Começou como uma reclamação do preço da lata de água no fontanário público, passou pela detenção de seis aldeões que foram espancados e torturados por populares e pela Polícia e terminou na barra do tribunal.
Afinal, o problema saiu da esfera meramente social e revestiu-se de condimentos políticos, cujo julgamento começou esta semana, na vila-sede de Ancuabe, em Cabo Delgado.
Há sinais bastantes que concorrem para que o acusador, neste caso o Estado, através da Polícia, possa virar acusado, num processo autónomo que está a nascer, devido às sevícias infligidas aos seis elementos da aldeia de Ntutupué, mais o delegado distrital da Renamo, para além de mais dois que não constam dos autos, que alegam terem sido selectivamente detidos e submetidos a diversos tipos de agressão física e mental, humilhação, incluindo a violação das esposas de dois deles.
De um lado está o Ministério Público, representado pelo procurador naquele distrito, Renato Tiquite, do outro estão os nacionais Agostinho Nacir, Juma Joaquim (delegado da Renamo na localidade), Pedro Sousa Macawa, Fernando Afai, Ana Maria Paulino, Rita Liene (esposa do delegado local da Renamo) e Francisco João Manuel (delegado distrital da Renamo). Para julgar o caso está o juiz de Direito Jafete Sigoto.
Todavia, e apesar de não constarem do processo, são potenciais declarantes, por terem sofrido a destruição das suas casas, espancamento e outras sevícias infligidas Nicunla Bacar (régulo da aldeia Ntutupué) e Sawaya Paulino Nira.
Francisco João Manuel foi, até aqui, o único ouvido em audiência, que teve lugar na passada terça-feira, que disse ser delegado distrital da Renamo e que passou por Ntutupué, localidade pertencente ao posto administrativo de Metoro, vindo da capital provincial, Pemba, onde decidiu pernoitar.
À sua chegada, apresentou-se ao régulo Nicunla Bacar, tendo sido acompanhado por quatro elementos do seu partido político, à casa do delegado local, onde se iria hospedar. Pelo caminho passaram por um fontanário, onde havia duas filas com quase todos os seus constituintes a reclamarem, em voz alta, por causa do preço que naquele dia havia mudado, pois admitia-se que quem tivesse acima de cinco meticais poderia passar para frente, pois tinha um atendimento privilegiado, contra a tarifa única de dois meticais.
"Parei e disse à multidão para que o problema fosse apresentado ao chefe da aldeia, pois podia ser que os vendedores da água estivessem a ser oportunistas e que o preço estivesse a ser aplicado à sua revelia”, disse Francisco Manuel, em pleno julgamento, em Ancuabe.
De acordo com ele, depois foi alojar-se na casa do delegado da Renamo, onde, por duas vezes, vieram alguns membros da sua formação política alertar para o facto de se estar a desenhar uma acção violenta contra si, pois havia sinais de um grupo numeroso se estar a preparar para isso.
Ele recusou-se a tomar providências, alegadamente porque não havia feito nada de mal, razão por que não precisava de fugir. Porém, tempos depois, vieram os populares, divididos em dois grupos, sendo que o último era escoltado pela Polícia, provavelmente vinda de Metoro, 23 quilómetros de distância, se bem que a localidade de Ntutupué não dispõe de nenhum posto policial.
"Cercaram a casa e começaram a vandalizá-la. Queriam queimar o imóvel, mas os polícias desaconselharam a atitude, mas, mesmo assim, deixaram que fosse arrombada, com a cobertura de três tiros. Daí entraram e espancaram-me e lá atrás fizeram o mesmo aos donos da casa, nomeadamente Juma Joaquim e Rita Liene", contou Francisco Manuel.
A seguir, Francisco Manuel terá sido levado à estrada, junto do casal hospedeiro, onde estava uma viatura vinda da sede do distrito à espera, tendo sido conduzido sob a escolta da Polícia ao comando distrital da corporação, situado a cerca de 30 quilómetros.
Na Polícia, soube-se que mais gente viria a ser detida, alegadamente envolvida num pretenso crime de injúria contra as autoridades, o que, de facto, veio a acontecer, chegando a nove detidos naquela aldeia, todos pertencentes à Renamo.
Relatos dos acusados de injúria revelam que todos eles, chegados à Polícia, receberam vinte "chambocadas" cada um, do que resultou em ferimentos, alguns dos quais ainda não sarados.
Acusaram o agente policial Faustino de ser o autor da série de “chambocadas” infligidas aos aldeões de Ntutupué, e dizem, por outro lado, ter-se recusado a permitir que os feridos recebessem tratamento hospitalar, alegadamente porque tanto a viatura que os trouxera, como os medicamentos existentes no hospital não eram do seu partido político.
Em quanto isso, na aldeia Ntutupué, populares, aparentemente organizados em grupos de quatro pessoas, resolveram violar as esposas do régulo Nicunla Bacar e de Agostinho Nacir, esta última que se encontrava fora da aldeia, na sua machamba.
O régulo disse ao nosso Jornal que depois de tudo isso, os violadores, que pensa terem agido a mando dos seus adversários políticos, propuseram-se a dar-lhe 2500,00 meticais para que o caso terminasse ali. Porém recusou-se a receber o dinheiro.
Francisco João Manuel diz que, na circunstância, perdeu o seu telefone, uma cabeça de motor de motorizada comprada em Pemba, e dinheiro que se destinava à reabilitação da sede da Renamo, na vila de Ancuabe.
O julgamento retoma no dia 25 deste mês para a audição dos restantes elementos acusados, bem assim dos declarantes de parte a parte.
Fonte: Jornal Notícias - 12.11.2011
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