Por Elísio Macamo*
A pobreza está na ordem do dia. Não passa nenhum dia em que ela não seja tema de discurso político, de conversa de bar e de circunstância. O interessante nisto é que nem sempre são os pobres que falam da sua pobreza. Os pobres raramente falam da sua pobreza de tão ocupados que estão a tentar resolver os problemas da sua existência.
Quem fala de pobreza é, por regra, quem está bem. É possível que esteja a exagerar neste vaticínio, mas a intenção vai expor o caso para a minha absolvição. Não há nada mais humilhante na condição do pobre do que gente com compaixão (ou não) que pensa que a sua melhor sorte lhe confere o direito de dizer ao pobre o que deve fazer para sair dessa situação. Essa gente nunca contempla a possibilidade de estar enganada.
É sobre este problema que gostaria de dissertar nesta curta série de reflexão sobre os desafios que nos são colocados pelos planos do Governo de fazer mais uma reforma constitucional. Há uma grande distância que separa a pobreza da Constituição. Contudo, se partirmos do princípio de que a nossa constituição expõe o nosso sentido moral e que esse sentido moral não se sente à vontade com a pobreza, então podemos ver uma pequena relação que vale à pena explorar um bocado mais neste exercício de reflexão. A abordagem não é convencional, admito. Mas vale à pena tentar. Vale à pena partir do mais básico para o mais elaborado. E o mais básico é, para mim, o lugar do erro na organização das coisas da nossa vida. E a relação entre o pobre e aquele que pensa que não é pobre diz muito sobre isso.
Interessa-me, sobretudo, a atitude do que pensa não ser pobre. Com efeito, essa atitude é enformada por um conjunto de convicções que podem ser encontradas reunidas em mais ou menor escala. Uma dessas convicções consiste na ideia de que ser pobre ou rico é a maneira que a natureza ou a sociedade encontraram de punir ou premiar as pessoas. Nessa ideia encaixam várias formas de explicar a pobreza ou riqueza com recurso à desigualdade, à imoralidade dos governantes, à ira dos deuses, à fraqueza moral dos indivíduos e por aí fora. No nosso país fazemos recurso a cada uma destas formas dependendo da orientação normativa e política individual. A outra convicção consiste na ideia de que quem não é pobre tem todo o direito de dizer ao pobre o que fazer para deixar de ser pobre. Esta ideia, por sua vez, ganha a sua coerência na crença numa suposta justiça natural. Ou por outra, parte-se do princípio de que a justiça é uma propriedade do mundo e não da nossa moral. Peço ao leitor para parar de ler por alguns instantes e reflectir na quantidade de erros (e equívocos) contidos nestas suposições todas. Imagine agora um sistema político construído em torno dum desses equívocos e o mal que ele é capaz de causar.
Está tudo ainda abstracto, mas espero que crie apetite para mais. Quero reflectir sobre o que a reforma da constituição poderia significar a partir destas notas soltas para contribuir, à minha maneira, para uma comunidade política mais racional ainda. O ponto central da minha contribuição vai consistir numa espécie de apelo à consideração do erro como aspecto fulcral de todo o exercício de reforma da constituição. À medida que formos andando, vou explicar o que quero dizer. É suficiente dizer, por enquanto, que o aspecto mais atraente de sistemas políticos robustos é a capacidade que têm revelado de corrigir erros. A nossa primeira constituição não tinha esta capacidade, razão pela qual o sistema político do período imediatamente a seguir à independência se revelou pouco robusto. Era uma constituição quase que escatológica, isto é que resolvia todos os problemas do mundo duma assentada e para toda a eternidade. Não contemplou a possibilidade de se fundar em equívocos.
Alguns leitores vão achar, com razão, que uma reflexão sobre a reforma constitucional se debruçasse mais sobre aspectos mecânicos como, por exemplo, a lei eleitoral, as instituições centrais do Estado, mandatos presidenciais, etc. Concordo. Todavia, tenho em mim também que uma reforma mecânica não é exactamente o que o país precisa agora. O país precisa duma reflexão séria sobre o tipo de comunidade política que gostaríamos de ser (ou podemos ser, dadas as nossas circunstâncias históricas). Essa reflexão, infelizmente, não está ainda a acontecer. A composição da comissão que vai dirigir o processo também não inspira confiança na possibilidade de essa reflexão de facto acontecer. Não está em causa a experiência política e o compromisso patriótico dos membros dessa comissão. Não obstante, nenhum deles, tanto quanto eu saiba, se notabilizou por uma preocupação particularmente interessante com problemas constitucionais, sobretudo de fundo e teor académico como são discutidas em filosofia do direito e muito para além da citação de obras coloniais portuguesas poeirentas. E isso conta se a gente quer fazer as coisas de forma séria. Antes mesmo de a comissão fazer qualquer proposta que fosse seria bom ouvir de cada um dos seus membros que ideia de Estado tem e que tipo de comunidade política melhor reflectiria essa ideia. É o mínimo que devíamos exigir de nós mesmos para abordarmos problemas importantes do país.
*Elísio Macamo - Sociólogo
Fonte: Jornal Notícias - 08.11.2011
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