Por Elisio Macamo
Do estado da Nação fala o Chefe do Estado. É sua função. Aliás, só ele é
que pode dizer em que estado – ou em que estado ele gostaria que os
moçambicanos pensassem que – a nação se encontra. Neste sentido, o discurso do
estado da nação vale o que o nosso sistema político permite que ele valha.
Pouco. Isto é, como a atribuição principal do Chefe do Estado é garantir o
funcionamento do aparelho estatal, o estado da nação sobre o qual ele pode
falar é o que lhe permite fazer a reportagem das suas realizações para
garantir, entre outras coisas, que o favor do povo continue do seu lado. Sendo
assim, a pergunta que se coloca é de se saber quem, nestas circunstâncias,
pode, então, falar da nação do estado, isto é daquilo que está acima, muito
acima, na verdade, da máquina estatal. A resposta a esta pergunta constitui o
tema deste texto.
A nação é a moral. Leia-se bem: é a moral, não amoral. A nação é a
convivência de todos os dias que nos permite dar sentido ao que se passa em
nosso redor. Não são as ideias abstractas de liberdade, direitos humanos,
justiça e integridade que dão substância ao nosso sentido moral. É sim o
significado denso que cada uma dessas ideias abstractas assumem no nosso
quotidiano e que são o ponto a partir do qual torcemos o nosso nariz perante
coisas que ofendem o sentido do que consideramos bom. O grande problema, porém,
é que o que leva alguns a torcerem o nariz é o que leva outros a aspirar bem
fundo com as narinas dilatadas. Não há, em minha opinião, um sentido moral
comum a todos nós. Há apenas ideias abstractas que cada um de nós – em grupo ou
individualmente – interpreta ao sabor das experiências quotidianas. Há muitos
que, de certeza, intervêm na esfera pública, partindo do pressuposto de que
interpretamos essas ideias abstractas da mesma forma ou, o que é pior, que
pensam que só há uma interpretação possível e legítima dessas ideias.
É claro que não há. E ainda bem que é assim, pois é precisamente desse modo
que a nação se pode constituir como uma comunidade moral que se afirma no
debate de ideias centrado na interpretação do que significa ser moçambicano
hoje. É no debate salutar de ideias sobre o significado da nação que ficamos
menos indiferentes à sorte do país e nos colocamos em posição de interpelar,
com legitimidade, o que – aos nossos olhos – não está bem. A ideia que estou a
tentar desenvolver nestas linhas é a seguinte: cada um de nós é um potencial
crítico social porque cada um de nós pode interpretar a nação, isto é pode
procurar saber se o que ele vê feito em nome da ideia que tem de Moçambique se
coaduna com a ideia que ele igualmente tem de Moçambique. Nenhum de nós fala do
que está bem ou mal no país a partir dum ponto fora da comunidade moral que a
nação é, ainda que muitos de nós se pronunciem com esse pressuposto.
AUSÊNCIA DE SENTIDO CRÍTICO
Em várias ocasiões ao longo deste ano – mas também nos anos anteriores –
concentrei a minha atenção crítica sobre os chamados críticos. Como sempre,
alguns interpretaram esse meu interesse como uma forma de cair nas graças do
poder. Mesmo na minha intervenção mais recente – que procurou fazer uma
distinção entre o desabafo inoportuno de Jorge Rebelo e a crítica refrescante
de Carlos Nuno Castel-Branco – houve quem foi ainda capaz de vislumbrar um
académico lambe-botas, algo que, naturalmente, deixou de me incomodar há muito
tempo. Mas o olhar sobre como fazemos a crítica no país parece-me importante
como contribuição para um melhor entendimento da forma como nos posicionamos em
relação ao que é nosso e nos define. Duma forma geral as nossas posições
parecem-me bastante confusas, contraditórias e contraproducentes – algo muito
próximo do que Tomás Vieira Mário chamou recentemente de “bypass” na revista
“Prestígio” e que o grupo musical “Ghorwane” já havia em tempos descrito como
típico dum país que está de avesso. As nossas posições parecem isto tudo porque
temos dificuldades em ver na crítica o exercício de introspecção que ela exige
de cada um de nós. É duma destas dificuldades que vem a apetência pela
concentração da crítica nos governantes em detrimento do que está geralmente
mal em toda a sociedade.
Um exemplo trivial: já concedi entrevistas a órgãos independentes de
imprensa que, a meu pedido, prometeram mandar-me (algumas nem responderam ao
meu pedido) um exemplar do que eles publicaram. Nunca cumpriram com essa
promessa, mas, também, nunca poupariam críticas ao aparelho do estado pela sua
ineficiência ou falta de brio profissional. O mais fácil para mim seria de
considerar a imprensa independente moçambicana má, mas o sentido profundo da
crítica impede-me de fazer isso. Não é a imprensa que está mal; é a seriedade
entre nós que obrigaria uma boa parte de nós a respeitar o que promete. É
difícil, entre nós, fiar-se em alguém. Saber porque isto é assim e, acima de
tudo, articular isso com a ideia que nós temos do nosso país é uma condição
essencial da crítica útil. E poderia dar mais exemplos. Muita gente que grita
bem alto (e por vezes com razão) contra a corrupção não vê nenhum problema em
favorecer os seus próprios familiares e amigos ou esperar que lhes sejam
prestados favores na base de seja qual for o mérito social, económico e
político que julga ter. Funcionários públicos com regalias completamente
desmesuradas em relação ao tamanho financeiro do país não se coíbem de criticar
o esbanjamento dos outros mais acima. E por aí fora. Não se trata de dupla
moral. Trata-se de ausência de sentido crítico.
A questão é bicuda. A crítica que fazemos refere-se a ideias abstractas –
integridade, transparência, boa governação – que não fazem parte do nosso
verdadeiro quotidiano. No nosso dia-a-dia somos constantemente confrontados por
familiares, amigos e até mesmo estranhos que nos encorajam (ou forçam com
argumentos morais chantagiosos) a violar o espírito dessas ideias abstractas. O
polícia que exige suborno fá-lo não só porque é ganancioso, mas também porque
tem um sentido moral muito apurado. Há gente – no seu círculo de amigos ou
familiar – que espera isso dele. Ou melhor, não espera que ele seja corrupto,
mas sim que se aproveite da situação em que se encontra para benefício dos
outros. A força normativa do ditado do cabrito que come onde está amarrado vem
daí. Esta situação pode se multiplicar por várias outras, incluindo pessoas que
fizeram da luta anti-corrupção sua razão de existência. Há sempre gente à
espreita que quer isto mais aquilo deles. É, curiosamente, a mesma situação em relação
aos escalões mais altos do poder. E porque esta situação se tornou
particularmente conspícua este ano com as revelações relativas ao narcotráfico
talvez seja útil usá-la para ilustrar melhor as questões.
COMO AGEM AS PRESSÕES
Há dois tipos de pressão que agem sobre os nossos governantes. O primeiro é
o que cada um de nós sofre no seu quotidiano, isto é a expectativa do seu meio
mais imediato – família, amigos, etc. – que ele use a sua posição em benefício
desse meio sob pena de ser considerado “kakata”, parvo ou associal. No caso dos
governantes estas pressões são gigantescas porque as expectativas são enormes.
E não só. Eles trabalham com gente que sofre este tipo de pressões também. O
seu quotidiano profissional está repleto destas armadilhas e um pequeno
descuido em jeito de ajuda a alguém para conseguir emprego aqui ou acolá solta
a avalanche dum meio institucional regulado mais pelos favores, compromissos,
conluios, etc. do que pela lei. E quanto maior for o controlo do aparelho de
estado por uma única força política, maiores serão as probabilidades de
institucionalização destes mecanismos informais. Neste aspecto não somos
excepção. Vivi perto de duas décadas num estado alemão (Baviera) controlado até
há bem pouco tempo por um único partido. Apesar da maior independência das
instituições jurídicas, o nepotismo e a incúria grassaram explendidamente.
Muita coisa que se passa no nosso país é-me, em virtude desta experiência,
extremamente familiar. No Estado da Baviera aprendi como é possível encenar a
transparência. Em cada esquina do nosso aparelho estatal e do nosso sistema
económico encontraremos sempre alguém que não ocupa a posição que ocupa por
mérito profissional próprio, não tem a posição que tem no mercado por mérito
económico próprio, etc. E isto cria uma teia terrível de favores que mais do
que a ganância individual são a razão fundamental do desfasamento entre o ideal
do serviço público regulado por lei e o desempenho profissional do dia a dia.
O segundo tipo de pressão é político. O pano de fundo sobre o qual ele
evolui é a abertura política. Partidos políticos são, na essência, organismos
bastante parasitários. E o pior é que eles vivem essencialmente do erário
público e, quando não é assim, do jogo de influências. Isto coloca sérios
problemas a todas as democracias. Nos EUA o problema é menos sério porque lá se
legalizou a corrupção. Governa quem consegue arrecadar mais dinheiro das
empresas e pessoas ricas. Noutros países, sobretudo nos países europeus, as
limitações jurídicas impostas aos financiamentos de partidos por terceiros não
conduzem, em princípio, a um maior respeito das regras de jogo. Antes pelo
contrário, elas conduzem a verdadeiros malabarismos financeiros que envolvem –
no caso do CDU da Alemanha de Helmut Kohl, só para citar um exemplo – a
abertura de contas estrangeiras, fuga ao fisco e, inclusivamente, ligações
perigosas com negócios sujos (venda de armas). Quem diz Alemanha, diz também
França, onde um dos principais responsáveis pela política errática africana
desse país é o financiamento de partidos políticos franceses por multinacionais
francesas e, curiosamente, por autocratas africanos como Omar Bongo, Paul Biya
e até mesmo José Eduardo dos Santos.
O nosso país não podia ser excepção. O acordo que firmou a paz em 1992
ofereceu o Estado de presente ao vencedor das primeiras eleições. Para além da
legitimidade conferida pelos dinheiros do auxílio ao desenvolvimento o controlo
do Estado significa, acima de tudo, a transformação dum partido em vector de
influências. E como o jardim de Deus que nós chamamos terra tem todo o tipo de
bichos as pessoas e empresas que querem comprar influências são também de toda
a espécie. As piores espécies sentem-se naturalmente muito mais à vontade em
ambientes intransparentes com a agravante de que são elas que movimentam os
maiores montantes de dinheiro. Não estranha, portanto, esta ligação (infundada
ou não) entre altas personalidades da nossa política e o narcotráfico. Só a
ganância individual não explicaria a ligação. A necessidade de garantir o
financiamento do partido – que na nossa concepção algo doentia de política
implica também a eliminação dos outros partidos – constitui um dos principais
motivos que tornam a nossa classe política – sobretudo o partido no poder –
vulnerável à gente má e suja. Mas antes de içarmos o dedo em riste contra a
cúpula devemos também perguntar porque os outros – as famosas bases – nunca
procuraram saber donde vem o dinheiro que financia os seus congressos, as suas
campanhas e tudo o mais. Nenhum militante do partido no poder pode franzir o
sobrolho hoje com o tipo de revelações que andam por aí, pois nenhum deles
jamais levantou a voz. E se o fez, ninguém ouviu. Mesmo depois de se saber que
alguns dos seus membros – como é o caso do proprietário do MBS – estão sob
suspeita de envolvimento no narcotráfico nenhum membro activo do partido no
poder viu a necessidade de distanciamento em relação a esse indivíduo até pelo
menos o esclarecimento dessas suspeitas. Alguém já o convidou a depôr o seu
cartão de membro enquanto limpa o seu nome? Mas algo assim seria tão importante
para limpar a imagem do partido.
INTERPRETAR A NAÇÃO
Mesmo aqui, porém, o mais fácil é gritar corrupção do que realmente
procurar desenvolver uma atitude mais crítica. O que torna estas ligações
perigosas (e vergonhosas) possível não é apenas a ganância individual. É um
emaranhado de relações em que estamos todos envolvidos ao nível do quotidiano e
que nos dizem o que realmente é moralmente correcto. Não é possível combater
corrupção que seja quando o nosso sentido moral nos diz que a nossa primeira
obrigação é perante os nossos amigos, familiares, correligionários, partido,
etc., mesmo que isso implique a contravenção das leis. É por isso que tenho
também feito uma cruzada pessoal contra o discurso anti-corrupção, pois ele
afasta-nos do que é essencial. Não há nada de cultural nesta concepção da
moral. Há, isso sim, uma reacção conjuntural à experiência política que desde
sempre – começando pelo período colonial – sempre nos definiu como súbditos e
não cidadãos, para usar a distinção útil feita pelo intelectual ugandês Mahmood
Mamdani. A Frelimo gloriosa não mudou esta situação. O actual sistema político
também ainda não conseguiu mexer com esta situação. Temos um enorme déficit de
cidadania que deveria ser o principal alvo da reflexão crítica.
Nestas circunstâncias, o que tem acontecido é que temos gente que circula
pelos meios de comunicação de massas com discursos amuados. Esses discursos
procuram em ideias abstractas o sustento moral de que necessitam para ter
impacto na sociedade. Só que para essas ideias abstractas terem realmente
impacto seria necessário converter a sociedade moralmente para que deixe de dar
sustento à moral que considera a lei um empecilho. Estranhamente, algumas das
pessoas que veiculam este tipo de discursos receberam a sua formação
intelectual em meios marxistas. Referem-se, por exemplo, ao conceito de
hegemonia de Antonio Gramsci mais no sentido de acusar os que têm ideias
diferentes das deles de serem intelectuais orgânicos que defendem o status quo.
Se lessem Gramsci com mais atenção haviam de se dar conta de que ele procurava
nas contradições (em bom jeito marxista) do discurso hegemónico a abertura para
a crítica social. Dois bons exemplos recentes do que Gramsci tinha em mente
foram os comentários críticos de Carlos Nuno Castel-Branco em relação à pobreza
– quando ele interpelou a legitimidade do discurso de combate à pobreza face às
políticas económicas seguidas – e Mia Couto num texto sobre a detenção dum
portador de passaporte moçambicano na Suazilândia com avultadas quantias de
dinheiro – quando ele perguntou se a má imagem que o país adquiria lá fora se
coadunava com o interesse político de promoção da auto-estima. Este tipo de
interpelações abre espaço para discussão e isso é bom.
O lado trágico da nossa situação é que as ideias abstractas não têm quem as
possa transportar no nosso quotidiano e isto pelas mesmas razões que mataram a
construcção do socialismo no país. Sem classe operária para fazer a revolução e
equipados apenas dum partido de vanguarda as possibilidades de revolução
estavam desde o início condenadas ao fracasso. Quem, no Moçambique de hoje, pode
ser o portador duma revolução de valores? Não quero ser pessimista em quadra
festiva, mas também confesso que não vejo muitas opções. Na Europa as
revoluções e o sindicalismo funcionaram porque havia fábricas onde um bom
número de pessoas já trabalhava em fortes condições de organização.
Curiosamente, a fragilidade do movimento sindical hoje em dia é, em parte,
resultado da erosão deste tipo de organização. No Irão quem fez a revolução
foram os comerciantes lá nos bazares; eles queriam maior segurança de
contracto, previsibilidade nos negócios, etc. e, por isso, criaram o espaço
social para que o discurso moral dos mullahs tivesse campo fértil. No Brasil
foi uma classe média emergente e à procura de afirmação num contexto social
esclerocisado que levou Lula ao poder. No nosso país o único potencial de
mudança moral encontra-se no aparelho de Estado, sobretudo nos escalões médios
e inferiores. Enquanto, porém, for possível sacar o máximo de todo o tipo de
gente – cidadãos, chefes, comerciantes, doadores, etc. – este pessoal não terá,
suponho, nenhum verdadeiro incentivo para mudar seja o que for.
Uma parte do sucesso do MDM deveu-se em minha opinião, também em parte, ao
potencial que ele tinha de mobilização deste sector da nossa sociedade. Não
conseguiu fazê-lo bem porque ao invés de articular o sentido moral deste grupo
com potenciais ideias abstractas – que nunca chegaram a ficar claras – preferiu
hostilizá-lo como instrumento do partido no poder. Esta hostilização, aliada ao
discurso revanchista, regionalista e triunfalista de alguns dos seus membros
acabou alienando uma potencial força de mudança que cerrou fileiras em torno da
manutenção do diabo já conhecido.
Esta é, portanto, a nação do nosso Estado. Na medida em que este Estado
cria espaço para a instrumentalização da desordem em benefício dos nossos
interesses imediatos está mesmo bom. Reclama apenas aquele que não consegue uma
posição a partir da qual ele próprio iria instrumentalizar a desordem a seu
favor. Este é, no fundo, o sabor amargo que fica quando se percorre a crítica
no nosso país. Temos muitos missionários, mas ninguém para converter. Crítica
não é revelação de nenhuma verdade transcendal, nem descoberta de valores
universais. Crítica é interpretação da ideia que temos do país face aquilo que
é feito em nome desse país. Os valores abstractos aos quais apelamos quando
fazemos a interpretação estão em conflito muito grande com a nossa conduta no
quotidiano. Lembra o Evangelho de João, versículos 7:53-8:11, onde se relata a
história dos que queriam apedrejar a mulher adúltera e a interpelação de Jesus
ao seu sentido moral: estariam eles próprios livres de pecado? Quem
dentre nós está?
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