A talhe de foice
Por Machado da Graça
Nos já longínquos anos em que eu andava a gastar os fundos das calças nos bancos das faculdades de Direito, quando um professor nos colocava um problema jurídico para resolver terminava sempre com a expressão latina Quid Juris?
Também eu me coloquei uma série de quid juris quando, com tambores e trombetas e transmissão em directo pela RM e pela TVM, foi divulgada a sentença do julgamento do caso Aeroportos de Moçambique.
Sentença dura, com penas pesadas que chegaram aos 22 anos de cadeia para o ex PCA, Diodino Cambaza e a 20 anos para o antigo Ministro dos Transportes e Comunicações.
Mas há que saber o que se vai seguir a isto.
Todos, ou quase todos, os advogados vão recorrer para o Tribunal Supremo (TS). E que consequências tem isso?
Toda a gente sabe que os recursos para o TS caem num poço sem fundo de onde, às vezes, demoram muitos anos a sair.
Vamos imaginar que todos os advogados recorrem.
Em primeiro lugar pergunto: O recurso implica na suspensão da execução da sentença? Se implica, isso quer dizer que todos os réus aguardarão em liberdade o julgamento do recurso?
Ou ficarão em liberdade os que já estavam em liberdade e continuarão presos os que já estavam presos?
As consequências destas duas perguntas são de que, no primeiro caso, todos os réus são libertados e, se o recurso demorar 10 anos a ser julgado, passarão esses dez anos a gozar do sol sem passar pelos desagradáveis filtros que há nas janelas das cadeias.
No segundo caso isso quer dizer que o ex-ministro e o seu ex-chefe de gabinete continuarão à boa vida enquanto os outros réus continuarão, à sombra do nosso paternal Estado, a esperar o tempo que for necessário.
Indo um pouco mais longe, poderemos perguntar em que se pode basear o recurso. E, há dias, li num dos jornais da praça, a tese de que os réus não poderiam ser condenados porque não há lei nenhuma que considere crime o que eles fizeram na empresa pública dos ADM. A lei que existe, e que foi aplicada neste julgamento, refere-se às empresas estatais e não às públicas.
As consequências desta situação podem ser graves e perversas.
Se bem percebi, o Juiz Marroa fez uma interpretação extensiva da lei sobre as empresas estatais, baseando-se no facto de que foram os bens destas que transitaram para as empresas públicas onde viriam a ser roubados.
Esta interpretação que, neste caso, me é simpática pode, no entanto, vir a ser extremamente grave se o Tribunal Supremo a aceitar. Se isso acontecer passa a ser jurisprudência do TS a possibilidade de, em matéria criminal, se fazer uma interpretação extensiva das leis, o que pode abrir a porta para todo o tipo de abusos. Os cidadãos passam a estar sujeitos a ser condenados apesar de não existir nenhuma lei que considere crime aquilo que eles fizeram.
Por outro lado, se o TS anular a sentença, baseado nesse princípio sagrado do Direito Criminal de que não há crime se não houver, no momento dos actos, uma lei que os considere criminosos, estamos a abrir a porta para que os demais gestores de empresas públicas possam começar a roubar, desenfreadamente, sabendo que não existe lei nenhuma que os possa condenar.
Há dias um passarinho pousou no meu ombro e estivemos a falar sobre estas coisas. E ele perguntava: “Porque é que a Unidade Técnica da Reforma Legal, vendo que existe um vazio legal, não tomou medidas até hoje?” . E eu tive que compartilhar as dúvidas da pobre avezinha.
Um problema bicudo para o TS resolver. Mas, como me dizem que, neste momento, o TS não tem sequer nenhum juiz para a ala criminal, a coisa deve estar para lavar e durar...
Mas as minhas dúvidas jurídicas vão um pouco mais longe, já em questões de pormenor.
Por exemplo: Os réus António Bulande e Maria Deolinda Matos foram condenados quase exactamente à mesma pena, com 15 dias de diferença. Só que o julgamento provou que Bulande andou durante muito tempo a receber mais de mil dolares por mês sem ter que fazer absolutamente nada para isso, ao passo que, em relação a Maria Deolinda Matos, não se provou que ela tenha metido ao seu bolso um único centavo. Cumpriu ordens, que não devia ter cumprido, mas sempre em benefício de outros e não no seu particular.
Outro exemplo é o caso de Maria João Coito, PCA da empresa em que Maria Matos era administrativa. Pois, apesar de a roubalheira ter sido feita através da empresa de que ela é PCA, nega responsabilidades dizendo que não é administradora executiva e nem sequer a julgamento foi, a não ser como declarante. Pois se não sabe, não viu, não ouviu nem ouviu falar, o que está essa senhora a fazer como PCA da empresa? Porque lhe estamos todos nós a pagar um ordenado que deve ser bem chorudo?
O leitor não acha um escândalo essa coisa dos administradores não executivos, sem nenhumas responsabilidades, apenas para acomodar, com todas as mordomia$ os fieis amigos do Poder?
Quid juris, raio?!!
Quid juris, raio?!!
Fonte: SAVANA - 05.03.2010
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