AS eleições autárquicas, a terem lugar em Outubro próximo no país, constituem o grande desafio político, sobretudo para os três maiores partidos, nomeadamente Frelimo, Renamo e Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
Esta convicção foi manifestada pelo jurista e político Carlos Jeque, numa entrevista concedida ao “Notícias”, na qual, para além dos desafios políticos do presente ano, faz uma resenha daquilo que foram os acontecimentos que marcaram o ano 2012.
Sobre as acções que marcaram o ano passado Carlos Jeque não tem dúvidas que foi a realização do X Congresso da Frelimo que, segundo ele, criou uma nova correlação de forças internas, com o presidente do partido, Armando Guebuza, a consolidar o seu poder no seio do partido; e a realização do primeiro congresso do MDM que, referiu, veio confirmar a percepção de que se trata da terceira maior força política nacional, cujos dirigentes sabem o que querem e onde pretendem chegar. De seguida acompanhe os extractos mais significativos da referida entrevista:
NOTÍCIAS (NOT) – Terminou há poucos dias o ano de 2012, durante o qual o país registou vários acontecimentos. Na sua opinião e em termos políticos, quais foram os mais marcantes?
CARLOS JEQUE (C.J.) - A realização do X Congresso da Frelimo em Setembro, na cidade de Pemba, foi o acontecimento mais importante, politicamente. Neste congresso se viu, uma vez mais, a capacidade de organização das bases para o sentido de voto desejado pelo seu líder. Trata-se de uma manipulação política (falando em ciência política) própria de um “animal político” que tem mostrado ser o Presidente Armando Guebuza. Neste congresso abriram-se feridas e outras foram mais aprofundadas. O que, no contexto actual, se exige do líder após as conquistas pelas quais se bateu é reagrupar os “camaradas”, com a mesma mestria com que se consagrou chefe incontestado da Frelimo, reagrupá-los dizia eu, para os ter à sua volta nos pleitos eleitorais que se avizinham. Quer nas eleições autárquicas de 2013 quer nas gerais de 2014 a Frelimo tem de estar unida para uma causa comum: manter-se no poder como força maioritária absolutamente. A desmotivação dos vencidos no congresso de Pemba, somada aos desencantados de sempre, por pensarem ter sido hostilizados e votados ao ostracismo, mais os desencantados militantes e simpatizantes que nunca viram os seus interesses sociais, económicos e políticos realizados são força suficiente para levar a Frelimo para a oposição ou vir a perder uma parte significativa dos municípios bem como a vir perder a maioria parlamentar em 2014. Trata-se meramente do meu ponto de vista.
NOT – Por falar em congressos, também se realizou a primeira reunião magna do Movimento Democrático de Moçambique (MDM).
C.J. - Este congresso veio mostrar a firme determinação do MDM de ser considerada a terceira força política no país. O MDM mostrou também que vai por uma linha de discurso que se opõe aos dois ex-beligerantes; um discurso que pretende ser considerado o partido político que nada tem a ver com a guerra, portanto, um discurso não belicista e que pretende congregar os que estão descontentes quer com a Frelimo, quer com a Renamo e, eventualmente, os indecisos e os “sem partido”. Uma vez mais, após a realização da conferência constitutiva com sucesso o MDM se mostrou, na organização do seu I Congresso, como tendo dirigentes que sabem o que querem, para onde vão e o que pretendem alcançar.
NOT – Como avalia o trabalho levado a cabo pela Assembleia da República (AR) em 2012?
C.J. – A actividade da AR situou-se dentro da normalidade. Maior destaque se deve dar à discussão exaustiva do “pacote eleitoral”, e da Lei de Probidade Pública. Fica de fora a revisão do Código Penal que, segundo o meu ponto de vista, o anteprojecto deve ser reapreciado por juristas conceituados e multifacetados. Continuam a ser sempre as mesmas figuras que fazem a revisão da legislação moçambicana, o que é extremamente grave, pois resulta daí que na aplicação do Direito se vêm constatar ou lacunas ou expressões dúbias que dão azo a uma interpretação diferenciada e incongruente.
NOT – Exemplo disso é a Lei de Probidade Pública….
C.J. – Efectivamente, alguns círculos jurídicos procuram problematizar o conteúdo desta lei, levantando questões que, no meu ponto de vista, são absolutamente claras. Ela é para ser cumprida por todos. Julgo que esta lei constitui um auto-flagelo dos próprios deputados que o aprovaram. Na verdade, vem limitar a concessão de oportunidades a todos os cidadãos que podiam aumentar os seus rendimentos desempenhando outras funções remuneradas em instituições com capitais públicos. Esta lei vai obrigar a que, se for cumprida, a selecção para as administrações de empresas públicas ou com participações do Estado seja mais criteriosa. Por outro lado, poderá lançar a função de deputado para uma posição mais nobre e bem remunerada, porquanto para que os políticos exerçam as suas actividades de deputado de forma profissional e concentrada se deverá rever a sua tabela salarial e de incentivos com a maior urgência.
NOT – E como viu o trabalho do Governo, sobretudo as reformas introduzidas na sua actuação?
C.J. – As reformas que estão a ser implementadas não trarão nenhuma dinâmica na governação porque o estilo de administração dos ministérios é sempre o mesmo: raramente se vê um ministro que na sua instituição, e dentro das suas atribuições, se empenhe na resolução e concretização dos objectivos traçados. Quase todos governam, sempre, com o ouvido à escuta se o camarada presidente está gostando de mim ou não.
Dhlakama em Gorongosa
EM Outubro, precisamente no dia 17, o país é surpreendido com a decisão do presidente da Renamo, Afonso Dhlakama, de abandonar a cidade de Nampula, onde residia, para se fixar em Gorongosa, o que foi visto como uma atitude de ameaça à paz, muito embora o Dhlakama viesse a público reiterar o seu cometimento com a paz.
NOT – Que leitura faz desta decisão de Afonso Dhlakama?
C.J. - Esta sua movimentação acompanhada de declarações bombásticas, por ameaçar promover uma guerra de destabilização, teve como uma das consequências as conversações entre o Governo e a Renamo. Com receios de se retornar à guerra, o Governo aceitou conversar com a Renamo convicto de que desses encontros nada resultaria. Na verdade, embora o diálogo deva ser permanente, sobretudo entre o partido vencedor e o seu Governo com todos os partidos políticos, estas conversações vieram deixar à nu a falta de estratégia política da Renamo, que se acentua nesta fase. Dizer que ao longo dos anos Afonso Dhlakama foi perdendo credibilidade e discurso político consentâneo com a sua posição de líder mais destacado da oposição. Com o aproximar dos pleitos eleitorais em 2013 e 2014 tem ensaiado uma estratégia de fuga em frente, por um lado, como tentativa de impedir que as eleições se realizem e/ou, por outro, se apresentar sempre como vítima de fraude, desculpa essa que tenta convencer o mundo ser a razão de fundo de nunca ter sido declarado vencedor desde as primeiras eleições. Com esta acção Dhlakama também tenta mostrar ao mundo que ainda tem poderes de determinar o curso dos acontecimentos no país, arrastando o Governo para todo o lado onde quiser, mostrando que é um homem “temido” e “temível”. Assim, pensou que com esta estratégia ganharia pontos e quando fosse às eleições teria alguns ganhos que o permitissem manter-se como líder da oposição, porque dum lado é acossado pela Frelimo e do outro pelo MDM. Este, sobretudo, aparece como uma espinha atravessada na garganta do líder da Renamo porque os seus membros, maioritariamente, saíram das fileiras da própria Renamo.
NOT – Mas esta situação chama à atenção de todos para a existência, sempre, de diálogo entre os políticos…
C.J. – Sem dúvidas. Aliás, o Partido Frelimo e o Governo devem encarar estas matérias com as necessárias cautelas e uma tomada de posição firme em tempo útil. Parar a guerra é difícil mas criar destabilização é a coisa mais fácil e rápida. Deve se ter em atenção que a Renamo, não tendo nada a perder porque já tem a certeza de que dificilmente chegará ao poder ou o que também se deve considerar verdade que não vai ser Governo neste país, pode a todo o tempo inviabilizar a governação da Frelimo e eventual governo futuro liderado pelo MDM, criando uma força de intervenção espalhada por todo o país, do centro ao norte, cortar as passagens e queimar viaturas como já o fizera em tempos não muito distantes.
NOT – Como evitar este tipo de problemas?
C.J. – O aspecto tribal e regionalista que cada vez mais se acentua e é visível nos partidos políticos nacionais pode ser um trunfo para a partir do Save se dividir o país como sempre se afirmou e se deseja. A própria Frelimo não conseguiu ultrapassar este ponto fundamental para a estabilidade e integração nacional. Ao longo dos anos, quer durante a luta de libertação nacional, quer após a independência e até aos nosso dias a Frelimo anda à procura do equilíbrio regional nas decisões que toma. Falhou um aspecto importantíssimo, que era de se adoptar o critério de termos de referência para se ocupar um cargo, independentemente de ser desta ou daquela tribo/região. Convenhamos que não é fácil, pois muito fizeram os moçambicanos que estiveram nalLuta para manter a unidade de todas tribos que estavam integradas naquele grandioso projecto que é de libertar o país da dominação colonial. Oxalá que o sonho da Unidade Nacional não se desmorone.
MDM confortável no desafio autárquico
Para o nosso entrevistado, não há dúvidas que as eleições autárquicas deste ano constituem o principal desafio político em 2013. Contudo, sublinha que este sufrágio tem a particularidade de ser decisivo para a Frelimo e para a Renamo, enquanto o MDM vai para esta corrida numa situação confortável.
NOT – Este é um ano eleitoral. Um grande desafio para os políticos…
C.J. - Este pleito será um desafio muito grande para dois partidos: a Frelimo e a Renamo. O partido que está mais confortado é sem sombra de dúvidas o MDM, sob o meu ponto de vista, e, vejamos então a situação de cada um dos intervenientes: a Frelimo perdeu dois municípios importantes, logo no centro do país: Quelimane e Beira, zonas politicamente nevrálgicas. Não perdeu Inhambane porque se tratou de eleições por morte do presidente do Conselho Municipal e não por renúncia do edil como aconteceu nos outros municípios. O que poderia ter acontecido era ter-se também perdido este município. Em Cuamba a Maria Moreno esteve quase desamparada, pois era difícil ao MDM canalizar iguais apoios de Quelimane, estrategicamente o MDM concentrou-se no município de Quelimane e ganhou. Cuamba fica para 2013 e poderá ser um dos municípios a sair das mãos da Frelimo senão se cuidar. O Partido Frelimo desenhou algum plano para recuperar estes municípios ou continuarão nas mãos do seu opositor? Se não recuperar estes municípios que imagem pública dará a Frelimo, de fraco partido sem estrategas, sem capacidade de reacção? Mantendo-se estes nas mãos do MDM perderá mais alguns municípios a favor da Renamo ou do MDM? Não ponho em causa o desempenho dos edis da oposição, limito-me a fazer uma análise política tendo em conta que a Frelimo gozou de uma hegemonia e sempre apostou no comando integral e total quer dos municípios, quer de ter uma maioria absolutamente inequívoca na Assembleia da República.
NOT – E os desafios da Renamo?
C.J. - Este partido se quiser sobreviver politicamente terá que ganhar pelo menos um só município e, se possível, um dos mais visíveis do país. Terá desenhado alguma estratégia para concorrer em pé de igualdade com a Frelimo e MDM? Ou fará um acordo político com o MDM? Ou eventualmente com a Frelimo? (hipótese remota hoje mas que amanhã nunca se sabe). Contrariamente ao que se tem dito, hoje a Renamo vai perdendo as zonas rurais que se vão tornando indiferentes também às promessas dos políticos, apesar de estarem a ser “mexidas” pelas presidências abertas. O líder da “perdiz” tem uma missão espinhosa de salvar o seu partido e os comandantes que o acompanham nas terras de Gorongosa, porque ou se empenham na luta política democrática, tentando conquistar a simpatia dos autarcas ou, se não conseguirem inviabilizar o curso normal do processo democrático, nem terão espaço político para concorrer em 2014, o que seria extremamente grave para a democracia moçambicana. A Renamo faz falta no grupo dos partidos políticos moçambicanos. Tem um vasto campo de manobra mas que não tem sabido aproveitar.
NOT – E o MDM?
C.J. - Mais confortável está este partido. Realizou o seu primeiro congresso com sucesso, pese embora os poderes absolutos conferidos ao presidente do partido, que mais tarde ou mais cedo será uma das razões de discussão se algo não correr bem no seio do MDM. Estrategicamente apoiou a Frelimo na Assembleia da República quando sabia que nada tinha a perder, conquistando a simpatia política de todos os quadrantes e provocando irritação à Renamo e seus simpatizantes. Começa a dar a entender que pode vir a ser uma alternativa ao Governo porque está a tirar “fatias de bolo” dos dois lados: do lado da Frelimo e do lado da Renamo. Também anda à caça dos indecisos que os terá já nas autárquicas de 2013 até na grande capital Maputo e na Matola se os candidatos da Frelimo não forem fortes. A grande aposta será manter os dois municípios ganhos: Quelimane e Beira, o que não será difícil se a Frelimo não apresentar candidatos fortes, dinâmicos e congregadores de consenso a nível dos autarcas. Mantendo os dois municípios no seu Governo o MDM continuará a ganhar porque lançar-se com muita força em 2014 para tirar a maioria parlamentar da Frelimo ou, pelo menos, ter cerca de 40/50 deputados, o que não será difícil se a família não estiver unida.
Fonte: Jornal Notícias – 07.01.2013
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