Por Viriato Caetano Dias
“Um homem pode viajar para Roma ou Jerusalém, mas transporta no seu coração os valores da sua pátria: o mesmo acontece comigo.” Paulo Coelho, escritor brasileiro.
Seria injusto que depois de algum tempo na “estrada literária” não dedicasse uma reflexão em torno da minha terra, Tete. Os “mizimos” (espíritos dos antepassados) que velam pelas almas dos filhos da terra, não me teriam perdoado por um eventual esquecimento, ou por uma suposta falha de memória. Nem com o habitual e tradicional sacrifício de entrega de um “mbuzi” (cabrito) bode e de cor preta aos “espíritos veladores”, fosse qual fosse a defesa, a minha “pena” não teria sido suspensa. Teria sido condenado de qualquer forma!
Muitos antes de mim o fizeram – se calhar com a mesma pretensão, ou talvez não, admirados pelo seu encanto natural, atribuíram-lhe (a Tete) características ímpares na nossa bela e densa pátria amada – Moçambique. O Dr. David Aloni foi um deles. Chamou-lhe no seu livro “CENTELHAS, Tópicos para uma Reflexão” de “terra dos mistérios.” Com uma capital – estou a citar o Dr. Aloni – que não deixa de ser a única e legítima princesa do grande Zambeze, com a sua portentosa e artística ponte a ligar Matundo com a vetusta cidade. A velha e histórica cidade de Tete goza de um tão raro privilegio de estar situada mesmo nas barbas de uma das mais raras maravilhas de obras de engenharia – a Hidroeléctrica de Cahora-Bassa.
Não só tem Tete a barragem de Cahora-Bassa, como também possui o grande Zambeze, as minas de carvão de Moatize, a rica fauna, a sua poderosíssima cultura (a dança “Nhau”, por exemplo, foi classificada pela UNESCO património imaterial da humanidade), a sua riquíssima história a que se junta a do país em geral, a sua temperatura de fazer inveja a qualquer um. É, no fundo, um ponto nefrálgico do turismo nacional e, sobretudo, para quem por recomendações médicas necessita de descanso e de paz. Mas atenção: a maior riqueza de Tete (modesta à parte), não é a Hidroeléctrica de Cahora-Bassa, nem as minas de carvão de Moatize. A maior riqueza que Tete possui é, sem sombra de dúvida, a generosidade do seu povo. O povo nyungwe é um povo de uma bondade invulgar, imbatível, anti-raça. Convive com todos os outros povos com alto sentido de irmandade, porque é um povo de extrema bondade, como diria o falecido artista plástico português, António Charruas “que na vida podemos combater tudo, menos a bondade de um povo.” A bondade de um povo (enfatiza o mestre Charruas) nunca falece. Um povo assim (digo eu) está condenado ao progresso.
Foi justamente a generosidade do povo “nyungwe”que mobilizou os guerrilheiros da FRELIMO na grande marcha sobre o Zambeze rumo à Independência Nacional, com a célebre canção “tiende pamodzi nantima umodzi, tiambukhe Zambeze nantima umodzi” o que quer dizer, numa tradução livre “todos juntos e com um só coração atravessemos o Zambeze.” Era proibido um soldado não saber cantar as letras desta canção. O povo, mui sabedor, fazia-lhes o coro tal e qual as “batidas” do ritmo musical do saudoso Thazi ou de Eugénio Mucável (já falecidos). E vemos! A música (penso eu) tem um duplo sentido, primeiro funciona como uma espécie de bálsamo para espantar os “maus espíritos” e, segundo, serve também de “musealização” das nossas emoções, sejam ela de alegria ou de tristeza.
Das “escavações” feitas à memória dos anciãos da terra, não há um único comício em que Samora Machel não tivesse entoado com o povo esta canção. Era uma espécie de segundo Hino-Nacional. Talvez venha daí a alegoria – para aqueles que acreditam em representações fantasiosas, tal como eu – não foi Machel à Mbuzine sem antes despedir-se do seu povo em Tete. Foi a última visita que um Chefe de Estado fez à uma província do país. Por isso mesmo que ainda hoje os ensinamentos de Samora Machel no que toca aos valores da pátria estão acima de qualquer interesse pessoal do povo nyungwe. E o povo nyungwe não costuma desfazer pactos!
Conta Arune Valy nas suas habituais crónicas radiofónicas, que a Província de Tete para além de abundante em “crocodilos misteriosos”, as águas do grande Zambeze também purificam às almas do seu povo e dos seus visitantes de eventuais “espíritos maus.” Diz-se que quem beber daquela água é quase certo que para lá voltará. Daí que se acredita, também, que os mortos um dia voltarão à escalar Tete. São mitos que valem a pena ter em conta, afinal a História não é senão a sucessão de mitos.
As poucas notícias de que disponho sobre Tete apontam para um desenvolvimento franco e assinalável, não obstante algumas situações de “primitivismo” de que falarei mais adiante. As minhas fontes falam na existência de mais escolas (no meu tempo, em 1990, haviam pouquíssimas), falam de mais unidades sanitárias, falam ainda da entrada em breve do funcionamento do carvão de Moatize, da construção de uma segunda ponte (já está em curso a reabilitação da ponte Samora Machel), da energia eléctrica que já chega em quase todos os distritos da província, da reabilitação de estradas e pontes, e de outras infra-estruturas, como bancos, casas de comércio, hotéis. É claro que não me esqueci do comboio que em breve voltará a apitar nas linhas-férreas de Tete. Às vezes é preciso despir às rivalidades políticas e saber dizer “tatenda” (obrigado) Governo de Moçambique por estas e outras iniciativas boas”. Falta ainda fazer mais, de resto, a verdade seja dita, a obra de nenhum governo é completa!
Tal como reza o adágio popular “não há bela sem senão”, Tete não foge à regra. À semelhança de outras províncias do país, Tete está refém de um certo primitivismo mental de alguns dos seus dirigentes. Enquanto o Governo não “mandar” para a reforma às ferramentas do passado, o país estará condenado a perder as batalhas do presente. Temos o exemplo muito claro do Vale de Zambeze cujo timoneiro é, por sinal, um tetense. Lá diz o velho ditado: “santos de casa não fazem milagres”. Pois é, não fazem. O Coronel e ancião Sérgio Vieira está a ver estrelas em tempo de chuva, num projecto que era suposto dinamizar a economia nacional em todas a sua plenitude. É mais um daqueles projectos criados para “o inglês ver”, “português dançar” e o “moçambicano bater palmas” como sóis dizer-se!
É também sabido que Tete é (pelo menos até ontem) o maior criador de gado bovino e caprino do país, daí o refrão popular “Há mais cabritos em Tete do que pessoas” mas, mesmo assim, o seu povo não come queijo, não toma leite e ainda por cima, têm uma dieta alimentar das mais péssimas em todo o país segundo dados não oficiosos disponíveis na Internet. Nem sequer há industria de transformação de matéria prima, a partir de peles de animais para o fabrico do calçado e outros derivados. A única que havia faliu há mais de 10 anos! O que é que se passa afinal? Será que o empresariado tetense foi mordido pela mosca tsé-tsé?
A outra área de interesse local seria a cerâmica. Os tetenses já não constroem casas com recurso à tijolo convencional (é mais barato, seguro e consciente). No pico das hecatombes naturais que assolou a Província de Tete nas décadas de 80 e 90, a Cerâmica sempre foi uma das principais fonte de sobrevivência das famílias e de receitas local. A Cerâmica era o nosso petróleo. Tudo isto ficou para as gavetas da História, esquecido ou ignorado!
Parafraseando o Professor José Hermano Saraiva, a CERÂMICA não é senão barro amassado em talento. Ora, em [Tete] não falta nem barro nem talento, muito menos água. O que falta é o espírito organizado, empresarial que ponham estes valores a render o quanto valem.
Com tantas saudades assim, só posso lá voltar!
Zicomo Kwambiri (muito obrigado)
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