Por Elísio Macamo*
Comecei e terminei o primeiro artigo da série com ideias muito confusas. Receio que elas não fiquem mais claras aqui. Vou deixar, contudo, algumas pistas que vão pelo menos mostrar os trilhos que pretendo percorrer. Comecei o texto anterior com uma referência à ideia segundo a qual quem não é pobre teria o direito de dizer ao pobre o que fazer. Isto aplica-se às relações entre os estados. Com efeito, partimos do princípio de que quem está bem economicamente hoje pode dizer a quem não está bem como fazer as coisas.
Ainda recentemente numa discussão pública com os directores da cooperação suíça e da cooperação brasileira apelava ao brasileiro para não cair no erro de pensar que o sucesso económico brasileiro actual conferiria ao seu país o direito de andar a dizer aos africanos o que fazer para terem sucesso como o Brasil. As narrativas tradicionais de sucesso no desenvolvimento são incompatíveis com o milagre brasileiro, para já nem falar do chinês ou indiano.
E isto é importante por uma razão fundamental: as receitas que temos recebido sobre o que devemos fazer para sermos como eles (os outros) partem da ideia de um mundo dentro do qual todos os factores pertinentes estão sob controlo. Ou por outra, pressupõe-se um mundo constante que não muda e permite a réplica de repertórios de acção e práticas. É claro que o mundo real não tem nada a ver com esta ficção. É um pouco anacrónico, reconheço, mas, como dizia Marx, alguns erros aparecem pela primeira vez como tragédia e pela segunda vez como farsa. Repetir o desenvolvimento tem sido, por enquanto, uma grande farsa.
Um factor extremamente importante é a gestão central de relações sociais. A sociologia política diz-nos que isto é feito, tradicionalmente, pelo estado que, no contexto de uma democracia representativa, fá-lo em nome da sociedade. Ora, justamente este aspecto mudou muito nos últimos tempos. A noção de “governança” capta muito bem a mudança. Hoje o estado não é mais a instância central de regulação social. Hoje mais do que nunca são os interesses organizados (empresas, organismos internacionais, ONGs, etc.) que conduzem os destinos políticos. Ao estado sobrou apenas o papel de motorista sem grande autonomia, estilo marido (ou esposa) que conduz sob as instruções irritantes da esposa (ou marido) no banco ao lado. Com isto não quero apenas lamentar o assalto à soberania que isto representa. Quero também problematizar uma ideia útil à reflexão sobre como organizar uma comunidade política moderna cujos efeitos (dessa ideia útil) têm sido algo nocivos na reflexão sobre o que acontece connosco a nível político.
Refiro-me à ideia de democracia liberal tal e qual é pensada hoje, mas não praticada, no contexto do desenvolvimento. Há tradições diferentes do exercício da democracia liberal nos países onde esse é o caso. A Alemanha é tão diferente do Reino Unido quanto os Estados Unidos são da França. O respeito pela dignidade humana consubstanciado na filosofia liberal pela defesa e promoção da liberdade e igualdade como direitos – pressupondo, portanto, um estado de direito – não encontra a mesma expressão nestes países. O sucesso económico destes países como um todo levou muito boa gente a pensar que houvesse uma relação intrínseca entre democracia liberal e desenvolvimento. A China está a mostrar que as coisas não são bem assim, aliás, o milagre económico dos tigres asiáticos já tinha mostrado isso, incluindo pontos de interrogação sobre a incompatibilidade da corrupção com o desenvolvimento. Mas isso é outra história, como sempre.
A nossa referência de sistema político ideal não tem contraparte empírica. Quando falamos de um Estado liberal democrático com afinidade com o desenvolvimento temos em mente um Estado efémero que existiu na Europa ocidental nos trinta anos que se seguiram ao fim da Segunda Grande Guerra Europeia, aquilo que os franceses chamavam de “trinta anos gloriosos”. Com a subida ao poder de Margareth Thatcher e Ronald Reagan nos finais dos anos setenta, muita coisa mudou na prática da política. Muitas dessas mudanças incidiram sobre o papel e lugar do Estado; elas enfraqueceram também todo o edifício solidário construído na euforia da prosperidade pós-guerra. Não relato isto por pedantria. Faço-o por uma razão prática que consiste em chamar a nossa atenção para reconhecermos na fraqueza do Estado (e nos atentados constantes à nossa soberania) um estado normal. Isto é o que é normal na política. E, sendo assim, o desafio que nos é colocado por uma reforma constitucional não pode consistir em tentar refazer algo que teve existência curta. O que devíamos fazer era pensar como afinar o sistema político para que ele fosse capaz de compensar a fraqueza normal do Estado através do reforço da sociedade. Trata-se, portanto, de saber lidar com erros. Mas continua.
*ELÍSOIO Macamo - Sociólogo
Fonte: Jornal Notícias - 09.11.2011
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