Por Alfredo Manhiça
É provável que muitos outros cidadãos moçambicanos (como
eu) tenham recebido nos seus telemóveis um SMS enviado pelo n. 826040, com a
seguinte mensagem: “Votar na Frelimo e no
Filipe Jacinto Nyusi é consolidar o Estado de direito democrático nacional, é
votar no futuro melhor das novas gerações e das actuais também”.
Se o sentido que se pretende atribuir ao conteúdo deste
SMS for denotativo, então, poder-se-ia concluir que o partido no governo inaugura
a sua campanha para as eleições gerais de 15 de Outubro determinado a propor
aos moçambicanos a mesma desgostosa “sopa” que vem servindo desde que Moçambique
tornou-se Estado soberano: palavreado carente de coerência entre o que se afirma
e o que se pretende fazer.
O pré-anúncio de mais um período sombrio para Moçambique
é encoberto, precisamente, pelo uso abusivo das palavras e dos conceitos
ordinariamente utilizados com um significado preciso, como o que se pode
constatar no SMS já citado. Por conseguinte, numa situação em que, nos últimos
dez anos, a maior crítica movida pela opinião pública nacional e internacional
contra o partido Frelimo foi a sistemática violação da legalidade nos termos da
Constituição e das demais normas legais e a consequente instauração, de facto, de um regime
autocrático/clientelar, se o partido de Armando Guebuza entendesse mostrar o
mínimo de respeito e consideração pelos moçambicanos não iria nunca falar de
“consolidação” de Estado de direito. Quando muito poderia falar da sua
instauração ou restauração. De facto, o termo “consolidar” supõe uma entidade
já existente que pretende ser enraizada no terreno onde foi precedentemente estabelecida.
A chave de interpretação das intenções maléficas (se não
diabólicas) da classe dirigente do partido no poder reside no emprego do verbo
“consolidar”. Os últimos dez anos do governo da Frelimo foram caracterizados
por um autêntico assalto aos recursos e oportunidades económicas públicas, da
parte da elite dirigente do partido. E é a este estado de coisa que a Frelimo
considera “Estado de direito” que pretende ser consolidado. Se o futuro das
próximas gerações é – como diz o SMS acima citado previsível a partir do actual
estado de coisas, então, votar no Filipe Jacinto Nyusi e votar na
“consolidação” do “Estado de direito” democrático – na modalidade em que nos é
apresentado pela Frelimo - é votar pela consolidação de um Moçambique caracterizado
por uma nítida divisão entre uma elite que, servindo-se do poder político e
outras influências conexas às funções públicas, acumula riqueza e vive do luxo,
em detrimento à maioria esmagadora dos cidadãos que, vítima de políticas
excludentes e complexos mecanismos de corrupção ao alto nível, vai se tornando
cada vez mais pobre.
É impossível consolidar o Estado de direito democrático
com uma máquina que, pela sua natureza, produz a violação sistemática do
direito. O partido no poder tornou-se essa máquina de produção de ilegalidade e,
inclusivo muitos dos seus membros, já perderam fé na possibilidade do partido tornar-se
um instrumento para a construção do bem comum e da justiça social. O partido
tornou-se um instrumento de roubo que, travestido de governo político, rouba de
forma descarada os cidadãos, sobretudo os mais indigentes. É isso mesmo que
muitos moçambicanos testemunham no seu dia a dia e, eu também, tive ocasião de
testemunhar minuciosamente no dia 26 de Agosto de 2014, durante a minha viagem
de Maputo a Manjacaze.
Durante aquela viagem (feita num transporte semicolectivo
de 18 alugares, Toyota Hiace, chapa de matricula ABE 396 MP) em todas as dez
improvisadas posições policiais onde o motorista João foi dado ordens para
estacionar o carro, antes de entregar o Livrete ao oficial da polícia, enfiava
uma nota de 50.00 Mt dentro do documento. Uma vez recebido o documento, a
preocupação do agente da Polícia não era verifica os dados do Livrete, mas retirar
a nota enfiada no Livrete e devolver o documento ao motorista. Na posição que
se situava a uns metros da povoação de Chimonzo (Província de Gaza), o Sr João (por
razões óbvias omito o seu nome completo) esboçou o mesmo truque sem sucessos.
Aqui foi aplicado uma multa, registado no Aviso n. 125/35/2014, do livro do
Comando Provincial de Gaza, imputado de ter violado o Art. 127/17 (c) do código
de Estrada.
Quando procurei saber por qual razão ele subornava a Polícia
em todos os lugares em que era mandado estacionar, respondeu-me que era assim
como o governo roubava o dinheiro dos transportadores. Explicou-me que deliberadamente
o governo nega aos interessados a autorização formal para fazer o transporte
inter-provincial utilizando minibus de 18 lugares mas, informalmente, permite a
circular dos mesmos para que todas as vezes que a Polícia manda parar encontre
motivo para aplicar a multa ou para receber alguma gorjeta. Quando ouvi aquele
discurso senti convulsões na barriga e fiquei com vontade de escrever um artigo
e publicá-lo numa revista estrangeira, com um título que soasse assim: Moçambique: o país onde os ladrões são
reverenciados.
E é mesmo assim! Todas as vezes que o Sr João estendia a
mão para entregar a nota de 50.00 Mt ao seu sanguessuga tratava-o com muita
reverência, chamando-o de “chefe”. O mesmo se pode dizer do alto dirigente
(Ministro dos Transportes ou de Interior?) que, por um lado, dando ordens para
não se passar licenças de circulação inter-provincial aos minibus de 18 lugares,
por outro lado, permite que continuem a circular numa condição de ilegalidade
funcional. Tal dirigente corrupto e criminoso é tratado com reverências, é detentor
de um passaporte diplomático e é coberto de imunidade. Quando faz visita nas
Escolas públicas e privadas as nossas crianças são obrigadas a levantar-se para
o saudar. E, não obstante tudo isso, trata-se, literalmente, de um ladrão
mascarado de dirigente político.
Aquele episódio odioso ajudou-me a perceber o significado
das palavras da elite do partido no governo quando insiste a dizer que o seu
partido teve grandes sucessos no programa quinquenal da luta contra a pobreza
absoluta. Os agentes da polícia é o tipo de homens e mulheres que durante este
período da campanha eleitoral o partido Frelimo vai apresentar como troféu, aqueles
que durante a administração do Presidente “visionário” melhoraram as suas
vidas. E o melhoramento da vida dos polícias de trânsito é inversamente
proporcional à degradação da vida dos utentes dos transportes semicolectivos.
Na medida em que o transportador semicolectivo, além de suportar as despesas dos
custos fixos e dos custos variáveis próprios da natureza da sua actividade,
deve também pagar um tributo a cada um dos polícias que o mandar parar, ele (o
chapista) é obrigado a agravar o preços da viagem e das bagagens que cada
passageiro leva consigo. Este contínuo agravamento dos custos de transporte
provocado pela indisciplina impune dos polícias de trânsito, somado com outros
mecanismos de exclusão, impede aos pobres a possibilidade de fazer poupanças em
vista de pequenos investimentos que poderiam melhorar as suas vidas. Esta
camada de moçambicanos trabalha simplesmente para nutrir os polícias e os
“chapeiros”.
Cheguei em Manjacaze ainda a pensar - sem acreditar –
naquilo que tinha visto e ouvido. É o seguinte: se for verdade que um alto
dirigente decidiu impedir a legalização da circulação dos minibus de 18 lugares
para criar um auto-financiamento fácil e para permitir a cresta dos agentes da
polícia, então, Moçambique está a ser governado por vigaristas. Se, pelo
contrário, for a polícia que, tendo embora recebido ordens explícitas para não
deixar nenhum minibus de 18 lugares fazer longos percursos, desobedece
sistematicamente as ordens emanadas, então o país está entregue à anarquia.
A julgar a partir da experiência vivida nos últimos dez
anos, os moçambicanos têm razões suficientes para não tomar as promessas da
elite do partido Frelimo ao pé da letra. De facto, tudo o que Guebuza prometeu
que ia combater – da corrupção à pobreza – multiplicou-se quatro ou cinco vezes
mais do que o que se fazia antes da declaração do combate. Portanto, a promessa
de consolidar o Estado de direito democrático pode querer dizer que não se irá
fazer nada para melhorar as instituições democráticas. Que tudo quanto se fará
é precisamente o contrário.
Alfredo
Manhiça
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