NOTAS DE UM VIAJANTE “CANSADO”:
Por Gilberto Correia
Uma das vantagens de viajar para fora do nosso País é permitir-nos olhar para a realidade que vivemos de fora para dentro - com algum distanciamento. A distância física e geográfica devolve-nos uma percepção mais objectiva da realidade que, muitas vezes, no nosso quotidiano tendemos a relativizar ou subestimar.
Por motivos profissionais tivemos de participar num evento para Advogados africanos na República dos Camarões. Na ligação aérea entre Nairobi- Yaoundé juntamo-nos, no mesmo voo, a vários Advogados oriundos de diversos países africanos que iam participar no mesmo evento. Depois das habituais saudações, constatei que as perguntas que aqueles colegas faziam-me eram invariavelmente as mesmas, a saber: Como está a situação em Moçambique? Porque regressou a guerra com a Renamo? Como deixaram retroceder um País que ia tão bem?
Pegando nestas perguntas, para as quais não existem respostas acabadas, decidimos elaborar o presente texto, visando abordar nele alguns aspectos inerentes à construção de um Estado de Direito democrático que julgamos terem algum relevo para o momento político que vivemos.
Quer se queira quer não, quer se goste quer não se goste, a maior ameaça que o nosso País enfrenta actualmente provém das consequências do eufemisticamente chamado de “conflito político-militar". Não obstante da parte do Governo serem perceptíveis a tentativa de promover um discurso que aligeira o impacto negativo deste conflito (a título exemplificativo lembramo-nos das recentes declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros e do Ministro da Defesa, ambas feitas no exterior) - e compreende-se a razão de ser destes posicionamentos oficiais, que visam evitar a perda de confiança na solidez da nossa Paz e concomitantemente prevenir a fuga de investimentos - o facto é que há uma enorme discrepância entre a realidade discursiva projectada pelas declarações públicas de alguns governantes e a situação gravosa que se vive no terreno.
Cá dentro não podemos ignorar os alertas sobre a periculosidade crescente e a danosidade efectiva desta situação política altamente conflituosa. Estes apelos vêm dos vários quadrantes sociais, designadamente dos religiosos, dos académicos, dos banqueiros e bancários, das associações empresariais, do Banco de Moçambique, do Corpo Diplomático, das Organizações da Sociedade Civil, entre outras. O maior denominador comum destes mencionados alertas é o clamor lancinante para que os políticos tudo façam para encontrar rapidamente o caminho para reconciliação política e, por via desta, para a almejada Paz, antes que esta escalada de violência armada nos leve para um drama político, económico e social irreversível e de proporções ainda não devidamente quantificadas.
Para além das mortes de seres humanos, incluindo de cidadãos civis, da deslocação em fuga de muitos outros dos seus locais de residência e de trabalho, retornaram as ameaças de divisão violenta do País. Ao lado, são cada vez mais evidentes os sinais de falhanço do diálogo político e a busca de uma solução violenta para o conflito.
O verso da música revolucionária que dizia que “não vamos esquecer o tempo que passou” aplica-se também aqui com muita acuidade. Nenhum moçambicano deve esquecer-se do que se passou na guerra fratricida que terminou em 1992.
A boa notícia é que há quase unanimidade opinativa de que se houver arte e engenho político para parar agora esta situação de violência armada entre moçambicanos, a nossa capacidade de regeneração seria relativamente rápida, permitindo-nos assim acalentar alguma esperança no futuro. Mas, como diz um conhecido ditado popular, quem vive apenas de esperança acaba por morrer de fome. Há que exigir que os contendores façam mais, e melhor, para resolverem de forma pacífica, duradoura e democrática a contenda que os opõe - a bem de todos os moçambicanos.
A má notícia é que a realidade no terreno aponta para a existência de fortes possibilidades de estar em preparação uma opção de resolução armada das divergências políticas, o que que nos poderá empurrar colectivamente para um abismo. E aí, como diz um antigo provérbio: abismo chama abismo (abyssus abissum invocat).
Vivemos actualmente um misto de esperança e de medo. Ora alimentados pelo discurso optimista do Governo que nos traz certa esperança, mas que que teima em não se revelar nos factos concretos; ora pelo imprevisível discurso político da Renamo que por vezes nos tranquiliza e outras vezes nos leva ao desespero.
Os órgãos de informação bombardeiam-nos com reportagens, notícias, análises políticas e debates relacionados com o conflito que nos fazem oscilar, de forma pendular, entre o optimismo desconfiado e o pessimismo desesperado.
Assim, as nuvens negras que há mais de um ano pairam sobre a vida dos moçambicanos estão cada vez mais negras.
Aqui chegados, certamente que o leitor deste texto estará curioso em saber o que pensa o autor sobre a solução para esta preocupante encruzilhada, a que estamos todos voluntária ou involuntariamente submetidos. É legítimo. Afinal, não se produz e publica um texto apenas para arrolar preocupações que já são mais ou menos conhecidas.
Todavia, volvidas quase 24 horas de viagem, depois de 2 voos de ligação e muitas horas de espera em trânsito dentro de Aeroportos, seria lisonjeiro apelidar o exercício que se segue de reflexão política. Talvez, o mais apropriado seria chamar-lhe tão somente de: notas de um viajante “cansado".
Ei-las abaixo:
Nota 1: No nosso País, constata-se um hábito fortemente enraizado de priorizar a escolha de políticos fortes em prejuízo promover a criação de instituições democráticas fortes. Se perguntarmos quem se lembra do nome do(a) Chefe do Estado ou do(a) Governo da Bélgica ou da Suécia poucos acertarão. Exactamente porque estes países desenvolveram-se através de uma aposta num modelo democrático que prioriza a força das suas instituições e não apenas a força dos cidadãos que as dirigem (há uns tempos atrás a Bélgica ficou cerca de 6 meses sem Governo, devido ao falhanço de acordos políticos para obter a maioria necessária para formar Governo, mas mesmo assim o País continuou a funcionar quase normalmente, como que em piloto automático). Contudo, se perguntarmos quem é o Presidente da República do Zimbabwe ou da Venezuela o número de respostas certas certamente que aumentará, pois aqui neste caso o que predomina são chefias fortes.
No nosso cenário politico, basta olharmos para o topo dos maiores partidos de Moçambique para verificarmos que é indiscutivelmente ocupado por chefias muito fortes. Tão fortes que por vezes dão a impressão que são mais fortes que as instituições que dirigem. Este modelo de chefias fortes ao invés de instituições fortes parece ser, paradoxalmente, uma dos nossas maiores fragilidades democráticas.
Para além do facto evidente de que quando o chefe forte erra toda a instituição tende a seguir-lhe sem questionar, incorrendo nas respectivas consequências; torna-se igualmente evidente que as instituições democráticas fortes oferecem menos perigos de cometimento de erros, visto que a sua vontade é formada de modo colectivo, com uma participação democrática dos principais interessados e normalmente estão sujeitas a meios mais eficazes de fiscalização da sua actuação.
Neste contexto, reputamos importante que comecemos mudar o nosso paradigma de estruturar a política e passarmos a conceder alguma prioridade à construção de instituições democráticas mais fortes.
Nota 2: Para existir uma Democracia não basta haver separação formal de poderes, não obstante toda a democracia ter obrigatoriamente que ter os 3 poderes do Estado separados. Porém, a Democracia é mais do que isso. É preciso ainda que estes poderes separados formalmente cumpram correctamente com as suas funções e interajam num equilíbrio com forma de um triângulo equilátero. A sensação que temos é que, entre nós, os 3 poderes (executivo, legislativo e judicial) não são equilibrados. Os poderes executivo e legislativo tem naturalmente base política (são poderes políticos) e o poder judicial deve ser apolítico. Ocorre que os 2 poderes políticos são muito mais fortes do que o poder judicial, rompendo assim o imprescindível equilíbrio. Este terceiro poder - na verdadeira acepção da palavra - é fraco comparativamente com os outros 2. Esta debilidade e impede-o de cumprir correctamente a sua função num Estado de Direito democrático. Com efeito, os conflitos de diversa natureza, incluindo aqueles que depois se transformam em conflitos políticos, tendem a ser desviados de foro próprio que são os tribunais, para passarem a ser dirimidos em palcos impróprios. A percepção que existe relativa à fragilidade e ao défice de independência do poder judicial é certamente uma ameaça à construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático. É curial pugnar por um poder judicial mais forte e independe que cumpra as suas funções democráticas sem medos e nem favorecimentos.
Nota 3: É igualmente insuficiente para a Democracia que a nossa Constituição estabeleça formalmente a tradicional separação de poderes entre o poder legislativo e o poder executivo no contexto da qual o executivo governa e o legislativo elabora as leis e fiscaliza a acção governativa. Esta construção formal tem que ter o mínimo de consequência material. O facto do Governo e a maioria parlamentar terem a mesma base política, e normalmente assim é em quase todos os quadrantes, não pode justificar a subversão das mais elementares regras funcionais de cada um dos órgãos de soberania atrás mencionados. O que constatamos na prática é que, por um lado, existe Governo que governa o País e, por outro, temos uma maioria parlamentar que vai quase sempre a reboque do Governo, em prejuízo da sua importante acção parlamentar fiscalizadora. É ilusório pensar-se em construir instituições democráticas fortes quando quem Governa tem a certeza que beneficia de uma acção fiscalizadora benevolente, porque o desempenho de quem deve fiscalizar a sua actividade não vai muito além de um apoio político subserviente.
Precisamos de um Parlamento que cumpra devidamente com as suas obrigações democráticas. Que legisle bem e fiscalize rigorosamente a actividade governativa.
Só assim pode-se falar de uma verdadeira separação de poderes. Para tanto, a mesma cor política não deve constituir um impedimento material para que os parlamentares da bancada maioritária abdiquem da sua acção fiscalizadora. Os debates parlamentares com o Governo transmitidos na Televisão são um exemplo arrepiante desta realidade que desvirtua a essência da Democracia. Os valores da democracia, do equilíbrio de poderes e da construção de instituições democráticas fortes e credíveis demandam urgentemente uma actuação diferente neste domínio.
Nota 4: Embora toda a democracia implique o multipartidarismo, a mera existência de vários partidos políticos não é condição única para que haja uma verdadeira Democracia. A Democracia exige que sejam respeitados os direitos dos eleitores, da oposição. Num sistema democrático as eleições não devem ser vistas como fins em si mesmo. Como uma competição predadora em que quem ganha tem tudo e quem perde não fica com nada. As eleições são oportunidades democráticas para os cidadãos intervirem politicamente e escolherem de forma livre, voluntária e esclarecida não só quem querem no Poder, mas também quem desejam que faça oposição ao Governo, numa saudável lógica de Poder e contrapoder. Se esta perspectiva for correcta, a oposição política deve ser tratada como um parceiro político e não como um inimigo a erradicar, no respeito escrupuloso da vontade soberana daqueles que votaram nesse sentido. Ter uma oposição fraca ou enfraquecida é pugnar por uma democracia fraca com todas as consequências prejudiciais que isso implica. Julgamos que se torna um imperativo para a Paz e Democracia pugnarmos por uma oposição forte, cumpridora, mas igualmente responsável.
Nota 5: É ponto assente nos Manuais de Ciência Política e de direito Constitucional que democracia não deve existir nenhum partido armado. A luta democrática não se faz nas matas com armas de fogo - sejam quais forem as razões invocadas para tal. Quem é pela democracia não pode ser, simultaneamente, pela violência armada.
Esta é uma contradição insanável. Por muita argumentação emocional que se esgrima em torno da necessidade da existência de uma oposição armada em Moçambique, esta situação levar-nos-á sempre para longe dos trilhos do Estado de Direito democrático e remeter-nos-á para um retrocesso civilizacional que já se verifica. Por isso, julgamos que enquanto existir oposição armada em Moçambique, jamais poderemos vivenciar uma verdadeira Democracia. E não se julgue que o que estamos a dizer que basta deixar de existir oposição armada para entrarmos no domínio do Estado de Direito democrático. Nada disso. Mas, quem alega que quer contribuir para a construção do almejado sistema democrático terá de depor as armas e transformar a sua capacidade militar numa ainda maior capacidade política.
Deve migrar do palco das operações militares para a ribalta do combate político. A este propósito já dizia Jean-Paul Sartre que " que a violência, seja qual for a maneira como se manifesta, é sempre uma derrota". Aplaudimos as Organizações da Sociedade Civil que colectivamente apelaram a Renamo para que abandone a sua perspectiva armada de Democracia. Está igualmente de parabéns o Presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, Dr. Custódio Duma, pela iniciativa de reunir-se com quadros seniores da Renamo para alertar para as graves violações dos Direitos Humanos que que derivam dos ataques às colunas de viaturas em Muxungué.
Nota 6: Como atrás frisamos o sistema democrático precisa um equilíbrio entre poderes e contrapoderes (check and balaces). Nesta linha, é imperioso que se desenvolva uma Sociedade Civil forte que se constitua como um efectivo contrapoder, dando voz aqueles cidadãos que não tem voz. Contudo a chamada Sociedade Civil deve desempenhar o seu papel evitando cair na armadilha de se transformar em anti-poder – ser contrapoder não é ser anti-poder.. Os sinais que temos são os de uma Sociedade Civil que, embora em crescimento, é ainda bastante débil na defesa do Estado de Direito democrático e da cidadania. Algumas vezes, nota-se dentro do seu seio alguns sinais de activismo político e de divisões resultantes de opções políticas diversificadas. Qualquer Estado de Direito democrático digno desse nome tem uma Sociedade civil forte e interventiva Também neste caso, julgamos que precisamos de uma Sociedade Civil que cumpra o seu importante papel, mas que consiga esquivar-se habilidosamente das interferências, manipulações, estratagemas, infiltrações ou seduções políticas; a bem da construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático.
Se quisermos sintetizar o que atrás anotamos, diremos que a situação de violência a que chegamos é corolário dos fracos fundamentos democráticos que construímos. Infelizmente, temos ainda instituições democráticas fracas, que não só não foram capazes de resolver pacificamente os conflitos e tensões que derivam da actividade normal de um Estado; como ainda, devido à sua fraqueza e funcionamento irregular, levaram ao agravamento dos mesmos conflitos.
Só uma democracia forte, resultante da actividade de instituições democráticas fortes reguladas pelo Direito, será capaz de nos tirar de forma definitiva da ameaça de retorno à guerra e de nos impulsionar para a Paz e para a prosperidade.
Estas notas soltas terminam por aqui, pois tripulação da Kenya Airways já anuncia os procedimentos para aterragem no Aeroporto Nsimalen em Yaoundé.
Se porventura com estas notas "aéreas" conseguirmos provocar algum debate em torno deste imbróglio que a todos interessa, e em relação ao qual ninguém deve ficar indiferente, ficaremos satisfeitos. Se não conseguirmos alcançar tão difícil objectivo, ainda assim ficará a satisfação de, dentro da nossa pequenez, termos tentado.
Todavia, se há uma única certeza que temos neste processo é que nenhuma Democracia bem sucedida deve ter espaço para "conflitos político-militares" para resolver os seus problemas. Por isso, e para isso, precisamos de mais e de melhor Democracia.
Gilberto Correia
Fonte: Estado de Direito Democrático – 28.06.2014
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