Há dois anos havíamos apresentado um trabalho de reportagem sobre a desinformação que domina a sociedade de algumas regiões de Cabo Delgado, em tempos de epidemia, sobretudo de cólera. Era por causa da morte de um régulo, na aldeia Namarrecua, cerca de 30 quilómetros da cidade de Montepuez, sede do distrito do mesmo nome. Trazíamos as razões, que as achávamos próximas, do que teriam levado o líder tradicional a ser morto pelos seus próprios súbditos.
Encontramos o facto de ter sido legitimado (processo que o Governo usou para o reconhecimento de lideranças tradicionais). Sim, legitimado! E só se legitima o que não é legítimo, ou não? E há muita guerra silenciosa nas comunidades, entre os régulos legitimados e os legítimos, trazendo atrás de si, muitos seguidores.
Por causa da conveniência política que esteve por detrás da legitimação dos régulos, nasceu uma divisão com marcas profundas de índole político-partidária. É o mesmo que dizer, que é o facto de o Governo ter interferido no sistema de sucessões nas lideranças tradicionais. O denominador comum, em todas as regiões onde há recorrentemente a desinformação à volta da cólera e outras epidemias, é ser lá onde o poder tradicional foi durante muito tempo exercido com todos os adereços que tal implica, incluindo a feitiçaria.
Nos distritos do centro-sul da província, a administração tradicional foi muito forte e quando o Governo quis valorizá-la fá-lo procurando pessoas que, muitas vezes, não se identificam com os autóctones, tendo como bitola o facto de serem mais próximos do partido no poder. Desse jeito dividiu as pessoas, uma divisão que ficou mais nítida e profunda quando se decidiu distribuir fardamento aos líderes, mais tarde subsídios. Já ouvi que em algum lugar já começaram a receber, via banco…
Os não legítimos (legitimados) viraram mais importantes que os verdadeiros líderes, porque aborígenes. A guerra instalou-se, cuja arma principal usada tem sido a cólera ou as queimadas descontroladas, cujo efeito é tentar demonstrar que aqueles não têm nenhum poder sobre as comunidades que dizem dirigir.
Tudo o que é dito pelo Governo, principalmente quando a sua disseminação é confiada aos líderes tradicionais, surge quem deve contradizer, ainda que tenha o conhecimento pleno de que se trata de medida razoável. Simplesmente para contrariar e demonstrar, desse modo, a fraqueza de quem sendo, não é líder nenhum.
A coisa vai crescendo, mas dando mostras que nos podem conduzir ao que acima tentamos dizer. Não é por acaso que as vítimas são sobretudo líderes fora do foro governamental: secretários, régulos ou outros responsáveis tradicionais. No dia em que alguém quiser saber como cada um deles chegou a ser o que é, vai colidir com a realidade crua de que foram impostos.
É na contradição e na razão que os levou ao poder, que deveria ser de facto tradicional, mas não é, porque usa uma roupagem político-partidária, que aparecem, por sua vez, os políticos. Não para dizer que a cólera é trazida pelo Governo, mas tomando uma posição dúbia, quase cúmplice, sem se pronunciarem, tendo em conta que na divisão conseguem reinar.
O outro problema é o próprio Ministério da Saúde. A cólera é uma doença que todos conhecem. Não é verdade que as pessoas confundem cloro com cólera, segundo as nossas investigações, porque mesmo sem cloro, sempre houve cólera. Portanto, o povo conhece a doença, de tal maneira que, quase sempre, é o primeiro, antes das autoridades sanitárias, a declarar a sua existência.
Durante estes anos (acima de 20) em trabalho para a comunicação social, as autoridades de saúde sempre foram as últimas a confirmar a existência da cólera, quando o povo já a identificou. Às vezes passam meses a chamar-se diarreias e vómitos, diarreias sanguinolentas, disenterias, diarreias agudas, etc., um secretismo dificilmente entendível.
O tempo que leva a saúde a falar de cólera, veste-se muitas vezes de qualquer coisa que soa a sonegação. Pessoas morrem, a saúde persiste em dizer que não morrem de cólera ou que se trata de mortes extra-hospitalares, por isso não entram nas contas. Mas as casas mortuárias, apesar de serem de outra gestão, quase todas localizam-se no mesmo recinto dos grandes hospitais.
Por causa disso, a informação passa de pessoa em pessoa sobre entes, vizinhos e outros que morrem, mas na comunicação social, aparecerá quem dirá que não há cólera, mas sim diarreias agudas, sanguinolentas, enfim, e que as pessoas que morrem de diarreias agudas, ou sei lá, fora do hospital, fazemos de contas que não morrem, mesmo sendo vizinhas de funcionários de saúde.
A inflexibilidade da saúde traz muitas leituras. E daí aparecerá, como quase sempre acontece, alguém do ministério para numa semana dizer, sim, é cólera! Este pequeno teatro presta-se a muitas interpretações. Ainda fica por perceber se com tanta evolução que estamos a experimentar, na medicina, estaremos de facto atrasados na detecção da cólera…
A seguir entra a imprensa, que é vista como a mais mentirosa, por estar todos os dias a reproduzir as palavras dos responsáveis da saúde que dizem que não há cólera, não há cólera, não há cólera, mesmo sabendo que no fim virá alguém a confirmar que é cólera, sim senhor. Essa posição patética da imprensa, em matéria de epidemias de cólera, leva-a a também ser mal vista pelas comunidades, vista como conivente na propalação de mentiras. Em zonas onde há cólera, já é perigoso identificar-se como jornalista.
É dentro deste quadro que todos devemos lutar, se bem que tudo é facilmente localizável: são os mesmos lugares onde a cólera é politizada, o comportamento da doença é do domínio de todos, a inflexibilidade da saúde é igual em todos os anos, para além das causas que são largamente conhecidas. Falta estudar o fenómeno com estes ou outros pressupostos e outra coisa, igualmente, importante: não falar dela só quando a epidemia eclode.
Pedro Nacuo
Fonte: Jornal Notícias - 16.02.2013
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