sexta-feira, maio 20, 2016

“Ninguém é eterno no governo em democracia”

Marcelo Rebelo de Sou­sa, presidente de Por­tugal, realizou uma visita de Estado a Moçambique, entre os dias 03 e 07 deste mês. Na agenda, o homem que dan­çou, brincou e distribuiu afectos abriu espaço para uma entrevista ao jornal O País e à Stv. Marcelo fala da paixão por Moçambique, da democracia e reconciliação, bem como da economia e do futuro. O Mozefo, onde foi um dos principais oradores, não fi­cou para trás, mesmo porque o estadista defende que “todo Mo­çambique devia ser um Mozefo gigante”. A seguir, as partes mais significativas da conversa com o quinto presidente de Portugal após a “revolução dos cravos”.
Marcelo Rebelo de Sousa está pela primeira vez em Moçambi­que na qualidade de presidente da República de Portugal. Como é que os moçambicanos podem sen­tir o seu apreço por Moçambique?
Não nasci hoje e os moçambi­canos sabem como eu gosto de Moçambique há muitas décadas. Aliás, estive em Moçambique nos princípios de Dezembro para par­ticipar do Grande Fórum Mozefo. Aqui venho com muita frequência. Aqui vim dar aulas, realizar exa­mes, realizar provas académicas na Universidade Eduardo Mondlane, na Faculdade de Direito. Por dé­cadas e décadas conheço muito bem Moçambique e esta biografia significa que tenho um carinho e afecto por Moçambique. Ninguém visita tantas vezes uma terra e lida tantas vezes com pessoas desse país se não gostar dessa terra e dessa gente. Em segundo lugar, não é por acaso que, como presidente da República, eu venha neste quase início do meu mandato presiden­cial. Significa, também, que quis dar um sinal, deixar um símbolo desse afecto, porque a vida é feita de sinais.
O que vai mudar agora que é presidente da República de Por­tugal?
O que muda é que o presidente da República, naturalmente, tem responsabilidades, e essas respon­sabilidades significam ainda uma maior atenção ao que um amigo de Moçambique deve estar disponível para fazer, se realmente entender que isso é bom para Moçambique.
Com todo o manancial que ad­quiriu sobre Moçambique antes da sua visita como presidente de Portugal, o que espera trazer em termos de mensagem para os mo­çambicanos?
Primeiro, a mensagem que já disse, que é de afecto. Segundo, a esperança, Moçambique tem um grande potencial. Tem um po­tencial natural, tem um potencial humano. Moçambique não deve desperdiçar esse potencial. É o que nós desejamos dos amigos. Deve valorizá-lo permanentemen­te, é uma terceira mensagem. Uma quarta mensagem que é a minha experiência como presidente da República Portuguesa. Eu fiz um apelo desde a primeira hora, que os portugueses superassem aquilo que não é essencial na relação en­tre eles a dividi-los e pensem que aquilo que os une é muito mais im­portante que aquilo que os divide. Podem ser de partidos diferentes, podem ser de religiões diferentes, podem ter opiniões diferente, mas há realidades nacionais que são mais importantes que as divisórias. É exactamente o que eu penso em relação a uma pátria amiga como Moçambique. Outra coisa que eu digo lá em Portugal: falem. Mesmo que não consigam entender-se à partida, falem, para definir os ter­mos em que vão falar a seguir, a ver se se entendem. E, depois, a vida é muito mais rica do que pensamos. Há domínios em que as pessoas pensam que não há consensos, não é possível haver consensos, mas na prática há consensos, eles estão a acontecer. E, além de se­rem possíveis, são indispensáveis e é preciso dar passos nesse sentido. E todas essas são mensagens de es­perança que eu dou, baseando-me na experiência portuguesa. Outra experiência portuguesa que nós vi­vemos todos os dias: as instituições internacionais estão muito atentas ao que se passa hoje na economia dos países, portanto, nós temos um papel fundamental, que é de não dar argumentos para que estas ins­tituições de repente formulem juí­zos que não sejam bons para nós.
Essa mensagem que traz a Mo­çambique, que de alguma forma também já é partilhada com os portugueses, da necessidade de união, de diálogo, sente que pode ser útil e contribuir para que os moçambicanos resolvam este di­ferendo que põe em causa a paz que todo o ser humano almeja?
Moçambique é um Estado sobe­rano. Não é uma realidade como acontece com Estados que foram soberanos e que se dividiram em pedacinhos, que exigem que haja intervenções externas para com­por esses pedaços. Quem deve, em primeira linha, resolver isso são os nacionais, todos eles. Podem ouvir conselhos de amigos, mas depen­de deles. Agora, podem e muito menos devem, aqueles que são fo­rasteiros, chegar um dia, baterem a porta e dizerem ‘não se importa, eu acho que a solução para a vossa felicidade é esta e eu quero ter um papel fundamental na descoberta da vossa felicidade’.
A ser convidado, como é que Portugal pode ajudar Moçambi­que a sair da crise política?
Portugal está todos os dias a aju­dar, na medida em que colabora com Moçambique nos domínios mais variados da educação, da cultura, social, da saúde, econó­mico, financeiro, estimulando investimentos em Moçambique, até na colaboração militar. Está a colaborar. Por outro lado, há uma questão muito importante. Vamos imaginar neste raciocínio, que há quem peça opinião. A opinião deve ser dada em privado. Prova­velmente seja mais sensato ouvir uma opinião em privado que estar a ouvir em público. A opinião ouvi­da em público cria mais dificulda­de que realmente ajudar a resolver os problemas. É mais negativa que positiva. Há aqui uma questão de bom senso, de ponderação, que leva a que se reconheça isto. Cabe aos moçambicanos a palavra deci­siva sobre Moçambique.
O presidente Marcelo falou de dar opinião em privado e em pú­blico. Foi-lhe endereçado um con­vite para formular uma opinião sobre Moçambique em privado?
Não é que me tenham pedido opinião, mas se me viessem pedir ou se me vierem pedir, o mais sen­sato é não precipitar-me imedia­tamente para o microfone e dizer hoje telefonou-me um amigo que está com um problema na vida dele, está com uma dívida que não consegue pagar, está com um pro­blema de desentendimento fami­liar, vou anunciar a todos vocês e a todos amigos que estou a ajudar a resolver este problema. É meio ca­minho andado para não ajudar a resolver o problema.
Moçambique é um país jovem, tal como Portugal, tem uma de­mocracia jovem. Como é que a ex­periência de Portugal pode ajudar Moçambique na consolidação de instituições fortes e de uma socie­dade civil interventiva rumo ao desenvolvimento?
É muito importante haver, ao lado do Estado, ao lado do poder político, instituições da sociedade civil. Olhando para a experiência que tenho, que vivi, Moçambique já teve períodos de muita dificulda­de, e deu a volta por cima. E uma das forças foi a de, aos poucos, ir construindo uma sociedade civil, como em Portugal, onde a socie­dade civil também era tradicional­mente muito fraca. É muito difí­cil construir uma sociedade civil quando se herda uma situação de Estado muito forte. É a pulso que se constrói uma sociedade civil. Mas outra força que há por reconhecer foi uma transição democrática, com uma preocupação multipar­tidária e pluralista, que é difícil. Os processos de democratização são complexos, exigem paciência e capacidade de diálogo. Não é boa orientação política aquela ideia de que quem está no governo ou deslumbrar-se ou acha que o país morre se não estiver eternamente no governo. Ninguém está eterna­mente no governo em democracia. Portanto, nem a ideia terrível de que a melhor oposição é aquela que vai até ao ponto tal de que é bom que aconteça o pior possível para o país, porque isso é bom para a oposição um dia mais tarde. Nem a posição de fechar os olhos à realidade.
Que caminhos pode percorrer Moçambique para consolidar as instituições?
A democracia faz-se fazendo. São os pequenos gestos que cons­troem as democracias. Agora, tem de haver gestos, pequenos e gran­desgestos, como tudo na vida. As grandes modificações são feitas de pequenos e grandes gestos.
Moçambique está a assistir a uma redução gradual da ajuda ao desenvolvimento. Que papel pode ter Portugal, tendo em conta que está na liderança do G14?
A comunidade internacional, quando age em conjunto, há deba­tes internos sobre qual é a melhor forma de, momento a momento, actuar para uma economia. Há uns que são mais duros, há outros que são menos duros. E depende da balança. Se são mais ou me­nos duros por considerarem que a situação está a deteriorar muito rapidamente, começam a ganhar a liderança. Começa a formar-se uma solidariedade na base da du­reza, que pode ou não ir até à rup­tura. Pode apenas ir à suspensão. Há momentos em que há constela­ção de factores internacionais, aí a reacção dos que são credores, dos que são instituições internacionais que acompanham a evolução de uma economia, é muito dura.
Alguns países da CPLP vivem, também, momentos de crise, de grandes desafios que também são uma oportunidade para o fortale­cimento da comunidade. Sendo a CPLP uma comunidade com fra­ca expressão - e até é percebida como uma comunidade fictícia -, como é que pode afirmar-se para que se torne uma comunida­de forte e com expressão a nível mundial?
Eu sempre achei que era um disparate integrar-se a CPLP assim como se integram outras comuni­dades e não tirar proveito dessa integração, dando um salto estra­tégico da CPLP. No mundo com­plicado, não se deita fora cumpli­cidades e solidariedades, mesmo se limitadas. Mas é evidente que o agravamento da situação mun­dial e das situações regionais tem provocado problemas financeiros em várias economias e socieda­des da CPLP, e uma comunidade é mais forte se cada uma das suas componentes estiver a viver um bom momento. Se num determi­nado momento histórico houver uma coincidência de momentos críticos, isso, à primeira vista, não é bom para a CPLP. Este é um grande momento para repensar os 20 anos da CPLP, para ver onde estão as economias e as sociedades destes vários Estados, quais são os problemas, o que têm em comum e como é que podem em comum ultrapassá-los.
Antes de ser eleito, esteve em Moçambique para participar no primeiro Grande Fórum Mozefo. O que mais o marcou e o que o motivou a interrom­per a campanha eleitoral e vir participar neste grande fórum?
Mozefo foi para mim uma es­pécie de símbolo do que eu so­nharia de ver em todo Moçam­bique. Todo Moçambique devia ser um Mozefo gigante. No Mo­zefo havia prestígio internacio­nal, participação internacional, diálogo, encontro de experiên­cias, juventude, muitas mulhe­res, abertura a novas tecnologias de comunicação, debate dos problemas, olhar para o futuro, uma onda de esperança, uma so­ciedade civil apostada em novos comportamentos, em mudanças geracionais e de formas de fun­cionamento de tudo. Foi um mo­mento mágico. E, portanto, saí com uma convicção de que os moçambicanos, olhando para o Mozefo, dirão, em particular os que tiverem tido contacto com essa realidade, que esta onda devia percorrer todo o país. Va­mos fazer um esforço para ver se conseguimos superar aquilo que parece insuperável.
Percorrendo todo o país, como é que projectaria Moçambique nos próximos anos?
Mozefo pode e deve ter pólos em todo o país. Este espírito de mais forte sociedade civil, de mais gen­te nova, de novos comportamen­tos, de não se ficar preso a formas antigas, de os mais velhos darem lugar aos mais novos, o haver um relacionamento intergeracional, tudo isso ser vivido, não apenas em Maputo, mas em todo o país e ser contagiante. A grande vantagem da mudança reformista em relação às rupturas radicais é que os custos sociais, políticos, económicos e hu­manos são muito menores.
Presidente Marcelo viveu parte da sua adolescência e vida adulta em Moçambique. Testemunhou a realidade colonial e a realidade, também, do pós-independência. Que recordações tem de Moçam­bique do ponto de vista de luga­res, gastronomia, quais são as memórias?
Eu tenho falado pouco do passa­do porque acho que Moçambique tem que olhar para o futuro, mas não posso esconder que, sendo muito novo, viria cá, após a inde­pendência, várias vezes, durante o governo do presidente Chissano. Não posso esquecer o fascinante que foi conhecer uma sociedade que tinha condições, numa altura em que era evidente para mim o fim do período colonial. E apesar de isentamente reconhecer que o meu pai fez, nesse contexto, o go­verno que era o melhor possível no quadro do que era possível, mas de facto era um caminho inevitá­vel, irreversível e tardio, a desco­lonização era tardia, mas sentir já uma riqueza natural e humana em Moçambique que fazia profetizar o melhor. Lembro-me da forma como se comprava, na altura, na Coop, os livros debaixo da mesa que eram proibidos pela PIDE. Lembro-me de encontros com intelectuais, foi aí que fizemos a minha primeira conferência qua­se política, pela mão de figuras da oposição democrática da ocasião, conheci, fisicamente, praticamen­te todo o território de Moçam­bique. Quis o destino que muito mais tarde viesse a trabalhar na Hi­droeléctrica de Cahora Bassa, no escritório de Lisboa, como jurista. Portanto, ficaram, ao longo deste percurso, vários momentos, ficou uma ligação afectiva tão forte que conheço cada canto de Moçambi­que, mas eu não gosto de ser um homem do passado.
E olhando para o futuro, o pre­sidente Marcelo falou ao longo desta entrevista, aliás, sempre é notório nas suas abordagens o ca­rinho e afecto com que se refere a Moçambique. Enquanto presi­dente da República, o que se pode esperar de Portugal na projecção de Moçambique além-fronteiras?
Cada alegria que encontro é uma alegria enorme, estando aqui ou não. Tenho uma notícia mais triste e sinto que já não posso inter­vir sobre ela, mas como sou muito virado para o futuro e muito espe­rançoso, acho que é preciso agora ver que passos é que se pode dar para ir mais longe e para se ultra­passar problemas que possam exis­tir, e naquilo que eu puder ajudar, em solidariedade como governo português, eu farei e farei não ape­nas pelo carinho que tenho por Moçambique, mas também por­que sinto que é útil para Portugal, é importante para Moçambique, é importante para dois povos que têm todas as razões para continua­rem o caminho irmanados.

Fonte: O País – 10.05.2016

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