Por Elísio Macamo
Bem, tanto mais que fiquei com vontade de escrever mais um texto longo sobre a greve da realidade e publicá-lo aqui para quem é suficientemente masoquista para ler. Os médicos moçambicanos decidiram fazer greve em reivendicação de melhor salário e melhores condições de trabalho. Os juristas já estão a discutir, e muito, da legalidade da greve. Os economistas vão discutir, e muito, da sustentabilidade financeira e económica deste tipo de reivindicações. Os filósofos podem também discutir os seus aspectos éticos. Os políticos vão convocar a figura do patriotismo, ou da resistência, também para dar inteligibilidade à greve. Os estatísticos vão discutir os níveis de adesão... E os sociólogos? Também podem entrar na contenda olhando para o que se passa com a realidade.
É que independentemente da legalidade ou não da acção, da justiça ou não das reivindicações, da instrumentalização ou não dos médicos, existem aspectos positivos que nos deviam inspirar um certo optimismo. Pela primeira vez no nosso país, uma classe profissional de peso entra em rebelião aberta contra o poder. Isto parece-me novo e significativo. A greve é mesmo uma greve. Não se trata das linhas de piquete e orgias de violência que caracterizam os tumultos que conhecemos do aumento do preço do “chapa”. Temos aqui um verdadeiro grupo da sociedade civil – e não esses da chamada “advocacia” que não foram eleitos pelas “populações alvo” que eles dizem representar – a reivindicar coisas em nome dos seus membros. Isto é exercício de cidadania, o tipo de cidadania que o nosso país precisa para consolidar a sua democracia e moderar os excessos duma democracia de partido único que muitas vezes são erroneamente considerados como sendo a arrogância natural da Frelimo.
A julgar pelo tipo de reivindicações que os médicos fazem até podemos dizer que eles – à semelhança de alguma “sociedade civil” que comercializa os problemas sociais do país no exterior para benefício próprio – são também sintomáticos dum modelo nacional de consumo baseado numa cultura política que promove uma vida de privilégios, benefícios materiais e regalias à custa dum Estado que não produz a riqueza que isso requer. Os salários e condições exigidos são provavelmente justos (conforme tem enfatizado o Amosse Macamo), mas estão a ser exigidos a um Estado que, tarde ou cedo, corre o risco de se desmorronar sob o peso de encargos muito para além das suas próprias possibilidades. Mesmo quando dizem, provavelmente com razão, que querem ser pagos como outros no aparelho do Estado os médicos mais não estão a fazer do que exigir algo praticamente insustentável. Se a moda pegar, e tudo indica que ela vai pegar, todos vamos nos afogar nas mesmas águas.
Na verdade, a situação não é muito diferente do que acontece na “sociedade civil”, onde o emprego de centenas de pessoas não depende de fundos próprios das organizações, mas sim da expectativa de apoios de fora. Enquanto os dividendos da explosão de recursos não jorram, Moçambique não se encontra na mesma situação de Angola que se pode permitir resolver este tipo de conflitos sociais através da neo-patrimonialização do Estado. É justamente neste sentido que a greve dos médicos pode ser lida como uma oportunidade. Precisamente porque essa via está vedada ao nosso país, o Estado ver-se-á – ou devia ver-se – cada vez mais obrigado a encontrar formas de acomodação que, para serem sustentáveis, terão de assentar num reajustamento da cultura política para que ela esteja em sintonia com o que são as verdadeiras possibilidades do país.
Isto não será automático. Na verdade, vai precisar dum pensamento estratégico e de muita coragem política. O pensamento estratégico terá que rever, de novo, as atribuições do Estado, o que implica ser mais sério ainda na emancipação da sociedade moçambicana. Até hoje é ainda forte a ideia de que o Estado deve resolver todos os problemas do povo. É uma ideia que promove uma cultura política insustentável; e o tipo de reivindicações feitas pelos médicos enquadra-se, lamentavelmente, dentro dessa cultura. Em várias ocasiões o Chefe do Estado tem dado sinais de pensar neste sentido – e muitas vezes é injustamente ridicularizado por uma esfera pública obcecada com a ideia de que quando um governante diz que as pessoas têm que trabalhar e deixarem de ser pedintes é porque quer “comer sozinho” – mas não parece ter uma estratégia clara sobre como pôr isso em prática. Esta ideia pode também estar por detrás duma certa concepção absolutista do poder que encoraja os actores políticos – do partido no poder e da oposição – a apenas se sentirem politicamente realizados quando controlam tudo e todos, quando a política é um jogo da soma zero.
Só que mudar essa ideia é importante, pois as possibilidades do país não dão para mais. O Estado tem que recuar muito e assumir cada vez mais o papel de instância que cria condições para que cada qual (indivíduos, grupos, etc.) resolva os seus problemas ao mesmo tempo que aprende apenas a exigir do Estado essas condições (e não o dinheiro para satisfazer este modelo de consumo nefasto que se instalou no país). Não é neo-liberalismo. É pragmatismo. O Estado precisa também dum outro perfil de governante, isto é dum governante que não assume funções para ir executar ordens, mas sim que as assume porque tem um plano que quer pôr em prática e negoceia com quem o nomeia as condições que ele precisa de ter para lograr os seus objectivos e, se não as tiver, tem coluna vertebral suficientemente forte para declinar o convinte.
Pode ser que esteja a exagerar a importância política desta greve e que ela seja na verdade, e para pedir emprestada uma expressão do Francisco Noa, simplesmente “fogo fátuo”. Mas na vida como em política há males que vêm por bem. E tensões sociais que resultam da vontade e capacidade dum grupo social de afirmar os seus direitos – por muito problemáticos que sejam – são males que podem vir por bem num país onde o compromisso político tem a tendência de virar conluio. Há um aspecto analítico que a nossa esfera tem descurado criminosamente. O nosso país é o que é em razão dum conjunto de condições estruturais que, em princípio, têm potencial suficiente para fazer descarrilar qualquer projecto bem intencionado de “resolver os problemas do povo”. São estas condições, mais do que a mentalidade das pessoas com o mandato do povo, que precisam de ser avaliadas com cuidado. Curiosamente, o remédio contra os males dessas condições são outras condições que, desta feita, terão de resultar duma maior consciência cívica.
Não é o Ministro da Saúde que é desleixado no hospital; são alguns médicos, enfermeiros e serventes. E os utentes que aceitam isso. Não é o Ministro do Interior que não respeita o cidadão; são muitos agentes policiais. E os cidadãos que deixam que isso aconteça. Não é a Ministra da Justiça que não tem brio profissional; são alguns procuradores, juízes e escrivões. E os queixosos que entram em esquemas. Não é o Presidente que quer tudo para si; é quase toda a função pública, todos os deputados, todos nós que só nos sentimos realizados quando temos subsídio de telefone, combustível, arrendamento, ajudas de custo para viagens supérfluas e... passaporte diplomático, à custa dum Estado que, pelo menos por enquanto, ainda não está a produzir a riqueza que sustentaria isso.
Despendemos muita energia na construção duma teia de relações, negociatas, conluios e produção de inimigos e amigos fictícios que se transformam na nossa verdadeira razão de ser disfarçada com vénias dirigidas ao combate contra a pobreza, luta pelos direitos humanos, defesa do meio ambiente e, entre muitas outras coisas, “salário condigno” para quem estudou muito tempo e trabalha no duro (provávelmente há entre os médicos em greve alguns que foram bolseiros e, portanto, formaram-se basicamente a custo zero dentro dum sistema público de ensino superior que constitui um dos exemplos mais gritantes deste modelo de consumo: mesmo em países mais ricos do que Moçambique não se paga a ninharia que a UEM cobra pelos seus cursos e pelo sustento de estudantes; e lá nesses países ricos quem recebe bolsa do Estado tem depois que a devolver assim que começar a trabalhar). Portanto, é muito pugilismo de sombra para disfarçar uma cultura generalizada de oportunismo baseada num modelo insustentável de consumo. Para os sociólogos entre os leitores: estou a usar a noção de “simulacro” empregue pelo sociólogo francês Jean Baudrillard em referência à representação fiel de algo que não existe para dizer que o Moçambique dos nossos debates e da nossa acção deixou há muito de ser o Moçambique real para ser apenas um artefacto da nossa conversa. O simulacro não esconde a realidade; a realidade dissimula apenas a sua inexistência.
A greve dos médicos pode ser a greve da realidade que nos alerta para os limites deste modelo insustentável. A realidade clama por maior pragmatismo, maior sentido estratégico e maior emancipação da sociedade. Não vai ser o Estado a tornar isso possível. Vai ser um maior sentido de cidadania como o que anima os médicos, justa ou injustamente, a definirem abertamente a sua relação com Moçambique pela via dos seus próprios interesses, por muito desajustados que sejam. Quem reclama assim tão alto convida a sociedade a também exigir mais dele. O desleixo e a irresponsabilidade de alguns destes profissionais vai incomodar mais ainda (como observou Egídio Vaz Raposo a propósito do erro médico), pois a acontecer não será por arranjos neo-patrimoniais longe do olhar do público como é costume e hábito entre nós, mas à vista de todos.
Eu acho que há algumas coisas boas nesta greve.
Fonte: mural de Elísio Macamo - 10.01.2013
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