O slogan “a luta
continua”, embora seja, hoje, utilizado por pessoas de várias tendências
políticas, e em várias circunstâncias da vida é, originariamente, património
dos regimes filo-comunistas. No caso de Moçambique, ele é associado ao
movimento independentista da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e as suas campanhas
de politização das massas.
Na nova
subsistência desta organização política, quando, isto é, nos princípios da
década Noventa, como única forma para inserir-se na nova ordem política mundial
resultante da queda do muro de Berlim em Novembro de 1989, foi constrangido a
abandonar o sistema totalitário do partido único para adoptar o sistema
multipartidário, o slogan “a luta
continua” passou a descrever a nova situação na qual os membros e
simpatizantes do partido eram incitados a agir e a comportar-se politicamente
como se o depois da introdução do multipartidarismo fosse igual ao antes da introdução
do multipartidarismo, e o depois da inauguração do processo da democratização
fosse igual ao antes da inauguração de tal processo.
Neste caso, o
gesto do presidente Armando Emília Guebuza de devolver a “Lei da Revisão da lei
do Estatuto, Segurança e Previdência do Deputado” e a Lei da Revisão da Lei
21/92, de 31 de Dezembro, que estabelece os Direitos e Deveres do Presidente da
República em exercício e depois a Cessação de Funções, mais do que ser motivado
– como alegou o presidente da República - pelo “impacto socioeconómico negativo
que [as duas Leis] poderão causar e o difícil cumprimento, em termos
financeiros e orçamentais”, o mais provável é que a devolução tenha sido
motivada por razões estratégicas.
Para consentir-se
que a verdadeira razão por detrás da devolução das duas “Leis das mordomias”
tenha sido o impacto socioeconómico negativo que elas poderiam causar deve-se –
contrariamente a todos os ditames da razão – admitir-se que tanto Guebuza [na
sua qualidade de presidente do partido maioritário na Assembleia da República
(AR)], como todos os deputados da AR, não conheciam, até agora, a situação real
socioeconómica do país. Viviam, até aqui, julgando equivocamente que, como
eles, todo o resto dos moçambicanos vive de luxo e no luxo.
Admitir que a AR
tenha votado as duas Leis em questão por ignorância do “impacto socioeconómico
negativo” que poderiam causar é absurdo! É mais racional concluir que a única razão
que motivou a devolução das duas Leis em questão tenha sido a existência de evidentes
inconveniências: as duas Leis que tinham como finalidade (não confessada) a
legalização da já existente praxis da
lapidação do erário público e a reparação das fissuras causadas pela questão da
sucessão do presidente Guebuza, foram vetadas porque foram votadas e
apresentadas para a sua promulgação num período conturbado e, portanto,
inoportuno, representado pelo vertiginoso declínio da popularidade do partido
Frelimo e da figura de Armando Guebuza; ascensão do Movimento Democrático de Moçambique
(MDM); e o regresso à guerra civil cujo parte significativa de moçambicanos
imputa a responsabilidade ao governo da Frelimo.
Mas, o que deve
ficar claro a todos os moçambicanos é que o recuo do presidente Guebuza não é
abandono ao seu explícito programa de utilizar o poder político para a acumulação
de riqueza para si, para os membros da própria família e para os membros do
próprio partido. Em outras palavras, a luta pela hegemonia e pela instauração
de um absolutismo de facto, continua!
O recuo do presidente Guebuza é estratégico. E esta estratégia é típica dos regimes
totalitários, autocráticos e clientelares. Quando são confrontados com as
críticas ou protestas provenientes do público ou dos grupos (ou partidos
políticos) da oposição, procuram esmorecer as críticas ou as protestas introduzindo
algumas reformas insignificantes, ou fazendo algumas concessões temporárias.
Insignificantes porque tais reformas não tocam o núcleo da questão objecto da
contraposição e; temporárias porque no momento subsequente à crise, ou depois
de ter eliminado os críticos e os organizadores da protesta, segue a revogação
das concessões feitas.
Julgando a partir
do comportamento do governo do partido Frelimo nos últimos nove anos,
caraterizado por ações concretas e sistemáticas que visam efetivar um refluxo
do processo da democratização das instituições políticas moçambicanas e a
instauração de um absolutismo de facto;
e julgando a partir do desenrolar do processo da eleição/nomeação do candidato
do partido no poder para as Eleições Gerais do próximo dia 15 de Outubro, é
justificado suspeitar que Guebuza e a Frelimo não renunciaram as duas “Leis das
mordomias”. Guebuza devolveu-as “para não espantar a presa” e continuará a
“caçar” o melhor momento para a sua promulgação e publicação. A sua caça do
melhor momento para dar o “golpe de graça” é facilitado pela existência de disposições
jurídicas compatíveis à manobra esboçada. De facto, segundo o Art. 163 § 3 da
Constituição da República, se uma lei “reexaminada for aprovada por maioria de
2/3, o presidente da República deve (é vinculado a) promulgá-la e mandá-la
publicar”. E a Frelimo tem mais de 2/3 dos seus membros na AR. Esta disposição
foi copiada (literalmente) das constituições das democracias consolidadas e ela
supõe uma situação na qual existe uma independência do poder Legislativo em
relação ao poder Executivo, e um equilíbrio e contrapeso de forças entre os dois
poderes. A ratio legis desta disposição é aquela de fornecer ao Parlamento um poder
de – em caso de necessidade - constranger o presidente da República a promulgar
uma determinada lei do qual, eventualmente, poderia querer subtrair-se. No
nosso caso de Moçambique, onde o poder Legislativo é refém do Executivo e constituído
maioritariamente pelos delfins do presidente Guebuza, a disposição do § 3 do
Art. 163 da Constituição é prestável a manipulação por parte de todos os que
têm interesse pela promulgação das duas “Leis das mordomias”.
Todavia, condicionado
pela aproximação da data da realização das Eleições Gerais e, temendo o voto de
punição, o mais provável é que a Frelimo não utilize o instrumento de reexame e
reenvio para a promulgação das duas Leis, mas poderá utilizar um outro
instrumento. Em caso de vitória nas Eleições de 15 de Outubro, o mais provável
é que o futuro governo de Filipe Nhusi, em menos de seis meses, faça reexaminar
e votar, na íntegra, as duas disposições de
Leis e mandar ao novo presidente da República cuja legitimidade do seu
partido terá sido, aparentemente, potenciada pelo resultado das urnas.
Alguns
moçambicanos como, por exemplo, a Diretora Executiva da Fórum Nacional de
Rádios Comunitárias (FORCOM), Benilde Nhalivilo, saudaram o gesto do presidente
da República alegadamente porque soube “escutar e levar em consideração a voz
dos cidadãos moçambicanos que se opuseram a estas leis”. Portanto, segundo esta
visão, o vencedor na questão das duas “Leis de mordomias” seria a sociedade civil
moçambicana. Pode ser, mas é uma vitória efémera! O que deve mudar no jogo
político moçambicano não é o comportamento deste ou daquele outro dirigente
político, é o modo em si de fazer política.
Ora bem, nas
democracias contemporâneas, onde os principais e direitos elaboradores de
políticas públicas são os partidos políticos e; onde os privilegiados
interlocutores do partido no governo são os partidos de oposição e, portanto, a
dialética entre os governantes e os governados passa através da dialética entre
o governo e os partidos da oposição, uma efetiva mudança do modo de fazer
política passará, necessariamente, através da ação dos partidos de oposição.
Eles (os partidos de oposição) são equiparáveis a um laboratório que recolhe a
opinião pública manifestada em forma de crítica e protesta popular para,
depois, reelaborá-la em forma de um programa político alternativo ao programa
do governo do dia. O governo do dia, por sua vez, reage introduzindo reformas
que visam anular os programas alternativos da oposição e a contentar os
eleitores a quem, nas eleições sucessivas, irá pedir o renovamento do voto de
confiança. Será, por conseguinte, o eleitorado a avaliar se o partido no governo,
efetivamente, respondeu positivamente às suas exigências, ou se o programa
político alternativo apresentado pela oposição é mais apetitoso, convincente e idóneo
para enfrentar com sucesso os cruciais problemas do país.
É precisamente
aqui onde, na minha modesta opinião, a nossa “aventura” política falha. A
oposição não tem sabido reagir positivamente a este desafio. Já que pela
natureza das coisas, a tendência de quem detêm o poder é conserva-lo e
aumentá-lo, a nobre missão de consolidar o processo da democratização das
instituições políticas é, necessariamente, confiada à oposição, graças ao
privilégio que tem de interagir diretamente e ao alto nível como o governo do
dia. Mas, infelizmente, a oposição moçambicana é refém dos esquemas de fazer
política criados e utilizados pela Frelimo; não consegue criar um perfil
próprio nem escutar as exigências do atual contexto político moçambicano. Como
a Frelimo, os partidos de oposição dão ouvidos unicamente aos interesses dos
seus dirigentes e dos membros mais influentes. A sua essência de oposição é
constituída por simples facto de ser um partido a mais, e não por possui uma
proposta diferente de modo de fazer política.
A oposição tem
dado a impressão que a sua principal preocupação não é aquela de propor um
programa político alternativo àquele do partido no governo, mas é a simples
substituição da Frelimo, implicitamente, para depois continuar a utilizar os
mesmos esquemas de governação utilizados pela Frelimo. De facto, quase todos os
dirigentes dos partidos da oposição de Moçambique sabem dizer e repetir
insistentemente que para livrar o País dos homens e mulheres que durante 39
anos utilizaram o poder político a eles confiado para tutelar os próprios
interesses, em detrimento do bem do País e do resto dos moçambicanos, é
necessário uma mudança da orientação do voto, mas nunca souberam apresentar um
programa alternativo de governação que – em caso de sua vitória – iriam
implementar para sanar os vícios criados pela longa administração do partido
Frelimo, e para evitar que no futuro volte a repetir-se a mesma situação.
A oposição tem-se
comportado como se acreditasse que depois dos 39 anos marcados por uma
sistemática violação dos direitos dos cidadãos, instauração de facto de um regime
autocrático/clientelar, os eleitores moçambicanos se contentam com uma simples
substituição da Frelimo por um outro partido. Na verdade, o que os moçambicanos
exigem e continuarão a exigir sempre mais da oposição é um empenho muito mais
elevado do que uma simples substituição.
É verdade que a
imagem do partido Frelimo degradou-se muito, sobretudo, nos últimos dez anos; e
é verdade, também, que a maioria dos moçambicanos gostaria de afastar a Frelimo
do governo do País, mas isso não significa que os moçambicanos se contentem com
uma simples substituição por um outro partido. O anseio do povo moçambicano não
é mudar do partido. A mudança do partido é instrumental para a mudança do
sistema político e por isso a missão que os eleitores gostariam de confiar à oposição
não é aquele de substituir a Frelimo. Isto é demasiado pouco para os eleitores.
Pouco porque não iria melhorar em nada a sua condição e não iria resolver os
cruciais problemas do País. O que os eleitores moçambicanos querem ver
substituído é o sistema de governação autocrático/clientelar de facto, por um Estado de direito e democratizado.
As populações que
nas províncias de Tete, Niassa, Gaza, Cabo Delgado, Nampula, Maputo, etc, foram
obrigadas a abandonar as suas regiões de origem e as suas terras que desde
sempre constituíram a única base da sua subsistência, para dar lugar aos
megaprojetos que beneficiam unicamente
as empresas multinacionais extractivas, a nomenklatura
do partido no poder e os membros das suas famílias, esperam ansiosamente
por uma oposição que tenha programa político cujo leitmotiv é dar uma solução satisfatória à questão de habitação e
da propriedade da terra das populações rurais. De facto, o que permitiu a
usurpação das terras às populações rurais, o seu reassentamento em lugares
desérticos (sem as mínimas condições de sobrevivência) e a concessão das suas terras
às empreses multinacionais, é a existência de uma Lei de Terra aberta a muitas
interpretações abusivas da parte de quem detêm o poder, e a praxis de negociados contractuais
secretos que beneficiam unicamente a nomenklatura
do partido no poder e os membros das suas famílias, graças à injustificada
identificação, de facto, do Estado
com o partido no poder.
Poderia, portanto,
pedir com sucesso, o voto de confiança
dos eleitores das regiões vitimas do fenómeno da defraudação de terras, o
partido de oposição que fosse capaz de apresentar um programa político que
inclui uma reforma da Lei da Terra que visasse tutelar os direitos inalienáveis
das populações locais através de uma renegociação dos acordos e dos contratos
perversos estipulados com as multinacionais; um programa político que
estabelecesse novas indemnizações que fossem proporcionais aos prejuízos
causados e aos benefícios previstos; um programa político que visasse renegociar
os contractos em função da tutela, não dos interesses da nomenklatura política, mas da inteira nação moçambicana.
A administração
pública fundada na corrupção que, embora odiada por todos parece,
paradoxalmente, praticada por todos, persiste e aumenta sempre mais, não porque
o governo não tenha meios e modos para combate-la, mas porque os principais
beneficiários deste perverso fenómeno é o próprio governo, os membros mais
influentes do partido no poder, os altos funcionários da administração pública
e os membros das suas famílias. Neste sistema, a redistribuição da riqueza não
é que não exista, mas, em vez de beneficiar todas os estratos sociais e todas
as regiões do País, é canalizada unicamente para beneficiar grupos bem
definidos. As populações, as regiões e os grupos sociais que não fazem parte do
circuito do partido no poder, ou das pessoas próximas aos membros do partido,
não só ficam excluídos dos benefícios da corrupção como também são eles que
pagam os seus custos. Os estratos sociais que suportam os custos da corrupção servem
de escada para a mobilidade social dos beneficiários da corrupção. Por
conseguinte, enquanto o sistema da corrupção permite aos altos dirigentes de acumular
a riqueza através de ilimitadas isenções aduaneiras (e venda das isenções);
autoatribuição de vencimentos, privilégios e regalias faraónicas; canalização
de oportunidades de negócio para as próprias empresas ou empresas controladas
pelos membros das próprias famílias; os funcionários do baixo ranking, tais como professores,
profissionais de saúde e os polícias – sob o olho grosso dos dirigentes – sugam
o sangue do povo comum.
Diante deste
estado de coisas, os eleitores moçambicanos dariam, em massa e sem reservas, o próprio
voto de confiança, a um partido de oposição que estivesse disposto a apresentar
um programa político de governação que visasse restituir ao Estado o que a ele
foi defraudado através dos mecanismos autocráticos/clientelares e,
simultaneamente, criasse um sistema de controlo institucional capaz de garantir
que a riqueza nacional seja redistribuída entre todos os moçambicanos através
do financiamento dos sectores públicos como a Educação, a Saúde, as
infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, o financiamento do sector agrícola,
etc.
Os operários, condenados
a trabalhar sob condições desumanas nas empresas multinacionais espalhadas por todo
o País, são vítimas da insensibilidade, ganância e exploração pela mão dos próprios
governantes. Os acordos e contractos negociados e rubricados secretamente entre
os dirigentes do partido no poder e as multinacionais, estipularam vencimentos
miseráveis e as condições de trabalho precárias porque parte do dinheiro que
devia melhorar as condições de trabalho e pagar salários dignos aos operários
serve para cobrir o valor necessário na participação do parceiro moçambicano
que, por sinal, é um dirigente ou grupo de dirigentes do partido no governo
que, como diz Mia Couto, para ser empresários, não precisam de empreender nada.
Portanto, os
operários moçambicanos clamam, impacientemente, por uma oposição com um
programa político capaz de libertar-lhes da exploração da parte dos próprios
dirigentes políticos e empresas multinacionais; um programa político que visa privilegiar
os interesses e a segurança dos trabalhadores em todas as contratações com as empresas multinacionais.
Uma parte muito
significativa dos recursos nacionais e do financiamento que o País recebe dos
seus parceiros, quer em forma de ajuda como em forma de empréstimo, é
sistematicamente gasto em regalias desnecessárias e extravagantes dos
dirigentes políticos e altos funcionários públicos. Os moçambicanos precisam duma
oposição que mostre que não é movida pela ambição de conquistar as mesmas
regalias, mas pelo melhoramento das
condições daqueles compatriotas que vivem abaixo do nível mínimo aceitável de
pobreza; uma oposição que tenha um programa político cujo objectivo é
desenvolver o País e não enriquecer os políticos.
A incapacidade ou
a falta de vontade – da parte da oposição - de apresentar, com clareza, os seus
programas políticos é concebido e interpretado por muitos observadores como uma
omissão intencional, ou seja, uma estratégia diabólica que concentra as
atenções na conquista do poder político para, depois, prosseguir pelos mesmos
caminhos enveredados pela Frelimo, sem nenhum perigo de crítica ou protesta
popular porque não terá existido nenhuma promessa concreta feita ao eleitorado.
Se este fosse o plano da oposição, duvido que os eleitores deem o próprio voto.
O mais provável é que eles (os eleitores) optem por dar o próprio voto de confiança
a um mal já conhecido e, nesse caso, a Lei da Revisão da lei do Estatuto,
Segurança e Previdência do Deputado e a Lei da Revisão da Lei 21/92, de 31 de
Dezembro, que estabelece os Direitos e Deveres do Presidente da República em
exercício e depois a Cessação de Funções, iriam ver o advento do seu processo
de reexame e a subsequente promulgação e publicação.
Alfredo Manhiça
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