Por Alfredo
Manhiça
O consenso alcançado - na Segunda-feira, dia 28 de Julho,
na 66ª ronda negocial entre o governo da Frelimo e a Renamo, no Centro de
Conferências “Joaquim Chissano” - sobre o documento base alusivo ao fim das
hostilidade no país, dissipa as nuvens que, por longo período, pairaram na
opinião pública dos moçambicanos sobre a efetiva realização das eleições gerais
marcadas para 15 de Outubro. Tendo aumentada a certeza da sua realização, o que
é que se pode esperar das eleições de 15 de outubro?
À semelhança das relações de produção de uma determinada
economia, as quais estão destinadas a permanecer inalteradas enquanto forem
constantes as forças produtivas, um determinado sistema político, de juri ou de facto, reproduzir-se-á no espaço e no tempo, enquanto permanecer
inalterado o equilíbrio de forças dos seus atores.
Não obstante a literatura política atribua às primeiras
eleições multipartidárias (as de 1994) o índole de “eleições de transição”, em muitos
aspectos não o foram e, não o podiam ser. Não qualificaram, de facto, para ser
chamadas, rigorosamente, “eleições de transição, em primeira instância, porque as
dinâmicas em si que desembocaram nos processos de democratização do sistema
político moçambicano foram pilotadas substancialmente pelo partido no poder em
conivência com as maiores potências internacionais e, o envolvimento das forças
políticas da oposição e do resto dos moçambicanos foi subordinado aos
interesses e conveniências do partido no poder, a Frelimo e, portanto, um
envolvimento dos cidadãos de tipo plebiscitário. A utilidade política das transformações operadas
na primeira metade de década Noventa foi, principalmente, aquele de acomodar o
partido Frelimo na nova ordem mundial a seguir à sua transmutação de partido
filo-comunista para um partido de filiação “liberal-democrático”; inscrever o
Estado moçambicano no elenco dos países de sistema multipartidário; e acomodar
a Renamo no sistema jurídico moçambicano, transformando-a de um movimento apelidado
desestabilizador (bandidos armados) para um partido político.
Os outros 3 pleitos eleitorais realizados sucessivamente
às eleições de 1994 foram utilizados pelo partido Frelimo para legitimar, a
nível nacional e internacional, o seu controlo absoluto, de facto, do poder político
e económico e para consolidar o regime hegemónico, caraterizado pela existência
formal de partidos de oposição que, no entanto, não exercem nenhuma influência
nem na tomada de decisões políticas que afectam o país em quanto tal, nem na
aprovação das políticas públicas.
Passados vinte anos, o
equilíbrio de forças dos atores políticos moçambicanos modificou-se
muito. Embora a Frelimo continue e tenha intensificado o seu controlo
absolutista do poder político-institucional e económico, já existem, pelo
menos, dois partidos de oposição – a própria Renamo e o MDM – que, além do
simples influenciar a tomada de decisões políticas e as políticas públicas,
manifestam claras ambições de substituir a Frelimo no governo do país. Além da
ação destes dois partidos da oposição, os eleitores que nos pleitos precedentes
prestavam-se maleavelmente para todo o tipo de demagogias e manipulações
orquestradas pelo partido Frelimo e pela midia
controlada pelo partido no poder, nos últimos anos, os mesmos eleitores, têm
mostrado o desejo e a determinação de participar no processo eleitoral de 15 de
Outubro, não como “ovelhas levadas ao matadouro” que deixam-se conduzir
passivamente ao encontro da própria morte, mas como pessoas com opinião
política própria e responsáveis pelo próprio destino político.
O próprio partido no poder – a Frente de Libertação de
Moçambique – mais do que ninguém, manifesta ter-se apercebido (desde a primeira
hora) da inadiabilidade e irresistibilidade duma metamorfose
político/institucional a ser inaugurada pelas eleições de 2014. De facto, sintomas
como o modo em que o “partidão” realizou o seu X Congresso, em Setembro de
2012; o tipo de tratamento que reservou, nos últimos anos, no seu
relacionamento com a oposição; a opção pela solução militar na questão do
diferendo com a Renamo; a emergência de um conflito interno, sem precedentes,
na questão da sucessão de Guebuza; o modo como Filipe Jacinto Nyusi foi nomeado
candidato do partido, etc. - manifestam um inequívoco nervosismo de um
organismo que, vinculado pelos factores externos incontornáveis, sente-se
constrangido a transformar-se.
Por sua vez, o partido Resistência Nacional Moçambicana,
que muitas vezes foi acusado de não desempenhar adequadamente o seu papel de
principal partido de oposição, desta vez, mostrou-se em altura de saber intervir
no momento exato e de forma imponente num processo político que ameaçava coloca-lo
numa posição de interlocutor do segundo grau. Foram dois os últimos desenvolvimentos
políticos que ameaçavam condenar a Renamo a um movimento-partido da história.
Em primeiro lugar, além do controlo absoluto das instituições públicas e dos
recursos económicos, a consolidação da hegemonia do partido Frelimo passava
também através do esvaziamento dos conteúdos do Acordo Geral de Paz (AGP) que,
no dia 4 de Outubro de 1992, pôs fim à primeira guerra civil entre o governo da
Frelimo e a Renamo. O esvaziamento dos conteúdos do AGP, além de aplanar a
estrada para a instauração do monopólio político, era também destinado a pôr
fim ao prestígio de que a Renamo goza (graças ao facto de ser um dos
signatários do AGP) de ser o interlocutor mais privilegiado do partido no
governo. Apelando à revisitação dos protocolos do AGP que não foram
integralmente implementados, para justificar o seu regresso às matas de
Gorongosa, o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, quis restituir ao AGP o seu
originário valor político/institucional revitalizando, desse modo, a própria
notoriedade e o prestígio da Renamo no xadrez político do país. A segunda
ameaça da Renamo vem do crescimento progressivo da importância política do
partido de Daviz Simango, o Movimento Democrático de Moçambique, confirmado
pelos resultados obtidos por este partido nas eleições municipais de Novembro
de 2013.
A feliz estratégica intuição de Dhlakama consistiu em
saber dar voz ao clamor e gemido de milhões de moçambicanos que se sentem cada
vez mais sufocados pelas políticas autocráticas e absolutistas do presidente
Armando Guebuza e seu partido Frelimo. É nesta linha que deve ser interpretado
o gesto extremo de Dhlakama de abandonar a própria residência na cidade de
Nampula, para instalar-se na antiga base militar de Sadjundjira, em Outubro de
2012, e o modo como muitos moçambicanos reagiram àquele gesto, atribuindo a
Guebuza e o seu governo as responsabilidades quer daquele gesto como do
subsequente reinício da guerra civil.
A obsessiva preocupação do partido Frelimo em
partidarizar de modo absoluto as instituições públicas e intensificar a
concentração do controlo político e dos recursos económicos; o regresso ao estado de guerra civil; a
ascensão, sem precedentes, do partido de Daviz Simango; a proliferação das
Organizações da Sociedade Civil e da Imprensa independente – sinais evidentes
da impopularidade de Guebuza e da Frelimo – ajudaram a criar uma convergência
de consciência política desejosa de mudança entre os partidos de oposição e o eleitorado
nacional. O ativismo político em curso - quer da parte do partido no poder,
quer da parte da oposição, como também da parte da Sociedade Civil - mostra que
o equilíbrio de forças dos atores políticos moçambicanos mudou e, por isso deve
também mudar o tipo de governação. De facto, a realização das eleições nunca
foi tão incerta como desta vez; tão desejada pelos partidos da oposição e pelos
eleitores, como desta vez e; tão indesejada pelo partido no poder, como desta
vez! Trata-se de eleições de transição.
Embora se diga que uma metamorfose política deriva,
geralmente, do desenvolvimento da consciência política de uma dada sociedade,
essa pode também derivar do conflito de gerações. No caso moçambicano, além da
antiga luta intestina pela afirmação de uma determinada ala, em detrimento da
outra, no seio do partido no poder, as cotoveladas que marcaram o longo
percurso da indicação do sucessor de Guebuza manifestam também um evidente
conflito de gerações. O cuidadosamente selecionado sucessor de Guebuza, Filipe
Jacinto Nyusi, além da incumbência de tutelar e proteger interesses bem
definidos, devia também ser uma figura capaz de atuar uma transição menos
dolorosa no controlo do poder político/institucional, das mãos dos “libertadores
da pátria” para as mãos dos seus filhos. De facto, os principais objectivos do
movimento dos filhos dos Antigos Combatentes (AC) que, ordinariamente reúnem-se
mensalmente, nos escritórios da Associação dos Combatentes da Luta de
Libertação Nacional (ACLLN), presidido pela dupla Samora Júnior e Valentina
Guebuza, é “dar continuidade ao projeto dos combatentes, apoiar seus pais,
procurar assumir os lugares conquistados pelos seus pais para não deixar morrer
seus ideais.”
Todavia, não obstante Filipe Nyusi possa ter todas as boas
intenções de honrar a confiança depositada nele pela velha guarda, a missão é
dura! Não nos esqueçamos que os
movimentos de resistência que nos fins do século XVIII e princípios do século
XIX combateram vitoriosamente os poderes imperiais/coloniais de Espanha e
Portugal, e conduziram a América Latina e o Brasil à independência e à fundação
de Estados soberanos, foram fundados e dirigidos pelos criollos (os filhos de espanhóis e portugueses nascidos na América
Latina e no Brasil) que não concordavam com o regime colonial instaurado e
administrado pelos próprios pais. Portanto, chegado à Ponta Vermelha, Nyusi poderá
querer materializar uma agenda autónima e eventualmente contrária aos
interesses daqueles que promoveram a sua nomeação. Nesse caso, teria que contar
com as novas gerações. De facto, desde que Filipe Nyusi foi nomeado candidato
do seu partido para as eleições de 15 de Outubro, se assiste uma multiplicação
de encontros e convívios entre os filhos dos Antigos Combatentes (AC) na
capital moçambicana. O que estará por de trás desta intensificação de laços
entre os filhos dos AC? O que é que os herdeiros da fortuna e das oportunidades
económicas adquiridos graças ao controlo do poder político sonham e pensam do
futuro de Moçambique? Poderão ser os futuros “criollos” que saberão pôr em prática o que os discursos vazios dos
seus progenitores sempre proclamaram?
Não obstante o que até aqui foi dito, a minha preferência
pelo termo “transição”, nesta reflexão, significa que as eleições de 15 de
outubro não são, necessariamente, uma porta que nos faz entrar na “terra
prometida”, embora nos façam sair do “Egito”. Tudo ainda é possível, inclusivo
o arrependimento de faraó e o subsequente envio dos seus soldados para levar-nos
de volta ao “Egito”, basta observar a composição das listas apresentadas pela
Frelimo para as candidaturas a deputados da Assembleia da República (AR),
predominadas ainda pelas velha guarda.
Partindo do pressuposto que na próxima legislatura nenhum
partido tem possibilidade real de alcançar uma maioria qualificada na AR, dever-se-ia
esperar num Parlamento moçambicano mais autónomo e mais independente em relação
ao poder executivo; uma AR capaz de superar as atuais acusações sobre o seu silêncio
cúmplice face à violação sistemática do ordenamento jurídico nacional e a
lapidação do erário público da parte dos altos dirigentes. Mas a vitória sobre
os vícios do passado só será possível se os futuros deputados estiverem
dispostos a libertar-se da velha lógica da utilização das funções públicas para
fins pessoais. Caso contrário, na nova situação de um Parlamento no qual nenhum
partido terá uma maioria qualificada, poder-se-á
assistir o jogo sujo das corporações cruzadas (alianças entre grupos parlamentares
de diferentes partidos) finalizadas a encobrir e justificar os desmandos do
governo do dia, em troca de favores políticos ou oportunidades económicas.
Por sua vez, os herdeiros da fortuna proveniente de
sistemáticos atos impunes de lapidação do erário público, os filhos dos
“libertadores da pátria” - que, com mais
probabilidade, serão eles a ocupar as funções públicas mais importantes do
futuro governo, sobretudo em caso da vitória do partido Frelimo - só poderão conferir
conteúdo aos vazios discursos de “luta contra a pobreza”, proferidos pelos seus
progenitores, se forem capazes de renunciar as fúteis pequenas ambições de
tornar-se os novos “supermen” ricos mas incapazes de produzir riqueza, para
substituí-las com as grandes ambições de fazer de Moçambique um glorioso país.
Se continuarem – a exemplo dos seus progenitores – a deixar-se guiar pela “Vontade
de Potência” ou (como a Valentina Guebuza), se preferirão os títulos de
príncipes/princesas milionários, em detrimento do inteiro país que continua a
figurar entre os últimos 10 Estados com o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) mais baixo, então a “terra prometida” continuará inalcançável para os
moçambicanos. A sua sorte se traduzirá em vagabundagem no “deserto”, com o
risco do regresso à escravidão do “Egito”.
Alfredo
Manhiça
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