Justiça e corrupção ou corrupção e Justiça (*)
(Maputo) Trazemos hoje a público um extracto do Relatório Final sobre a Corrupção em Moçambique, elaborado por uma equipa de consultores americanos que esteve a trabalhar no país o ano passado e o editou em Dezembro último. A parte que hoje aqui estampamos diz respeito ao que no relatório se escreve sobre o sector da Justiça, mais propriamente sobre os capítulos “hierarquia e o controlo político facilitam a grande corrupção” e “outras vulnerabilidades e constrangimentos.
A hierarquia e o controlo político facilitam a grande corrupção
“Os actores chave do sector judicial incluem o Ministro da Justiça, os juizes, os procuradores, a Polícia de Investigação Criminal (PIC) (cujos agentes são requisitados e supervisados pelo Ministério do Interior, mas respondem perante a Procuradoria Geral da República na qualidade de investigadores criminais) e os advogados. Dos actores chave, o Tribunal Supremo, e especificamente o Presidente do Tribunal Supremo, dão o exemplo e exercem influência considerável sobre todos os tribunais de mais baixa instância. Os juizes são nomeados através de um sistema de admissão ao Instituto de Formação Jurídica, que é nominalmente por mérito, e a equipa não ouviu grandes preocupações quanto à manipulação do processo de nomeações a este nível básico, embora o nepotismo e o recurso a contactos políticos com vista à obtenção dos cargos desejados sejam um problema universal em Moçambique.
Considerações de ordem política desempenham um papel muito claro nas nomeações nos níveis mais altos, em particular o Tribunal Supremo, onde quer o presidente, quer o vice-presidente são nomeados pelo Presidente da República. O actual presidente do Tribunal Supremo foi nomeado em 1988 e a sua comissão foi renovada pelo antigo Presidente Chissano algumas semanas antes da realização das eleições de 2004. Trata-se de um elemento resoluto da Frelimo que é largamente considerado como sendo um interlocutor chave para os dirigentes políticos quando estão em causa interesses importantes nos casos dos tribunais. A maior parte dos entrevistados responsabilizou-o por uma parte significativa da lentidão do processo da reforma.
Com considerações de ordem política a dominarem o nível mais alto do sistema dos tribunais, a natureza hierárquica do poder judicial moçambicana dificulta que os juizes de mais baixa instância evitem a interferência política ou funcionem de uma maneira mais transparente. O Tribunal Supremo exerce um controlo formal sobre os juizes de instância mais baixa através da sua capacidade de rejeitar recursos e também através do funcionamento do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), chefiado pelo presidente do Tribunal Supremo, o qual tem poderes para avaliar o desempenho e rever as decisões dos juizes, assim como para promover, transferir e/ou instaurar processos disciplinares aos juizes. O CSMJ também dirige o serviço de inspecção judicial para investigar casos ou outros actos de juizes ou dos oficiais de justiça (o número de inspectores é reduzido e, no passado, o CSMJ não identificou o combate à corrupção como tarefa prioritária. No ano passado, o CSMJ avaliou casos disciplinares envolvendo 8 juizes e 7 oficiais de justiça; foram instaurados processos disciplinares à maior parte deles, mas todas as acusações estavam ligadas a problemas de alcoolismo, e não à corrupção ou outro problema ligado à justiça).
O controlo sobre os juizes de mais baixa instância também pode ser informal. Os juizes podem simplesmente "editar" as suas próprias decisões por forma a evitar a sua posterior rejeição (e talvez exporem-se como não dignos de confiança política), ou poderão responder a "manifestações de interesse" ou de "preocupação" provenientes de juizes de instâncias mais altas que são interpretadas como instruções informais quanto ao desfecho de um determinado caso.
O Ministério Público e a Polícia de Investigação Criminal (PIC), sob a tutela da Procuradoria Geral da República, têm a responsabilidade de investigar e de submeter os casos aos tribunais. De acordo com o recente inquérito sobre a corrupção, e segundo a opinião de muitos inquiridos, os procuradores não são considerados como sendo tão corruptos como os juizes e os oficiais de justiça, mas também trabalham num ambiente de controlo político.
A PIC é considerada como um elo fraco da cadeia da justiça penal. Esta polícia tem a responsabilidade de investigar e de apresentar provas referentes aos casos encaminhados ao sistema judicial, pelo que tem uma série de oportunidades de influenciar os resultados desses casos. Ao receberem uma acusação, os agentes podem usar os seus conhecimentos para fazerem favores por um preço (por exemplo, informando ao acusado que está a ser investigado, ou alertando-o sobre uma possível busca) ou para extorquirem subornos recusando-se a investigar uma queixa até que sejam pagos, ou talvez exigindo pagamentos de potenciais suspeitos. Subornar investigadores para "perderem" partes cruciais de provas é uma prática alegadamente comum. O facto de a PIC estar oficialmente subordinada ao Ministério do Interior, e não à Procuradoria Geral para quem investiga, cria preocupação no seio de muitos observadores. Embora este não seja um facto pouco comum globalmente, existe a preocupação de que, em Moçambique, o mesmo permita uma ingerência política nos processos por introduzir mais uma série de actores institucionais com capacidade de influenciar o que os agentes de investigação fazem.
Poucos casos processados pela Unidade Anti-corrupção da Procuradoria Geral deram entrada nos tribunais e menos ainda resultaram em condenações. As capacidades da Unidade Anti-corrupção e do Ministério Público em geral são limitadas, mas poucos entrevistados são de opinião que esta seja realmente a razão que justifica que os casos não sejam devidamente encaminhados aos tribunais. Pelo contrário, a preocupação é de que a Unidade, assim como a Procuradoria Geral da República em geral, simplesmente não estão em condições de fazer valer os seus objectivos contra os interesses dos actores políticos de nível superior. Os pontos fracos dos procuradores foram demonstrados no Relatório Anual de 2002 do então Procurador Geral à Assembleia da República em que ele assinalou que, no ano anterior, o seu gabinete tinha formalmente solicitado informação específica a quatro ministros. Apenas um respondeu facultando a informação solicitada
Outras vulnerabilidades e constrangimentos
Pessoal: O mau desempenho do sistema judicial deve ser atribuído, pelo menos em parte, às limitações impostas pela escassez de recursos humanos. Ao mesmo tempo, essa escassez de recursos humanos também cria nós de estrangulamento e atrasos que aumentam os incentivos para se manipular o processo através de meios não judiciais, como é o caso do suborno. Sob todos os pontos de vista, todas as instituições do sector judicial têm escassez de pessoal e a maior parte do pessoal existente não está devidamente qualificado. A equipa foi informada que existem apenas 400 juristas formados em Moçambique. As condições de trabalho no sistema judicial são más (embora tenha havido um aumento salarial importante no ano passado) e os graduados em direito muitas vezes arranjam cargos mais bem pagos no sector privado. De acordo com o plano estratégico integrado para o sector judicial elaborado em 2002, apenas 29 por cento dos magistrados judiciais no país concluíram a sua formação em direito. Um novo instituto de formação judicial iniciou acções de formação para juizes e, a partir de 2003, foram graduados 40 juizes no curso com a duração de um ano. Todavia, o número geral de juizes encontra-se aquém das necessidades e a acumulação de casos tem estado a aumentar.
Procedimentos arcaicos e ineficazes: existe uma ideia generalizada de que o quadro legal e os procedimentos para gerir os tribunais, que não são restruturados de forma significativa desde os finais dos anos 1800, criam grandes oportunidades para a existência de pequena corrupção e também de grande corrupção. Cada apresentação de nova documentação exigida representa uma possibilidade de subornar um oficial de justiça para processá-la lenta ou rapidamente, em função das necessidades do autor do suborno, ou para que este "perca" documentos, constituindo assim um revés para o andamento do processo e criando mais oportunidades e incentivos para se manipular novamente o processo. Os processos de gestão de casos constituem um factor adicional de vulnerabilidade, uma vez que existe pouca capacidade de conhecer o progresso ou o ponto de situação de um determinado caso. Os sistemas de arquivo manual facilitam ainda mais a perda de documentos (quer seja ou não intencionalmente). Porém, a experiência da assistência da USAID ao Tribunal da Cidade de Maputo com vista à automatização da gestão dos casos constitui um alerta claro para o facto de que as tentativas de lidar com os sintomas de má gestão normalmente não são bem sucedidas se as suas causas não forem sanadas. No caso do sistema judicial moçambicano, parte do problema reside certamente na capacidade, mas o constrangimento real é o empenho no sentido de se tirar o máximo proveito da assistência dos doadores.
(*) N.R.: O título é da responsabilidade do «Canal».
Canal de Mocambique - 2006-06-09
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