quarta-feira, setembro 10, 2014

SÓ MUDOU A FOGUEIRA A SOPA É AQUELA DE SEMPRE

Por  Alfredo Manhiça

É provável que muitos outros cidadãos moçambicanos (como eu) tenham recebido nos seus telemóveis um SMS enviado pelo n. 826040, com a seguinte mensagem: “Votar na Frelimo e no Filipe Jacinto Nyusi é consolidar o Estado de direito democrático nacional, é votar no futuro melhor das novas gerações e das actuais também”.
Se o sentido que se pretende atribuir ao conteúdo deste SMS for denotativo, então, poder-se-ia concluir que o partido no governo inaugura a sua campanha para as eleições gerais de 15 de Outubro determinado a propor aos moçambicanos a mesma desgostosa “sopa” que vem servindo desde que Moçambique tornou-se Estado soberano: palavreado carente de coerência entre o que se afirma e o que se pretende fazer.

O pré-anúncio de mais um período sombrio para Moçambique é encoberto, precisamente, pelo uso abusivo das palavras e dos conceitos ordinariamente utilizados com um significado preciso, como o que se pode constatar no SMS já citado. Por conseguinte, numa situação em que, nos últimos dez anos, a maior crítica movida pela opinião pública nacional e internacional contra o partido Frelimo foi a sistemática violação da legalidade nos termos da Constituição e das demais normas legais e a consequente instauração, de facto, de um regime autocrático/clientelar, se o partido de Armando Guebuza entendesse mostrar o mínimo de respeito e consideração pelos moçambicanos não iria nunca falar de “consolidação” de Estado de direito. Quando muito poderia falar da sua instauração ou restauração. De facto, o termo “consolidar” supõe uma entidade já existente que pretende ser enraizada no terreno onde foi precedentemente estabelecida.
A chave de interpretação das intenções maléficas (se não diabólicas) da classe dirigente do partido no poder reside no emprego do verbo “consolidar”. Os últimos dez anos do governo da Frelimo foram caracterizados por um autêntico assalto aos recursos e oportunidades económicas públicas, da parte da elite dirigente do partido. E é a este estado de coisa que a Frelimo considera “Estado de direito” que pretende ser consolidado. Se o futuro das próximas gerações é – como diz o SMS acima citado previsível a partir do actual estado de coisas, então, votar no Filipe Jacinto Nyusi e votar na “consolidação” do “Estado de direito” democrático – na modalidade em que nos é apresentado pela Frelimo - é votar pela consolidação de um Moçambique caracterizado por uma nítida divisão entre uma elite que, servindo-se do poder político e outras influências conexas às funções públicas, acumula riqueza e vive do luxo, em detrimento à maioria esmagadora dos cidadãos que, vítima de políticas excludentes e complexos mecanismos de corrupção ao alto nível, vai se tornando cada vez mais pobre.
É impossível consolidar o Estado de direito democrático com uma máquina que, pela sua natureza, produz a violação sistemática do direito. O partido no poder tornou-se essa máquina de produção de ilegalidade e, inclusivo muitos dos seus membros, já perderam fé na possibilidade do partido tornar-se um instrumento para a construção do bem comum e da justiça social. O partido tornou-se um instrumento de roubo que, travestido de governo político, rouba de forma descarada os cidadãos, sobretudo os mais indigentes. É isso mesmo que muitos moçambicanos testemunham no seu dia a dia e, eu também, tive ocasião de testemunhar minuciosamente no dia 26 de Agosto de 2014, durante a minha viagem de Maputo a Manjacaze.
Durante aquela viagem (feita num transporte semicolectivo de 18 alugares, Toyota Hiace, chapa de matricula ABE 396 MP) em todas as dez improvisadas posições policiais onde o motorista João foi dado ordens para estacionar o carro, antes de entregar o Livrete ao oficial da polícia, enfiava uma nota de 50.00 Mt dentro do documento. Uma vez recebido o documento, a preocupação do agente da Polícia não era verifica os dados do Livrete, mas retirar a nota enfiada no Livrete e devolver o documento ao motorista. Na posição que se situava a uns metros da povoação de Chimonzo (Província de Gaza), o Sr João (por razões óbvias omito o seu nome completo) esboçou o mesmo truque sem sucessos. Aqui foi aplicado uma multa, registado no Aviso n. 125/35/2014, do livro do Comando Provincial de Gaza, imputado de ter violado o Art. 127/17 (c) do código de Estrada.
Quando procurei saber por qual razão ele subornava a Polícia em todos os lugares em que era mandado estacionar, respondeu-me que era assim como o governo roubava o dinheiro dos transportadores. Explicou-me que deliberadamente o governo nega aos interessados a autorização formal para fazer o transporte inter-provincial utilizando minibus de 18 lugares mas, informalmente, permite a circular dos mesmos para que todas as vezes que a Polícia manda parar encontre motivo para aplicar a multa ou para receber alguma gorjeta. Quando ouvi aquele discurso senti convulsões na barriga e fiquei com vontade de escrever um artigo e publicá-lo numa revista estrangeira, com um título que soasse assim: Moçambique: o país onde os ladrões são reverenciados.
E é mesmo assim! Todas as vezes que o Sr João estendia a mão para entregar a nota de 50.00 Mt ao seu sanguessuga tratava-o com muita reverência, chamando-o de “chefe”. O mesmo se pode dizer do alto dirigente (Ministro dos Transportes ou de Interior?) que, por um lado, dando ordens para não se passar licenças de circulação inter-provincial aos minibus de 18 lugares, por outro lado, permite que continuem a circular numa condição de ilegalidade funcional. Tal dirigente corrupto e criminoso é tratado com reverências, é detentor de um passaporte diplomático e é coberto de imunidade. Quando faz visita nas Escolas públicas e privadas as nossas crianças são obrigadas a levantar-se para o saudar. E, não obstante tudo isso, trata-se, literalmente, de um ladrão mascarado de dirigente político.
Aquele episódio odioso ajudou-me a perceber o significado das palavras da elite do partido no governo quando insiste a dizer que o seu partido teve grandes sucessos no programa quinquenal da luta contra a pobreza absoluta. Os agentes da polícia é o tipo de homens e mulheres que durante este período da campanha eleitoral o partido Frelimo vai apresentar como troféu, aqueles que durante a administração do Presidente “visionário” melhoraram as suas vidas. E o melhoramento da vida dos polícias de trânsito é inversamente proporcional à degradação da vida dos utentes dos transportes semicolectivos. Na medida em que o transportador semicolectivo, além de suportar as despesas dos custos fixos e dos custos variáveis próprios da natureza da sua actividade, deve também pagar um tributo a cada um dos polícias que o mandar parar, ele (o chapista) é obrigado a agravar o preços da viagem e das bagagens que cada passageiro leva consigo. Este contínuo agravamento dos custos de transporte provocado pela indisciplina impune dos polícias de trânsito, somado com outros mecanismos de exclusão, impede aos pobres a possibilidade de fazer poupanças em vista de pequenos investimentos que poderiam melhorar as suas vidas. Esta camada de moçambicanos trabalha simplesmente para nutrir os polícias e os “chapeiros”.
Cheguei em Manjacaze ainda a pensar - sem acreditar – naquilo que tinha visto e ouvido. É o seguinte: se for verdade que um alto dirigente decidiu impedir a legalização da circulação dos minibus de 18 lugares para criar um auto-financiamento fácil e para permitir a cresta dos agentes da polícia, então, Moçambique está a ser governado por vigaristas. Se, pelo contrário, for a polícia que, tendo embora recebido ordens explícitas para não deixar nenhum minibus de 18 lugares fazer longos percursos, desobedece sistematicamente as ordens emanadas, então o país está entregue à anarquia.
A julgar a partir da experiência vivida nos últimos dez anos, os moçambicanos têm razões suficientes para não tomar as promessas da elite do partido Frelimo ao pé da letra. De facto, tudo o que Guebuza prometeu que ia combater – da corrupção à pobreza – multiplicou-se quatro ou cinco vezes mais do que o que se fazia antes da declaração do combate. Portanto, a promessa de consolidar o Estado de direito democrático pode querer dizer que não se irá fazer nada para melhorar as instituições democráticas. Que tudo quanto se fará é precisamente o contrário.
                                                                                                                                                         Alfredo Manhiça

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