Editorial do Savana, 18/04/14
Aberrante, assim classificou as últimas propostas
da Renamo, José Pacheco, o negociador governamental em desespero de causa. Mais
ou menos aberrante, inusitado, em demasia, terão dito também muitos
moçambicanos às exigencias para que haja homens de Afonso Dhlakama no topo da
hierarquia das Forças Armadas e da polícia.
Passaram mais de 21 anos sobre o Acordo de Paz de
Roma, a Renamo ocupa os seus assentos no Parlamento como partido de oposição e
as nomeações nas Forças de Defesa e Segurança são de há muito um mister
governamental. Isto seria a normalidade.
Mas esta não é a realidade moçambicana e a
presente situação é ela própria uma bizarra aberração. Nos últimos meses várias
leis foram alteradas num frenesim inédito sob pressão de homens armados nas
florestas moçambicanas e com a casa das leis – o órgão legislativo por excelência
– a cumprir os entendimentos dos senhores da guerra de carimbo em punho.
Conjunturalmente, as últimas propostas da Renamo
são um teste claro à capacidade de encaixe do governo, perante o que os
ortodoxos e conservadores do regime apelidam de concessões feitas aos antigos
beligerantes do conflito armado moçambicano.
Porém, para além da poeira e dos jogos de
palavras, as propostas da Renamo não têm nada de extraordinário. Foi assim que
foram estruturadas as chefias militares depois do Acordo de Paz, no Exército,
Marinha e Força Aérea, na própria estrutura do Estado-Maior. E também assim
deveria ter acontecido na polícia e nos serviços de segurança. Como nunca
deveriam ter ficado para trás assuntos pendentes de homens armados à revelia
das instituições do Estado.
O Governo - ou mais propriamente a direcção do
Partido Frelimo - porque o Executivo cumpre as orientações do partido
dominante, tudo fez para se afastar dos compromissos de Roma, do espírito de
reconciliação nacional e de uma paz sem vencedores nem vencidos.
Sistematicamente, e muitas vezes de forma
humilhante, nos 21 anos de ausência de guerra foi feita uma verdadeira limpeza
dos homens da guerrilha nas forças armadas, permanecendo a polícia e a
segurança de Estado, duas instituições fortemente politizadas e com sinal
claramente Frelimo. No Aparelho de Estado o mesmo regime de intolerância foi
mantido. Qualquer novo director tem habitualmente na sua secretária, logo após
a nomeação, uma ficha de inscrição no partido Frelimo.
Joaquim Chissano, numa entrevista recente,
conseguiu dar apenas um único exemplo de integração no Aparelho de Estado,
nomeação que foi prontamente revertida quando deixou o mandato.
Angola e José Eduardo dos Santos, habitualmente
muito criticados pelo modelo de partido dominante naquele país irmão, e apesar
das críticas permanentes da Unita, têm levado a cabo uma notável política de
integração dos antigos beligerantes de Jonas Savimbi. No governo, a nível
ministerial, no corpo diplomático, nas Forças de Defesa e Segurança, no mundo
dos negócios. Moçambique, pelo contrário, e sobretudo na actual presidência,
tudo parece convergir num único sentido. A falta de oportunidades no mundo dos
negócios deixa os próprios quadros da Frelimo exasperados, como aconteceu no
mais recente episódio com a migração digital. A impunidade é tal que os
militantes do partido dominante acham normal proceder ao enchimento de urnas
para viciar resultados eleitorais. Como aconteceu em Novembro nas eleições
autárquicas.
Pode parecer aberrante, mas 21 anos depois de os
moçambicanos terem em soberania posto fim a um conflito armado sangrento, a
Renamo está a tentar repor o espírito de Roma, mesmo que isso seja difícil de
engolir para amnésicos e autistas.
A democracia não é apenas um exercício de voto em
cada cinco anos. A democracia é também feita de percepções em que os que perdem
nas eleições ganham noutros tabuleiros. No mérito das qualificações académicas
e intelectuais, na equidade nas oportunidades de negócio por oposição ao
vicioso vergão da exclusão para quem não pertence ao partido dominante.
São estas as questões de fundo que explicam os
posicionamentos da Renamo no arremedo de democracia para onde nos conduzem
obstinadamente os actuais dirigentes do dia.
O que é de facto uma aberração.
SAVANA -18.04.2014
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