Por Alfredo Manhiça
Durante o período de cerca de doze ou treze anos, a
contar a partir da realização das primeiras eleições multipartidárias, em
Outubro de 1994, Moçambique serviu de único exemplo de Estado da África
subsaariana que, a seguir a uma longa guerra civil, tinha conseguido
restabelecer o estado de paz, graças a um acordo político rigorosamente
observado e respeitado por ambos ex-beligerantes; o único país da região onde os
ressentimentos e o desejo de vingança (que em muitos outros países do
subcontinente têm estado à base das violações dos acordos de paz) tinham sido
dominados.
Juntamente com outros nove ou dez países da região,
Moçambique servia também de modelo de sucesso do processo de democratização,
introduzido na alvorada da década Noventa.
De facto, a pérola do Índico, além das eleições de 94, tinha realizado em
períodos regulares, duas subsequentes eleições gerais substancialmente
consideradas justas e livres, segundo os critérios universalmente consensuais e,
além disso, o primeiro presidente da República democraticamente eleito tinha
renunciado – contrariamente a muitos outros chefes de Estado da África negra - a
manobra da revisão constitucional que lhe teria permitido concorrer para o
terceiro mandato.
Todavia, como os túmulos que por fora estão decorados de
flores, enquanto por dentro acumulam a podridão e o seu cheiro infernal, a boa
imagem que Moçambique e os moçambicanos vendiam para o exterior era contraposta
por eloquentes injustiças cometidas contra todos aqueles que tinham sido os
verdadeiros vítimas do conflito armados dos dezasseis anos. A estratégia
adoptada pelos mediadores de paz de Roma, os quais privilegiaram a abordagem
que conduzia a um acordo político, sem passar pela responsabilização dos crimes
arbitrariamente cometidos em nome da guerra, acabou premiando aqueles que, em
nome de combate aos “bandidos armados”, tinham, sistematicamente, mandado fuzilar
os próprios opositores políticos nas praças públicas e confiscado as suas propriedades,
e aqueles que, em nome da “luta contra o comunismo”, tinham saqueado e
carbonizado inteiras aldeias e povoações, obrigando seus habitantes a viver
como prisioneiros nas bases militares ou a refugiar-se nos países confinantes.
O preço que custou a Moçambique a hora de ser o país africano
exemplar na resolução de conflitos internos foi, portanto, pago exclusivamente
pelos vítimas inocentes da luta pelo poder político entre a Frelimo e a Renamo.
Em contrapartida, os dividendos continuam a ser canalizados unicamente às
classes dirigentes destas duas formações políticas. De facto, já que o Acordo
Geral de Paz (AGP) não previa nem a responsabilização pelos crimes de guerra,
nem pelos crimes contra a humanidades cometidos pelos beligerantes, e nem
previa a compensação às vítimas dos abusos e excessos de uns e de outros, a maior parte das populações que
vivia nas zonas de fogo cruzado continuou na penúria mesmo depois do cessar
fogo e restabelecimento da ordem política porque não tinha nem meios nem forças
suficientes para reconstruir o próprio património. Contrariamente, as classes dirigentes valendo-se
do estado de paz, do bom nome que o país tinha conquistado, das posições que
ocupavam na administração pública, e do património público sob a sua
administração, criou e acumulou riqueza privada, desinteressando-se sempre mais
do bem comum e desprezando as críticas populares.
A mão militar que combateu a guerra dos dezasseis anos,
tanto para conquistar o poder (Renamo), como para conserva-lo (Frelimo) tinha
sido recrutada maioritariamente nas zonas de fogo cruzado e entre as famílias
pobres das regiões periféricas. Os filhos e descendentes dos dirigentes
políticos e das elites económicas do país estavam nos Colégios e Universidades
ocidentais a fazer a carreira académica. Terminada a guerra civil a maior parte
dos combatentes foram desmobilizados e devolvidos à casa paterna. Enquanto os
filhos dos dirigentes regressavam das Universidades ocidentais para herdar a
riqueza que, graças ao estado de guerra, os seus progenitores tinham facilmente
adquirido e acumulado, os guerrilheiros desmobilizados regressavam à casa para
herdar a condição miserável na qual o estado de guerra tinha deixado os seus
progenitores. Estes jovens ex-guerilheiros não podiam, nem sequer, recorrer ao
mercado de trabalho porque a única profissão que tinham aprendido nos anos de
guerra era assassinar e fazer guerra. E,
as empresas públicas e privadas criadas depois do AGP não precisam de ninguém
com esta especialidade.
Examinando o conceituado documento dos cinco pontos – AGP; Defesa e Segurança; Processos
Eleitorais; Questões Económicas e Despartidarização
do Aparelho de Estado – que a Renamo enviou ao Gabinete do Primeiro
Ministro, Alberto Vaquina, no dia 22 de Outubro de 2012, solicitando a abertura
de um diálogo entre o governo da Frelimo e a Renamo, e cuja recusa ou manobra
dilatória, da parte da Frelimo, provocou o reinício das hostilidades,
poder-se-ia concluir que depois de vinte anos da assinatura do AGP, a Renamo
deu-se conta que as negociações de Roma, que tinham sido conduzidas de modo a
premiar os mentores da guerra de ambas partes, tinham acabado premiando
unicamente os da Frelimo. Daí a necessidade de una renegociação. A classe
dirigente do partido Frelimo, que pensava ter já conseguido apoderar-se da
totalidade das vantagens do Acordo, tentou inutilmente recorrer à força das
armas para desanuviar as exigências da Renamo.
Reeditando a situação criada pelas negociações de Roma em
1992, as negociações do Centro de Conferências “Joaquim Chissano” (CCJC) terminaram
com o consenso para submeter à Assembleia da República (AR) um projeto de “Lei
de Amnistia” que, mais uma vez, irá premiar os mentores da guerra e ignorar, por
completo, os seus mais direitos vítimas. A perversidade do instrumento da “Lei
de Amnistia” consiste no seu paradoxo de proteger, por um lado, os autores de
crimes de guerra e de crimes contra a humanidade e, abandonar, por outro lado,
os vítimas à própria sorte. De facto, a guerra dos quinze meses, embora nunca
tenha sido oficialmente reconhecida como tal, além da destruição de muitos bens
materiais, ceifou muitas vidas humanas e semeou muitas viúvas e órfãos. A
recusa do governo de reconhecer e declarar o estado de guerra fez sim que
muitos dos soldados que tombaram a perseguir os homens armados da Renamo fossem
negados um funeral digno e o acompanhamento pelas suas famílias e amigos.
A “Lei de Amnistia” é cruel enquanto ela declara
oficialmente que não será feita nenhuma justiça aos vítimas inocentes da guerra
dos quinze meses e, em contrapartida, assegura proteção e prémio àqueles que
para reivindicar a parte a eles atribuída pelo AGP não se importaram de sacrificar
a vida de muitos inocentes no troço da EN1 que liga o Rio Save e a localidade
de Muxùngué e, em muitos outros pontos do país. De facto, alguns dos
reivindicadores – graças ao derramamento de sangue dos inocentes - já começaram
a receber os profícuos prémios resultantes da guerra dos quinze meses: para
acomodar os interesses da Renamo, o Secretariado Técnico da Administração
Estatal (STAE) foi obrigado a recrutar três mil novos membros que custarão aos
cofres do Estado 1, 8 biliões de meticais. Na mesma ótica, o acordo obtido nas
negociações do CCJC sobre a “Integração das Forças residuais da Renamo nas
Forças Armadas e na Polícia” ou a “sua reintegração económica e social” também visa
fundamentalmente, premiar os mentores da guerras dos quinze meses.
Aparentemente, o instrumento da “Lei de Amnistia” si
apresenta como se tivesse sido desenhado para garantir a integridade física e a
reintegração na vida pública de Afonso Dhlakama e dos membros do braço armado
da Renamo que estão ainda algures nas matas de Gorongosa. Na verdade, o
instrumento foi concebido também, e sobretudo, para proteger e irresponsabilizar
o presidente da República, Armando Guebuza, o seu executivo e a AR das
violações constitucionais por eles cometidas, e da negligência e incompetência
por eles demonstradas na questão do novo diferendo com a Renamo
Não obstante a documentação histórica tenha já começado a
associar a origem da guerra dos quinze meses com as reivindicações da Renamo
formuladas em cinco pontos no documento apresentado ao Gabinete do Primeiro-Ministro,
Alberto Vaquina, no dia 22 de Outubro de 2012, na verdade, os restantes quatro
pontos forma incluídos posteriormente, resultantes da degeneração de uma única
reivindicação que não recebeu acolhimento no fórum da AR: a solicitação da revisão
do pacote eleitoral.
Em conformidade com a natureza e as dinâmicas dos
sistemas democráticos, solicitando a revisão da Lei Eleitoral, a Renamo estava
no pleno e legítimo exercício do seu direito de iniciativa legislativa,
enquanto partido de oposição com maior representação na AR. Da parte sua, o
Governo e a bancada maioritária da Frelimo que nos precedentes pleitos eleitorais
se tinham servido da Lei contestada e de outros instrumentos para viciar o
processo eleitoral e influenciar os resultados a seu favor, temendo que a
revisão pudesse dificultar a manobra necessária para garantir a manutenção do
controlo do poder político, só viriam a aceitar a votação em Parlamento da
revisão reivindicada pela Renamo depois do derramamento de sangue de muitos
cidadãos, em consequência dos confrontos entre as Forças de Defesa e Segurança
(FDS) e os homens armados da Renamo.
Despudoradamente, o presidente da República e presidente
do partido no poder, Armando Guebuza, colhendo a ocasião a ele dada pelas
reivindicações da Renamo, procurou (sem sucessos) assassinar Dhlakama para
depois, presume-se, suprimir a Renamo do cenário político e instaurar um regime
autocrático, construído sobre o fundamento de um partido hegemónico, a Frelimo.
Os alicerces desta agenda tinham sido já lançados através dum processo
progressivo do esvaziamento dos princípios e das regras democráticas, controlo
submisso da AR e castramento do sistema judiciário. A tentativa de livrar-se do
obstáculo constituído pela Renamo e seu líder, Dhlakama, provocou a
intensificação das campanhas militares da Renamo na região centro do país e, o
presidente Guebuza não hesitou nem sacrificar a sorte daqueles que ele tinha
jurado tutelar, nem empregar enormes recursos económicos para a compra do
material bélico, sem a necessária autorização do Parlamento.
Estas são as instituições e as pessoas concretas que são
direitos responsáveis pela guerra dos quinze meses que, agora, serão premiadas
pelo instrumento da “Lei de Amnistia”.
Se até aqui faltasse matéria para provar que as
Instituições públicas moçambicanas estão – não ao serviço da nação – mas
dos interesses da classe dirigente do partido no
poder, a “Lei de Amnistia” proporciona provas evidentes: a presidente da AR,
Verónica Macamo, que, para sanar as violações constitucionais cometidas pelo
presidente da República e seu executivo, sabe convocar, em menos de 24 horas
uma “sessão específica para debater a proposta de ‘Lei de Amnistia’ submetida
pelo presidente da República, foi a mesma que impediu o acolhimento, no fórum
da AR, da solicitação da Renamo sobre a revisão da Lei eleitoral, constringindo,
dessa forma, a este partido a recorrer ao uso da força para fazer valar o
próprio direito. O presidente da República e presidente do partido no poder,
Armando Guebuza, não obstante o seu título de “Visionário”, só autorizou o seu
partido a votar o novo pacote eleitoral e a aceitar a “revisão da Política
Nacional de Defesa” quando o que estava em causa era salvaguardar os interesses
próprios e os do próprio partido. Não foi capaz de aviar tempestivamente uma
estratégia política capaz de evitar o derramamento do sangue do povo.
Receio que o instrumento da “Lei de Amnistia” (o qual não
toma em consideração a situação dos vítimas da guerra dos quinze meses), seja
mais uma prova daquela verdade que sempre recusei-me a aceitar, segundo a qual,
na sua política externa na África negra – a qual visa fundamentalmente procurar
matéria prima para alimentar as próprias indústrias – as potências ocidentais
privilegiam a estratégia da promoção e financiamento de conflitos armados por
procuração (prox wars) de tipo
tribal, étnico, ideológico, religioso ou de natureza económico, porque as
classes dirigentes africanas, além da incapacidade de determinar o valor real
dos recursos naturais dos seus países, são também culturalmente incapazes de
atribuir um valor moral objectivo à vida dos seus cidadãos. O valor da vida de
todos e de cada um dos cidadãos da África negra é determinado unicamente em
função dos interesses do chefe.
Alfredo
Manhiça
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