Por João M. Cabrita
É normal a elaboração, por encomenda ou não, de estudos e análises sobre a situação em países estrangeiros com quem os Estados Unidos se relacionam. O que já não é comum é a dessiminação geral e através de canais públicos, de matéria que, por princípio, é de circulação restrita, sob pena de se ferirem sensibilidades, pondo em risco laços bilaterais. E quando isso acontece é por que há recados a transmitir ou objectivos, por vezes inconfessáveis, a atingir, especialmente quando quem acciona os mecanismos dessa divulgação está à testa da política externa, designadamente o Departamento de Estado sob cuja alçada funciona a USAID.
É normal a elaboração, por encomenda ou não, de estudos e análises sobre a situação em países estrangeiros com quem os Estados Unidos se relacionam. O que já não é comum é a dessiminação geral e através de canais públicos, de matéria que, por princípio, é de circulação restrita, sob pena de se ferirem sensibilidades, pondo em risco laços bilaterais. E quando isso acontece é por que há recados a transmitir ou objectivos, por vezes inconfessáveis, a atingir, especialmente quando quem acciona os mecanismos dessa divulgação está à testa da política externa, designadamente o Departamento de Estado sob cuja alçada funciona a USAID.
Viu-se isso há uns anos atrás, aquando da divulgação do chamado Relatório Gersony, feito igualmente de encomenda pelo Departamento de Estado. Aqui, o objectivo era o de cortar, pela raiz, um pequeno impecilho com que Washington vinha deparando na prossecução do seu plano de reordenamento político da África Austral: a Renamo. Chester Crocker, a fonte inspiradora desse relatório, até foi bem sucedido nos seus intentos pois conseguiu, por via dele, silenciar o lobby da Renamo ao nível do Congresso norte-americano onde a política externa dos Estados Unidos vinha sendo, de forma inusitada, posta em cheque tanto por Democratas como por Republicanos. Vivia-se, então, a lua-de-mel, em segundas núpcias, entre o Departamento de Estado e a Frelimo.
Crocker relata no seu livro de memórias, que foi Samora Machel quem ajudou os Estados Unidos a concretizar o seu plano, abrindo-lhes a porta que conduziria às negociações quadripartidas sobre a retirada dos cubanos da África Austral, região desde há muito considerada por Washington como sua “zona exclusiva”. Em troca, segundo Crocker, os Estados Unidos resolveriam o “problema sul-africano” de Machel, isto é, a Renamo, em que metade dos “bandos armados” passaria a trabalhar em fazendas e minas na África do Sul, e a outra metade em projectos agrícolas subsidiados pela USAID, LONRHO e outras entidades. Uma espécie de chibalo Made in USA. O que nunca se chegou a apurar era se ao abrigo desse plano, Afonso Dhlakama iria para o John ou se receberia guia de marcha com destino ao lugar normalmente reservado para os enfants terribles da Frelimo.
Não deixa, pois, de ser caricato que o Departamento de Estado, que num passado recente se emepenhou em destruir a oposição à ditadura prevalecente em Moçambique, venha hoje divulgar um relatório no qual se lamenta a débil situação com que depara o maior partido da oposição moçambicana. E se hoje o sistema judicial moçambicano é tido pelo relatório da USAID como estando minado pela corrupção, na fase Gersony do interlúdio de amor entre Washington e a Frelimo ele encontrava-se refém do totalitarismo reinante, que punha e dispunha das vidas dos cidadãos a seu bel-prazer. Mas isso era algo que até nem preocupava, minimamente, os que se entretiam em fazer alarde do facto de Moçambique, mercê do apoio concedido através da USAID ao regime ditatorial, se havia guindado ao topo da lista dos países recipientes de ajuda externa norte-americana em toda a África a Sul do Sara.
A julgar pela forma como o semanário governamental Domingo reagiu à divulgação do relatório da USAID, depreende-se que o único objectivo do Departamento de Estado foi o de simplesmente ajudar a sanar um incidente diplomático por si criado em Maputo. O periódico dominical acusou abertamente os Estados Unidos – se bem que por via da USAID – da prática de “rapto”, envolvendo um cidadão moçambicano que terá feito um avultado desfalque nos escritórios da agência norte-americana em Maputo. Certamente que as autoridades moçambicanas terão manifestado, perante um representante da missão diplomática norte-americana, o seu desagrado pela afronta ao poder judicial em Moçambique a quem cabia, em última instância, o direito de julgar o cidadão moçambicano ao serviço da USAID no território de um país que ainda dispõe do estatuto de Estado soberano.
Como que a pôr água na fervura, os Estados Unidos pretenderam fazer passar a ideia de que haviam unicamente agido, como sempre, de boa fé, pois que em face do teor de um relatório que até nem era de sua autoria e que já estava pronto antes do incidente diplomático, estavam absolutamente convictos de que o caso do desfalque não poderia ser resolvido com eficácia pela justiça moçambicana.
Canal de Mocambique - 2006-06-22
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