quinta-feira, março 13, 2014

Os mitos da industrialização em África (entrevista completa)

Os investidores não são atraídos por causa dos riscos no continente negro. Segundo Carlos Lopes, da Comissão Económica para África da ONU, esta é apenas uma das várias falácias sobre a industrialização africana.

O secretário executivo da Comissão Económica para África das Nações Unidas (UNECA, na sigla em inglês), Carlos Lopes, questiona alguns mitos em torno da industrialização no continente. Para o estudioso da aérea de desenvolvimento, um dos principais equívocos, por exemplo, é entender a industrialização como uma palavra da moda, uma vez que se trata realmente de um modo de desenvolvimento estrutural, levado cada vez mais a sério pelos Estados africanos.

Entre as falácias acerca do assunto, está a crença de que só a industrialização precisa ser desenvolvida, que os países falharam na década de 60, que o crescimento económico levará à criação de empregos ou que os investidores não são atraídos devido aos riscos em África. Em entrevista à DW África, Carlos Lopes explica algumas questões centrais da economia africana.

Como é que a industrialização nos países africanos pode levar a uma transformação estrutural destes Estados?

Eu penso que já exista um consenso por parte das lideranças africanas sobre a necessidade de transformação. O importante é definir o que a gente entende por transformação. Na realidade é mudar a composição da economia, do Produto Nacional Bruto (PNB) de um país e nós dizemos que a parte da indústria é mais importante nesta transformação por uma razão muito simples. É aquela que é mais intensiva em mão de obra e, portanto, poder criar mais empregos. O crescimento africano é muito bom, mas se não criarmos empregos não é sustentável. E, por isso, nós achamos que desta vez sim as pessoas estão interessadas na industrialização, mas porque estão interessadas na criação de empregos.

Como é possível que os países africanos usem os recursos naturais como base de transformação industrial, tendo em conta que estes países recebem uma pequena percentagem em royalties das empresas que exploram tais riquezas?

Até agora a forma como os recursos naturais em África são utilizados na maior parte dos casos é sem transformação. Ou seja, é um modelo que já vem do tempo colonial onde se extrai o produto, sobretudo minerais. Na pesca acontece a mesma coisa, muitas vezes também na área agrícola. Leva-se tudo a um porto e exporta-se sem transformação, sem processar. Por exemplo, o cacau não se processa absolutamente nada em África.
O que estamos a dizer é que esta é uma forma de exportar emprego porque toda a cadeia de valor que permite a criação de emprego para além do valor residual da matéria prima bruta deixa de estar ao alcance dos países africanos. Por exemplo, na cadeia do café os grãos custam cerca de 5% do total do valor do café quando é vendido. Portanto, 95% é processado fora da África. Se pegarmos, por exemplo, um minério como o coltan, que é utilizado para a telefonia celular e todos os gadgets eletrónicos, nós vemos que os grandes lucros estão no processamento industrial que se faz destes produtos e não na exportação bruta que se faz a partir da África.
Portanto, se nós não impusermos a partir da África, que todas aquelas matérias onde a África tem um controle porque é o principal produtor mundial, que pelo menos uma parte da cadeia de valor tem que ser agregada no próprio continente, isso não vai acontecer. Ou seja, não é uma coisa de pedir e esperar que as empresas vão cumprir. Tem que ser através de políticas, de regulações que vão obrigar que isto aconteça.

Afirma que a industrialização é a chave do desenvolvimento, mas também é preciso coesão social e menos desigualdades. Como ´é que os países africanos podem alcançar esses objetivos?

Neste momento os países africanos têm muitas desigualdades porque o modelo que existe é de utilizar as matérias primas, extrair através de royalties ou através de renda um valor que fica junto das elites e que não passa por uma cadeia de processamento, seja industrial, seja de outro tipo da economia do próprio país. Digamos que é um modelo equivalente ao offshore, ou seja, o petróleo pode sair diretamente do mar e ser exportado sem passar por nenhum processo económico dentro do país. Isto é uma coisa que cria muita desigualdade.

Para podermos reverter esta realidade, precisamos fazer com que as políticas económicas dos países africanos sejam voltadas para o processamento da cadeia de valor. Então, vamos necessitar que a maior parte deste valor do produto seja distribuída por mais gente através da criação de emprego, através digamos da geração de uma política mais coesa, baseada na industrialização.
Mas estamos também a defender a industrialização por uma outra razão. É porque nesse momento tecnológico que existe, África está muito bem posicionada para poder argumentar que a transformação dos seus produtos no próprio continente reduz a emissão considerável de CO2 e ainda por cima pode ter vantagem utilizar os recursos energéticos renováveis do continente, que são os mais vastos do mundo, para poder fazer uma energia limpa e, portanto, fazer com que esta industrialização seja baseada em contribuições para as mudanças climáticas e seja também baseada em uma economia verde. Portanto existem aqui muitas vantagens que não são só para os africanos, mas também para o mundo.

Também comenta que o modelo de substituição de importações da década de 60 resultou num certo progresso, apesar das limitações. Que modelo de desenvolvimento alternativo aos anteriores considera ideal para o continente hoje?

África tem a vantagem de chegar à industrialização numa altura em que o desenvolvimento tecnológico já entrou na era digital, portanto, é completamente diferente a forma como se agrega valor daquela que foi utilizada durante o período de substituição de importações. Naquele tempo, em que se fez a substituição de importações, os produtos tinham a marca de um país, feito em país tal, made in qualquer coisa.
Hoje em dia não existe praticamente nenhum produto de alto valor acrescentado que seja originado de um país. A cadeia de valor foi globalizada. E, portanto, África vai ter que ter um modelo totalmente diferente daquilo que foi utilizado na América Latina. E também daquilo que foi utilizado na Ásia, em vez da substituição de importações, a orientação para exportação, ou seja, produzir para os mercados externos.
África precisa produzir muito para o seu próprio mercado porque vai ter um aumento brutal da sua classe média, vai ter a maior força de trabalho a partir de 2040 e vai precisar produzir também para si. Ou seja, o modelo de industrialização da África tem que ser baseado em uma revolução tecnológica diferente, tem que ser baseado na economia verde e nas vantagens que isso possa trazer para as mudanças climáticas e tem que ter em conta o próprio mercado interno africano.

E acredita que esta industrialização possa ser sustentável?

Pode e vai ser sustentável porque a África conseguiu duplicar o seu PNB em cerca de dez anos. Portanto, existem condições para se poder esperar que é o motor da economia africana - porque quase dois terços do crescimento vêm da demanda, da procura interna - e esse motor vai se esflorar por causa da curva demográfica, mas também porque cada vez mais África vai ter uma demanda de coisas que ela é a única que pode oferecer.
Por exemplo, a população mundial vai crescer de sete para nove mil de pessoas e, portanto, esses dois milhões que vão aumentar precisam ser alimentados, os sete que já existem precisam ser melhor alimentados e só existem algumas zonas do globo que têm reservas de terras aráveis não utilizadas.
África tem 60% dessas reservas. Este é um exemplo. Outro exemplo é que existem sete minérios que vão ser fundamentais por causa da digitalização e das novas formas de utilização da tecnologia e a África tem o maior repositório da maior parte dessas matérias. Portanto, existem elementos para pensar que a África tem de facto condições para que este processo seja sustentável, tanto mais que seu problema e déficit mais importante é o da energia e ela tem em termos de energia renovável o maior potencial do mundo.

Por que motivo as economias africanas que mais crescem têm os maiores índices de desemprego?

Em primeiro lugar é preciso dizer que quando fazemos a medição do desemprego, está provado que as teorias várias em termos de discussão de estatística sobre emprego não se aplicam a muitas das realidades africanas. Ou seja, não existe no aparelho estatístico africano que possa responder com precisão quais são as verdadeiras taxas de desemprego. O que temos são projeções e aproximações.
Dito isto, visto a olho nu que existe um problema de desemprego entre os jovens na maioria dos países africanos, inclusive nas economias mais modernas. Isto tem a ver com três fatores.

O primeiro é a curva demográfica. Não importa quantos empregos nós criamos no continente ou em cada país, interessa é saber qual a relação desse número de empregos em relação a todos aqueles que estão a chegar no mercado de trabalho. Portanto, mesmo criando novos empregos, a situação demográfica não é estática e está em evolução. África tem o maior crescimento da população e, portanto, todos os esforços podem ser difíceis de ver.
O segundo fator é que a maior parte do emprego que existe em África é informal, portanto, não é um emprego que é remunerado e passe pelos mecanismos formais da economia, isto também gera distorções muito grandes porque a maioria das pessoas tem mais uma atividade do que um emprego e tem uma sobrevivência mais do que um salário.
E o terceiro fator que explica a desigualdade é o facto de que todos os países quando começam sobre um processo de crescimento mais rápido passam por uma fase de grande desigualdade porque é uma forma também de poder criar um capital que vai permitir os grandes investimentos nomeadamente de infra-estrutura, bancos, sistemas financeiros e etc. Portanto, África não é nesse sentido especial, ela está a seguir o percurso que os outros já seguiram.

Por que é que os investimentos no continente não são tão arriscados como parecem?

Porque na realidade, quando comparamos quais são as precessões de risco que influenciam os investidores, vemos que a maior parte dessas precessões, quando aplicadas à África, não são muito diferentes de outras partes do mundo, mas por alguma razão África tem uma espécie de estigma.
Na realidade temos que combater uma precessão do risco africano em relação à sua realidade, nomeadamente em relação aos seus dados macroeconómicos, como inflação abaixo de 6%, com uma dívida pública em média mais baixa que toda Europa, com as reservas num nível histórico, nunca antes atingido. Tmos alguns indicadores, para além do próprio crescimento de 6% ao ano no continente, que indicam sim, o risco existe, mas tem que ser contrabalanceado com esta realidade.


Fonte: Deutche Welle - 12.03.2014

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