Editorial do Savana
O entendimento que conduziu à cessação das hostilidades para permitir o recenseamento de Afonso Dhlakama, na semana passada, veio provar como é possível, entre os moçambicanos, resolver problemas que à priori podem parecer intragáveis, sem necessidade de uma única gota de sangue.
Sem a pompa e o cerimonial que geralmente acompanham cerimónias formais de assinatura de acordos de paz, o líder da Renamo, unilateralmente decidiu parar com os ataques militares, permitiu que as brigadas do STAE fossem acompanhadas pela polícia, e sem necessidade de qualquer força de interposição, desceu da montanha para se fazer recensear. E fê-lo com alguma dignidade, exibindo o seu passaporte diplomático, documento emitido pelas autoridades moçambicanas, acto que o porta-voz da Frelimo, Damião José, por ignorância legislativa, teima em insinuar como demonstração da condição “não moçambicana e anti-patriótica” de Dhlakama.
Depois de exibir o seu cartão de eleitor, e falando para a imprensa, Dhlakama disse que iria votar no dia 15 de Outubro, numa mesa de voto da circunscrição onde se recenseou. Assim manda a lei.
Mas das declarações de Dhlakama, aquela que deve ter soado como música para os ouvidos dos moçambicanos amantes da paz foi quando ele disse que o cessar-fogo unilateral era definitivo, e que a sua manutenção dependerá da atitude que for tomada pelo governo nas negociações que decorrem entre as duas partes. Há gente que considere Dhlakama como errático, um homem sem palavra, propenso a furtar-se aos seus compromissos. Talvez Dhlakama, ele próprio, não faça muito esforço para afastar esta ideia que se tem de si. Mas se o país conseguiu assegurar a paz durante 20 anos, depois de uma guerra em que praticamente ele saiu com as mãos a abanar, é preciso procurar, objectivamente, encontrar onde reside o mérito desse sucesso.
E daí procurar encontrar as possíveis causas para a situação de instabilidade político-militar em que o país se encontra actualmente. Talvez não se seja demasiado cáustico concluir que pouco tenha sido feito para acarinhar este património comum, que é um direito humano e fundamental para o desenvolvimento de qualquer sociedade. A noção reiterada no discurso político, de que há moçambicanos patriotas e outros que não o são, pode ter propiciado as condições para que tivéssemos que chegar a este ponto. Desde 1992 que sempre vivemos numa paz precária, com dois exércitos armados, e numa democracia multipartidária em que o opositor ideológico muitas vezes se confundiu com um inimigo a abater com todos os meios à nossa disposição.
Mas os grandes sucessos que todos desejamos na manutenção de uma paz mais significativa e genuína devem começar com uma mudança positiva no paradigma discursivo, onde palavras ou frases sonantes não podem parecer estarmos a afiar as baionetas e os canos das espingardas, prontos para uma batalha infernal. E nessas condições, claro que o sol de Junho sempre brilhará. E para todos.
Fonte: Savana, 16-05-2014 in Diálogo sobre Mocambique
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