Quando até os gigantes soçobram à crise, do jeito que vemos, no mínimo, temos que despertar para a realidade, pararmos de assobiar para o lado e revisitarmos os nossos modelos de consumo.
O jornal Savana desta semana faz manchete com uma notícia de pôr os cabelos em pé: em época de austeridade, a Assembleia da República desembolsou mais de 10 milhões de dólares para comprar 250 viaturas todo-o-terreno para os deputados. Eis, pois, um interessante paradigma sobre a relação discurso-prática.
É evidente que os deputados têm de ter condições de trabalho para a sua acção fiscalizadora do trabalho do executivo. Isso parece-me indiscutível até pela dimensão do país em que vivemos. Não lhes devemos exigir grandes resultados, sem lhes darmos os meios adequados a esses resultados. Elementar, meu caro Watson, diria Sherlock Holmes.
O que é discutível é o timming para a compra e sobretudo a dimensão da encomenda. E quando falamos em timming, referimo-nos ao facto de que, em hora de ponta, e face à dramática carência de transporte público nas nossas cidades, assistimos a co-cidadãos nossos viajando, desumanamente, em camionetas. E dizemos-lhes que viajam nessas condições porque o país não tem recursos para criar a sua auto-suficiência em várias coisas, incluindo o transporte. Pagando faustosamente todos estes 4x4 para os deputados, alimentamos uma profunda contradicão entre o que apregoamos e o que fazemos.
Por causa do contexto económico-financeiro mundial, alguns dos nossos doadores ameaçam entrar naquilo que os economistas chamam “default”, devido à incomportabilidade das suas dívidas. Ou, usando uma linguagem mais terra-à-terra, por terem consumido mais do que as suas economias produziam.
Agora, enquanto eles arrepiam caminho e tentam voltar a uma realidade que nunca deviam ter abandonado - em Portugal, o primeiro-ministro formou um governo de apenas 11 ministros, proibiu todos os membros do Governo de usar carros protocolares fora das horas de trabalho e ao fim-de-semana e ele próprio se comprometeu a usar o carro pessoal sempre que não estejam em questão funções no âmbito do seu cargo. Mais: os membros do Governo deixarão de ter direito ao uso de cartão de crédito para pagamento de despesas de representação, entre outras decisões. No reino Unido, o parlamento anunciou cortes na despesa na ordem dos 5,3% do PIB, encerramento de vários institutos governamentais, redução de regalias dos membros do Executivo e do legislativo, e maior rigor nos gastos dos principais departamentos do Estado - nós fazemos justamente o caminho inverso.
E lembramo-nos que este ano, justamente por causa da crise, o Governo cortou drasticamente o orçamento de várias instituições, incluindo universidades, arriscando pôr em causa a qualidade do ensino e dos quadros aí formados, de modo os recursos a chegarem para todos. Ainda esta semana, anunciou cortes nas horas-extras dos funcionários públicos e toda a gente no Aparelho do Estado reza para que este ano passe rapidamente e em 2012 se volte à normalidade.
Mas todo este esforco do Governo em mostrar que temos que apertar o cinto não encontra eco na Assembleia da República. E o exemplo que vem dos nossos deputados é de que há crise, sim, mas ela não pode afectar por igual a todos; que o trabalho dos funcionários públicos e privados, para o qual se transportam em camionetas, não merece a mesma dignidade do trabalho dos deputados.
É, pois, tempo, de os políticos começarem a traduzir em actos o que dizem. De contrário, ficará a ideia de que esta crise é para uns poucos e quando dermos por nós, pode ser tarde. Até os poderosos Estados Unidos da América (e já agora, também a Itália, quando se pensava que a crise era exclusiva dos pequenos estados da Europa) estão com a corda no pescoço e o seu sistema financeiro desespera por um acordo entre Republicanos e Democratas, que tem de ser, inevitavelmente, alcançado nas próximas duas semanas. Se isso não suceder, dizem os especialistas, o país entrará em incumprimento e...em falência técnica.
Quando até os gigantes soçobram à crise, como nos mostra o exemplo dos americanos, no mínimo, temos que despertar para a realidade, pararmos de assobiar ao lado e revisitarmos os nossos conceitos de consumo.
PS:
Quero endereçar um enorme agradecimento a todas as mensagens de solidariedade que recebi de pessoas dos mais variados quadrantes, na sequência do erro que cometi e assumi neste espaço. Jamais esquecerei esse gesto. Aliás, como se diz na sabedoria popular, a pior forma de aprendermos de um erro é fazermos de conta que ele não existiu. Por alguns instantes, percebi que a palavra solidariedade não existe apenas no dicionário. Por isso, se digo tão pouco, unicamente é porque é difícil encontrar todas as palavras exactas para expressar a dimensão da minha gratidão às pessoas que me confortaram e até àquelas que me criticaram.
Fonte: O País online - 16.07.2011
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