- Que tipo de contencioso?
- Político, económico? Crê que, na ver­dade, todos os problemas já estão sanados?
- Havia um contencioso, enquanto exis­tia o colonialismo. Aí, havia um contencio­so. Político, ideológico, cultural, social. Era tudo isso que formava um contencioso. Ago­ra não. Não há contencioso. Agora, só fia um processo, de consolidação de laços de amizade. Encontrar o entendimento, encon­trar a plataforma para a solução de todos os problemas. Há dificuldades, é verdade, mas não há contencioso. E essas dificuldades são normais. Rompemos, há pouco tempo, com o colonialismo. Portanto, não constituiria uma surpresa para nós todo o tipo de obstá­culos. Acabámos de romper com um sistema odioso, com um sistema de opressão. Estou certo que em Portugal ninguém quererá esse sistema.
- Claro.
- Então, não há contencioso. Se houvesse ideia de neocolonizar, aí havia um conten­cioso. Mas, neste momento, não há.
— E a tendência cada vez mais europeia de Portugal?...
— É porque são europeus. Não podem sair da sua esfera.
— Bem, no entanto, há uma relação con­vosco, com a Angola e com a Guiné, muito intima.
— Oh! Sim. Exacto, e não é por causa da língua.
— Não é por causa da língua?
— Não é por causa da língua, não é por causa da cultura.
— Então fundamentalmente porque é que será?
— Que cultura espera que o colonialismo podia transmitir ao povo?
— O colonialismo não, mas Portugal, o povo português...
— Não! Não confunda! Nunca esteve aqui o povo português, estava aqui o colonialis­mo. Por isso, não transmitiu cultura nenhu­ma.
— Bem, mas a língua em si mesma, é uma cultura, é uma forma de cultura...
— E um veículo de transmissão. Eu falo francês e, no entanto, não tenho nenhuma cultura francesa. Eu falo inglês, mas não te­nho nenhuma cultura inglesa. Eu falo portu­guês, mas não tenho nenhuma cultura portu­guesa.
— Então, para além desse veículo que é a língua portuguesa, não há qualquer outra forma de cultura aproveitável?
— Não, não há. Portanto, eu diria: agora, é que haverá possibilidade de o povo mo­çambicano conhecer a cultura portuguesa.
- E vice-versa...
—Exacto! O povo português conhecerá também a cultura moçambicana. Aquilo que o colonialismo chamava "usos e costumes indígenas"... Como haveria cultura sem personalidade moçambicana? É possível? ... Agora estamos numa fase de criar a nossa personalidade. Portanto, é preciso valorizar a nossa cultura. O segredo da personalidade do homem é a cultura. Nós não tínhamos nenhuma personalidade. Nem portuguesa, nem moçambicana. Porque, se nós tivésse­mos assumido essa tal personalidade, teria sido uma personalidade : do opressor. Não acha? …

«Esses não
são portugueses
nem moçambicanos!»

— Portugal, durante uma determinada fa­se, praticou uma política exterior terceiro-mundista. Pretendia assumir um papel de in­terlocutor entre a Europa e os países do Ter­ceiro Mundo. Isso tinha qualquer viabilida­de?
— Eu penso que isso resultava de um cer­to estudo. Portugal encontrava, na sua con­dição económica, no seu desenvolvimento, o sinal da via que queria escolher. Nessa altu­ra, achava que a sua identidade estava no Terceiro Mundo. O que é verdade! Portugal é um país subdesenvolvido. O índice de desemprego. O nível de vida muito baixo. É verdade! Portanto, Portugal tem de arran­car! Trata-se de arrancar, para se libertar!
— Coloca Portugal no seio do Terceiro Mundo?
— Aí, não sei se diria. Não sei. Só o Go­verno português. Não posso comentar as leis e a escolha, a opção dum governo. Não, não cabe à República Popular de Moçambique. Seria atrevimento demais. Seria ingerência comentar a. via que escolhe um país, que resulta de um estudo profundo, conheci­mento, realidade.
— No entanto, os acontecimentos em Mo­çambique, alguns deles relacionados com portugueses, nomeadamente aqueles que fo­ram levados a sair, têm sido encarados em Portugal muito asperamente...
— Diga: foram expulsos! Diga lá: foram expulsos! Não foram levados a sair, foram expulsos de Moçambique. Porque não eram portugueses, nem eram moçambicanos. Qui­semos dar-lhes o sentido de patriotismo: es­colher! Eles eram oportunistas económicos. Não têm nenhum vínculo com Portugal.
— Nem com Moçambique?
— Nem com Moçambique. Identificavam--se, sim, com o colonialismo, com a explora­ção. Portanto, nós não expulsámos portu­gueses. Expulsámos, sim, Vendedores, co­merciantes, da nacionalidade, renegados, vende-pátrias. São esses que nós expulsámos. Não expulsámos nenhum português. Não dissemos: "Portugueses são expulsos de Mo­çambique". Os portugueses estão aqui.
   — Mas numa situação que alguns observadores não consideram
     extremamente clara...
— Fomos claros. Nós fomos claros. Para com eles todos. Nós explicámos-lhes o senti­do do patriotismo. Foi o que nós fizemos. E fizemos bem. Pelo menos, já têm pátria. Dis­seram que são portugueses. Eram mas era representantes, agentes do imperialismo. Agentes da subversão. Eram elementos que fomentavam, criavam obstáculos às relações de Portugal com Moçambique. Mas nunca queriam ser de Moçambique. Eram represen­tantes do imperialismo aqui neste país, eles! Não são portugueses, aqueles. Nem são mo­çambicanos!

«O povo português nunca foi colonialista»

— Do seu ponto de vista, em relação à sensibilidade popular moçambicana, Portu­gal já não está ligado ao colonialismo portu­guês?
— O povo português nunca esteve ligado ao colonialismo!
— Isso ao nível da sua visão?
— Não! O povo próprio.
- O povo distingue claramente uma coisa da outra?
- O povo soube distinguir, durante a luta armada, quanto mais agora num momento de paz. Andámos, marchámos, andámos de braço dado. Sabemos que todos fomos ex­plorados. E sabemos que temos que fazer a reconstrução, servir o trabalho de reconstru­ção das nossas economias. O povo português também tem que reconstituir ou reconstruir a sua personalidade de homens livres, não opressores. Isso é ao nível do povo. Seria bom que visitasse algumas províncias onde estão os cooperantes portugueses. Verdadei­ros portugueses, não com mentalidade pater­nalista. Aqueles que sabem que estar em Mo- çambique, participar na reconstrução da pá­tria devastada pelo colonialismo, é fortalecer Portugal. Esses são verdadeiramente portu­gueses. Mas aqueles que foram colonialistas, esses, são muito difícil para eles a libertação. Muito difícil. É preciso uma educação pro­funda. Uma educação política.
- Portanto, não há obstáculos intransponíveis nas relações entre os dois países?
- Olhe, nós estamos em contacto com muitos portugueses. Alguns querem vir passar férias porque viveram aqui. Outros que­rem vir trabalhar. Há muitos voluntários portugueses. Nós queremos! Nas escolas, nos hospitais, na construção das barragens têm trabalho os amigos portugueses!
— Mas especialmente os portugueses, mais que quaisquer outros? Por qualquer razão especial, psicológica ou moral?
- Não! Olhe, quando nós falamos de por­tugueses, nós falamos do chinês, nós falamos do russo, nós falamos do brasileiro, nós fala­mos, vamos lá, do escandinavo. Todos quantos sentem que é preciso sermos solidários. Que temos inimigos comuns e que a nossa tarefa é única; melhorar a vida do povo, as condições de vida. Desenvolvemos os nossos países, consolidarmos as, nossas conquistas. O mais rapidamente possível, apagarmos as marcas. A marca do fascismo em Portugal. A marca do colonialismo e do fascismo em Moçambique. Portanto, e aí já é uma parti­cularidade, sofremos, tivemos o mesmo so­frimento. Tanto o povo português como o povo moçambicano suportaram o mesmo peso, o colonial-fascismo. Aí há uma grande identidade do povo português com o povo moçambicano!

«Ian Smith é um maluco!»

— Neste momento, a RPM tem as suas fronteiras, e consideráveis extensões interio­res, ameaçadas. A vossa reacção, a vossa res­posta, será fundamentalmente em termos diplomáticos? Ou pensam poder responder de uma forma mais concreta?
— A resposta a essa pergunta cabe à co­munidade internacional. Como é que nós podemos responder? Pedimos às Nações Unidas, pedimos ao Conselho de Segurança. Pertencemos-lhes. Somos uma parte desta comunidade internacional. Somos membros. Se um dos nossos membros é atacado, se o braço é atacado, nós vamos ao médico. Para nos curarmos, não é verdade? Neste caso, trata-se de um maluco.
— Quem, Ian Smith?
— Sim, sim. O Ian Smith é um maluco, um tabaqueiro, não é verdade? Um cão rai­voso. Nós estamos a pedir médicos para o tratar.
— Para o internar?
— Sim.
— Mas, às vezes, a comunidade internacio­nal não é um bom médico, não tem uma medicina suficientemente eficaz. Há exem­plos históricos, em relação a outros confli­tos. Nas próprias Nações Unidas...
— A acumulação de tantos especialistas há-de produzir génios, não acha? ... Desta vez, há-de haver génios.
— E as vossas maiores esperanças estão nas Nações Unidas?
— Não! Estão na capacidade do nosso po­vo. É preciso que a comunidade internacio­nal dê meios ao nosso povo.
— Meios económicos, materiais, milita­res?
    — Materiais..., militares! Meios materiais incluem material de guerra para o nosso po- vo se defender. Trata-se de dar capacidade defensiva ao povo. Nós não vamos pedir ho­mens...
— Mas seriam renitentes a uma solução de tipo angolano em que países aliados inter­vém...?
— Não, não é isso! Não falemos de Ango­la. Falemos do Smith, que ataca a República Popular de Moçambique... A comunidade in­ternacional, se quiser mandar material, man­de! Nós vamos manejar o material. É jornalista? Venha aqui trabalhar. E técnico? E engenheiro? Venha aqui trabalhar, reparar as destruições feitas nas pontes, nas linhas férreas. E isso que nós necessitamos.
— Há algo que se possa designar como so­cialismo moçambicano?
— Não, não há.
— O socialismo é um todo mundial?
—É.
— Em África, o socialismo não assume ca­racterísticas especiais?
— Não assume. E uma questão ideológica. Trata-se dum problema fundamentalmente ideológico. Em todo o mundo. Quando assu­me este aspecto de luta ideológica, então, trata-se de luta de classes. Portanto, não há especificidade nesse aspecto. É universal, real­mente universal.

«Amigos da URSS, amigos da China...»

— No entanto, há grandes países socialis­tas, como a China e a União Soviética, que têm geo-estratégias bastante diferenciadas...
— Têm as suas diferenças e saberão como resolvê-las. É um confronto dentro da famí­lia.
— E há que resolvê-lo dentro da família?
— Dentro da família!
— E Moçambique não opta, nesse diferendo?
— Não. Somos amigos da União Soviética, somos amigos da China. E todos eles são solidários para com a revolução moçambica­na. Para com a reconstrução nacional.
— No entanto, entre os países africanos, há divisões nítidas de posicionamento...
— Ë necessário. Fortalece-nos, isso!
— E são divisões que põem, de um lado, países capitalistas, do outro, países socialis­tas?
— As contradições, no nosso seio, quando elas são resolvidas correctamente, fortale­cem-nos muito. São necessárias. As contradi­ções que existem ao nível da OUA são ne­cessárias.
— Diria que Mobutu é necessário?
— Necessário! É preciso factores negati­vos.
— Bem, nesse caso, aparentemente, com desvantagem do povo do Zaire...
— Deixe lá o Zaire.
— Os Estados Unidos, neste momento, es­tão, ao que parece, a definir uma política africana um pouco diferente.
— Esperemos a prática. Não avancemos comentários. Daqui a dois anos, daqui a três anos, então vai-me fazer essa pergunta.
— Mas não há nenhum elemento concreto que permita, neste momento, um julgamen­to?
— Não. Estamos à espera da prática. É o melhor critério, o critério da verdade.
— O mesmo em relação à totalidade da nova administração norte-americana?
— Sim, precisamente essa nova adminis­tração. Precisamente essa nova administra­ção deve mostrar-se na prática.
— A vossa posição em relação aos adversá­rios que são, por um lado, a África do Sul, por outro lado, a Rodésia, é um pouco dife­renciada...
— Na Rodésia, trata-se do colonialismo britânico. Na África do Sul, trata-se de liqui­dar o apartheid.
— Liquidado o apartheid, a África do Sul assumiria um aspecto positivo?
— E um país independente, é uma na­ção... Neste momento, há que excluir essa nação da comunidade internacional, por causa da sua política. Uma política odiosa, desumana. Liquidado isso, passará integral­mente a fazer parte da comunidade interna­cional. Trata-se de liquidar o racismo.

Demagogia, mentalidade europeia

— Apesar do seu cuidado em evitar refe­rências a posições do Governo português, há, no entanto, um cotejo a fazer: o da revo­lução moçambicana com a revolução portu­guesa.
— Nós acompanhámos a evolução da revo­lução portuguesa. É uma experiência, uma grande experiência. Cinquenta anos de fas­cismo, séculos de colonialismo. Alguns vi­vem fora de Lisboa, de Portugal, estando lá. Vivem de ilusões, grandes ilusões. Os que foram corridos daqui não vivem o Portugal de hoje. Vivem o Portugal do passado, vivem sempre no passado. Evocam o passado. O presente não. O futuro não é projectado. Portanto, isso dificulta o processo de Portu­gal. Nós sabemos que a maior dificuldade de Portugal é o que herdou. Ter sido um país colonizador e colonizado ao mesmo tempo. É uma coisa rara na História.
— Auto-colonizado, também?
— Sim, também. Portanto, para liquidar isto não é com tanta velocidade. Há que to­mar em consideração muitos factores: o fac­tor económico, o factor político ou geopolítico. E temos que tomar em consideração certas influências. Vocês estão na Europa. E num ponto sensível, muito estratégico.
— Militarmente estratégico?
— Sim. E têm que tomar isso tudo em consideração. Não podem liquidar isso dum dia para o outro. Numa só noite. É preciso avançar fatia por fatia, não é? Até ter o pão inteiro engolido. Pequena conquista, conso­lidação. A acumulação dessas pequenas con­quistas transformar-se-á numa grande con­quista, um dia. Mas é preciso paciência. E há impacientes lá em Portugal...
— Mesmo impacientes de esquerda?
- Não a esquerda, os ultras... A esquerda é sempre a esquerda! Nunca passa para a
a direita!
— A impaciência pode ser um factor contra-revolucionário...
- É que, às vezes, alguns querem ser mais da Esquerda do que a própria Esquerda. Mas nós sabemos. O interesse maior é para quem quer liquidar a Esquerda. Há demagogos, com grandes "frases" sobre a revolução. É a mentalidade europeia.
— E não há demagogos portugueses que pretendem trazer a sua demagogia para Mo­çambique?
- É o contacto com o mundo capitalista. São certos vícios e certos hábitos importa­dos. Como travar isso? É o que nós temos feito aqui. O processo revolucionário é mui­to complexo. Parece que é isto que os jo­vens, que os jovens essencialmente, dão à revolução portuguesa. Mas esses foram sem­pre homens livres. Os jovens foram sempre homens livres. Não têm mentalidade colo­nialista, não têm mentalidade paternalista, e são esses que deviam dinamizar, vitalizar a revolução portuguesa! Como vê, aqui, em ' Moçambique, há um engajamento total dos homens, das mulheres, particularmente da juventude. A juventude constitui, realmente, a força decisiva. E depois temos os nossos operários. E são esses que são centrais na nossa prioridade. Quando falo em priorida­de, falo em produzir o homem novo, a men­talidade nova, todo um novo tipo de rela­ções entre os homens. São as nossas priori­dades, as grandes prioridades!
- Á construção do homem novo, pode le­var gerações...
- Leva. É preciso. O homem novo, a mentalidade nova. Portanto, são essas as questões mais sérias: o homem novo, a cons­trução de uma sociedade nova, livre. Mas há pesos mortos, valores decadentes...

«Matar o jacaré enquanto ele é pequeno»

— Como, por exemplo, a religião?
— A religião, você sabe, é um ópio. E pre­ciso separarmos. Identificou-se de tal manei­ra com o colonialismo. Era a autoridade aqui no nosso país. Temos que libertar o nosso povo. Liberdade de escolher: ser ou não ser religioso. Temos essa liberdade. A liberdade de difundir o marxismo, e a liber­dade também de difundir a religião. É uma conquista do nosso povo, ele está livre para escolher.
— E o Estado mantém-se neutral?
— O Estado é um instrumento de partido. É executor. O partido dirige. Portanto, não pode ficar completamente neutral. A revolu­ção protege a sociedade. E, se protege a so­ciedade, protege indivíduos.
— Contra o ópio que a religião poderá ser, por exemplo? ...
— Nós temos boas relações com a Igreja, aqui. Nós fazemos o nosso trabalho aqui, que compete ao Estado. Eles também fazem o seu trabalho, que é do espírito. Nós preo-cupamo-nos com a matéria: dar comida, dar o vestuário, dar medicamentos, dar habita­ção, dar a casa, dar o calçado, mandar para a escola. Nós preocupamo-nos com essas ques­tões. Agora, vá perguntar aos religiosos: com que questões é que eles se preocupam? Pro­teger a sociedade, proteger o indivíduo é a tarefa da revolução, a grande tarefa da revo­lução. Proteger a saúde, proteger a vida. São essas as grandes questões. A Igreja, não sei. Parece que, quando protegemos o corpo, protegemos também o espírito. O espírito não vive fora do corpo. Vive? Não sei.
— Uma das coisas que aqui nos têm im­pressionado, em contraste com outros países africanos, nomeadamente Angola, é a unida­de ideológica. Não me parece que Moçambi­que esteja ameaçada daquilo que terá acon­tecido, por exemplo, em Angola. É uma rea­lidade, essa unidade?
— O que é que pensa?
— Penso que tem de haver contrastes...
— Nós já tivemos unidade aparente. Mas a partir daí, não. É uma unidade real, sólida, política, ideológica. O pensamento comum. E assim temos o pensamento dirigente, em todos os níveis.
— Mas os contrastes têm de existir...
    — Ao nível de direcção, não. Ao nível do partido, não. Ao nível do governo, não. A nossa tarefa, agora, deve ser assumida pelo povo. Uma unidade aparente, enfraquece-nos. Quando há essa aparência de unidade, e a questão é central, é uma questão ideoló­gica. São divergências ideológicas que se se­meiam no seio do movimento, no seio do governo, no seio do partido, no nosso seio. Semeiam-se, então, as tais grandes contradi­ções. Aqui, não há. Há unidade nacional. Li­quidámos o tribalismo com as mesmas armas que liquidámos o colonialismo. Utilizámos as mesmas armas. Liquidámos o regionalismo. Liquidámos o racismo. Durante a luta, evitámos o conforto, o conforto espiritual. Foi preciso desencadear a grande batalha. Não se faz a revolução com certos compro­missos. A revolução respeita esse processo. Portanto, nós temos utilizado o termo de "matar o jacaré quando ainda é pequeno". Cortar o jacaré quando ainda é pequeno, quando vive nas margens do rio. Porque, quando já for grande, está no leito do rio, e nós não temos possibilidade de ir para lá. E por isso que desencadeámos, precisamente um mês depois da proclamação da Indepen­dência, em 24 de Julho, as grandes naciona­lizações, para evitar a burguesia. Porque nós próprios cairíamos nisso. E nós não seríamos capazes de administrar o capitalismo, de sermos gestores do capitalismo.
- A burguesia é o jacaré?
- Tanto a burguesia colonial como a bur­guesia nacional são o jacaré. Mas essa bur­guesia nacional era fraca. É por isso que ata­cámos. Atacámos porque era fraca, econo­micamente.
— E esse jacaré desapareceu?
— Não, o jacaré não desaparece. O jacaré é sempre necessário para a revolução poder avançar. Se eu dissesse que desapareceu, se­ria negar a luta de classes, que é permanente. Seria negar a existência do imperialismo, do inimigo permanente. Não, não desapareceu. Antes pelo contrário, agudiza-se, com esta luta que nós estamos a travar. Estão-se agu­dizando as contradições. Portanto, vão-se produzindo novos jacarés, que nós vamos combatendo. Matar o pintainho quando ele ainda está dentro do ovo. Essa é que é a questão central. Nós não vamos esperar. Eles vão produzindo os ovos, mas nós vamos comendo os ovos, antes de se transformarem em galinha. Não sei se vocês pensam que deviam também ter feito isso em Portugal?
- Bem, os nossos jacarés, lá, são um boca­do maiores.
- Eram grandes. Já não eram jacarés, eram crocodilos. Crocodilos dos lagos.

«Quando os grandes estão comprometidos, os pequenos seguem»

     - Mas aprendemos aqui também convos­co a matar o jacaré.
- Sabe, o conforto é como o ar que nós respiramos. É tão saboroso, o conforto. O ar que nós respiramos é oxigénio. Se nós tivés­semos permitido, aqui, na República Popu­lar de Moçambique, se tivéssemos dito isto: "Não ataquemos agora, porque não temos quadros que vão consolidar a vitória, é aven­tura o que nós vamos fazer" estávamos perdidos. Se tivéssemos dito: "Não queremos nacionalizar a medicina privada, porque não temos médicos", ainda estaríamos à espera. E os ovos do jacaré iriam produzindo novos jacarés. E os grandes jacarés, que já eram médicos, estariam ávidos, gananciosos. E a ocupar a posição dos colonialistas. Já seriam gerentes, directores, das clínicas privadas. Seriam sócios das escolas, dos colégios. Se tivéssemos dito: "Se nós nacionalizarmos esta escola, onde é que vamos buscar o profes­sor para ensinar o bom português? " estaría­mos perdidos. Não romperíamos com o co­lonialismo. Não romperíamos com o "bom português"? "Quem é que ensinava esse "bom português", aí? E quais eram os ob­jectivo desse "bom português"? Não era pa­ra servir o povo! Portanto, utilizaríamos os livros que eram utilizados pelo colonialismo, porque diríamos "nós não temos capacidade de produzir". Mas hoje, vá lá ver à nossa escola. Até à oitava classe, que é o 4.º ano, produzimos os nossos livros. A partir da nos­sa cultura, da nossa experiência. Quer dizer, tudo isto é a síntese da luta de 10 anos. O que nós estamos a fazer, não apareceu do 24 de Julho para o 25 de Julho. É um processo. Nós estamos a incrementar as nossas perspectivas, definidas durante a luta da Libertação Nacional. Isto tudo o que nós fazemos não é impensado. Está programado, está planificado. É a síntese da experiência da luta de l0 anos. É o que nós estamos a fazer aí, se querem compreender porque é que faze­mos isto. E consolidamos. Criámos, então, esse pensamento comum. Por isso, não há divergências. A experiência provou. Em 24 de Julho, nacionalizámos a medicina priva­da, abolimos a advocacia privada, nacionali­zámos as escolas, recuperámos a terra, liqui­dámos a venda de cadáveres. Isto é uma con­quista grande, durante a luta de libertação nacional. Pensávamos nesses problemas so­ciais para organizar a sociedade. A sociedade justa, em que há justiça. Há liberdade. Há democracia. E todos participam na discus­são. Quer dizer, assumimos os interesses do povo. E isto que o povo quer. Se nós não tivéssemos feito isso, estaríamos contra a vontade do povo. Portanto, teríamos a opo­sição do povo. E nós queremos ter a oposi­ção do capitalismo, e o apoio do povo! Estas são as questões centrais. Estaríamos a culti­var a elite nas escolas, nos colégios particula­res. Os nossos filhos iriam para lá, e nós é que seríamos engolidos em primeiro lugar. "Quando los grandes estan comprometidos, los pequenos siguen". Há esta expressão. Se­ríamos nós, em primeiro lugar, a preferir as clínicas privadas. Seríamos nós, em primeiro lugar, a preferir os melhores colégios, os mais caros, os mais apetrechados. Onde o filho do cozinheiro não pode ir. Onde o fi­lho do pequeno funcionário não pode ir. Se­ríamos nós. Mas agora não. A escola está aberta para todos. Aprender para servir o povo. Adquirir os conhecimentos científicos em benefício da Humanidade. Isto é que se chama fazer a revolução. Criar um estado socialista.
— E os jacarés acomodam-se?
     — Não se acomodam. São liquidados.
     Despedimo-nos.
     Samora Machel diz-nos, ainda:
— Cumprimentos ao povo português, e às forças progressistas!



ALGUMAS FOTOS: (ver a partir da fonte abaixo)







Revista OPÇÃO – Nº 62 – 30de Junho de 1977

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