sábado, abril 09, 2016

O nosso sistema de ensino privilegia as classes dominantes (na íntegra)

Em entrevista ao “O País”, a professora catedrática e docente na Universidade Eduardo Mondlane e Univer­sidade Pedagógica, Hildizina Dias, deixa o seu parecer peran­te o estágio actual do ensino no país.
Qual é o entendimento que tem de fracasso escolar? Em que circunstâncias estamos pe­rante uma situação de fracasso escolar?
Estamos perante uma situação de fracasso escolar quando o alu­no não consegue atingir as me­tas que foram definidas, ou seja, quando o aluno reprova.
Um ou vários? Em que per­centagens?
Percentagem acima de 50 por cento de reprovações, nós já fi­camos muito preocupados, por­que, quando o aluno começa as aulas, o que nós queremos é que ele seja aprovado. Mas em determinados contextos, até 30 por cento de reprovações já nos preocupa, 20 por cento já nos preocupa também. Aos 50 por cento, questionamos: o que se passa? É alarmante, e o profes­sor deve ficar muito preocupado. Mesmo num teste simples, se me­tade da turma não consegue ter positiva, o professor deve parar e pensar no que estará a aconte­cer e analisar se o problema está com o estudante ou com o pro­fessor. A intenção do professor é que 100 por cento dos alunos sejam aprovados. Esse é o nosso ideal.
E o que determina esse fra­casso escolar?
São muitas variáveis. Podemos encontrar variáveis ligadas ao professor, ao aluno, ao progra­ma, às metodologias, aos ma­teriais didácticos, às próprias condições de ensino e aprendi­zagem, infra-estruturas, acervo bibliográfico, e até podemos sair da escola, porque o fracasso es­colar não é só uma questão de problemas que acontecem na sala de aula, na escola, mas tam­bém fora dela. E aí olharíamos para o acompanhamento dos pais, a própria sociedade, por­que a escola não é uma organiza­ção isolada, ela está no meio da sociedade e é afectada por tudo o que acontece fora.
Doutora Hildizina enfatiza, também, nos seus estudos, a questão das desigualdades so­ciolinguísticas. Como é que se constroem essas desigualdades?
As desigualdades estão fora da escola. Elas vêm da sociedade. São desigualdades provocadas, por um lado, por diferenças so­ciais. Em Moçambique, temos várias classes sociais e a nossa escola tem um currículo que vai privilegiar as classes dominan­tes, aquelas que são mais ele­vadas. Isso acontece não só no nosso país, mas em todo o mun­do. Quem faz o currículo são especialistas que, normalmente, pertencem a essas classes e prio­rizam isso.
Isso para dizer que, de algu­ma forma, o currículo é também um instrumento reprodutor das desigualdades no país?
É. No país e fora dele, porque esta questão de reprodução so­cial, reprodução cultural, vem sendo estudada desde os anos 60. Se nós não tínhamos este fe­nómeno após a Independência, é porque estávamos num regime socialista. Mas neste momento em que estamos no neolibera­lismo, já podemos notar que temos classes sociais bem defini­das, classe mais baixa, classe dos operários e camponeses, classe média, classe elevada. E o que vemos também é que o filho do doutor tem mais possibilidades de ser doutor, como o pai, e o filho do carpinteiro, se calhar, venha a ser carpinteiro também.
Isso é uma projecção do futu­ro ou essa afirmação parte de um estudo já feito actualmente e que traduz que todas as opor­tunidades vão a favor das elites já bem posicionadas no merca­do?
São conclusões dos estudos que eu faço e de uma realidade que assistimos todos os dias. Se nós olharmos, por exemplo, para as questões do fracasso escolar e se perguntarmos quem está a fracassar mais, sabemos que são as crianças das classes mais bai­xas, porque são estas que neste momento não estão a ter muita oportunidade de ter acesso ao conhecimento.
Até que ponto o ensino bilin­gue é uma resposta positiva à diversidade sociolinguística?
É uma estratégia curricular muito boa, porque, se nós temos de incluir todos, temos também de pensar em todos aqueles meninos que falam uma língua diferente da língua oficial em Moçambique. O que eu não gos­to de ver neste momento é o que está a acontecer na prática, não é a política.
E onde é que se distanciam a política e a prática?
Há muita coisa que devia ser mais cuidada. A educação bilin­gue já foi introduzida. Temos os professores, que estão a dar aulas, têm alguns livros, mas é necessário cuidar muito mais da formação de professores para o ensino bilingue. Por que o pro­fessor de ensino bilingue, aquele que vai ensinar changana, ma­cua, maconde, tem apenas um curso de capacitação? Qual é a diferença? Ele é apenas falante nativo da língua, por isso, julgo que há uma série de cuidados que é preciso ter.
Não estando o ensino na lín­gua local estruturado, qual é o grau de sucesso esperado?
Talvez seja o que está a acon­tecer. O que eu estou a ver, de acordo com a pesquisa que efec­tuámos há cerca de três anos, notamos que a criança que tem problemas de leitura e escrita na língua portuguesa, também tem os mesmos problemas na sua língua local. Até quando começamos a estudar as redac­ções das crianças, ficamos sur­preendidos. Por que elas não conseguem escrever em nyanja? Vamos comparar as duas redac­ções, português-nyanja, portu­guês-changana, e encontramos os mesmos problemas de leitura e escrita.
Introduziu-se há alguns anos as passagens semi-automáticas no ensino primário, amplamen­te criticadas por vários interve­nientes. Qual era o objectivo deste modelo de ensino?
Em termos teóricos, a aprova­ção semi-automática surge no âmbito da avaliação formativa, que nós fazemos ao longo do ano. Podemos fazer também em forma de testes. É aquela que nós fazemos todos os dias e vemos se o nosso aluno está bem ou não, para que não cheguemos aos exames e nos surpreenda­mos. Portanto, dentro do ciclo, a pessoa não reprova. Em termos teóricos, é o que nós temos de melhor.
Quais foram os pecados deste modelo e em que medida contri­buiu para o insucesso escolar?
O problema é que viemos apli­car uma política curricular que não está adequada às condições que nós temos no ensino básico. Esta política pode ser aplicada em escolas mais pequenas, numa tur­ma de 15, 20 a 25 alunos no máxi­mo, onde é possível fazer análise das necessidades de cada aluno. O que acontece é que nós estamos a aplicar a aprovação semi-automá­tica numa turma de 80.
As reprovações em massa no ano passado foram atribuídas pelo Governo a diferentes inter­venientes: professores, alunos, pais. Na sua óptica, como é que explica esta realidade? São to­dos culpados ou há alguns mais culpados que os outros?
O que mais me preocupa é pensar como é que estão estes jovens? O que é que está a ser fei­to para eles recuperarem as ma­térias todas. Porque ainda não ouvi onde é que eles falharam nos exames, por exemplo. Em se­gundo lugar, ver o que os alunos responderam, onde é que eles falharam mais. Com amostras significativas, podemos chegar a uma conclusão generalizada.
Faz parte dos académicos que defendem o uso das tecnolo­gias de informação nas salas de aula. Entretanto, o Ministério da Educação e Desenvolvimen­to Humano pretende criar um diploma ministerial que limita o uso dos celulares pelos alu­nos e professores nas salas de aula. Como é que entende esta medida no processo de aprendi­zagem? Até que ponto as tecno­logias podem ser um problema ou uma vantagem?
Eu gostaria, também, de en­tender por que está a proibir-se o uso dos telefones. Eu julgo que o Ministério tenha feito um estudo para chegar à conclusão de criar um documento neste sentido. Eu só posso dar a minha opinião. Considero que o celular pode ser um meio de ensino e aprendizagem. Agora, cabe ao professor, de forma muito cria­tiva, usar aquele celular para o ensino e aprendizagem. O pro­fessor é que deve controlar isso. Se o Ministério decidiu confiscar os celulares, tudo bem, mas va­mos criar estratégias de ensino motivadoras. Porque se eles hoje não têm celulares, podem dor­mir durante a aula, podem de­senhar, porque o problema para mim não é o celular, é a motiva­ção. É tarefa do professor criar estratégias motivacionais para estes adolescentes.
Passando para o Ensino Su­perior no país, quais são os seus desafios?
Penso que o grande desafio são as tecnologias de informa­ção. Entrarmos em todo este mundo, em toda esta sociedade tecnológica, sociedade de comu­nicação, que é muito importan­te; novas tecnologias de ensino e aprendizagem, infra-estruturas adequadas ao ensino. Termos laboratórios, acervos bibliográ­ficos actualizados. Mudança de metodologias de ensino e apren­dizagem, investigação e produ­ção de conhecimento.
O Governo deseja que 75% dos docentes universitários se­jam detentores de graus de mes­trado ou doutoramento. Até que ponto serão suficientes para sal­vaguardar a qualidade e quem os vai formar?
Nós vamos formá-los, nós esta­mos a formar. É certo que, em al­gumas áreas, ainda é necessário mandarmos os nossos estudan­tes para fora, porque ainda não temos algumas especialidades no país. Mas nas que já tivermos doutores internamente, vamos formar. Estamos a trabalhar nes­se desafio.


Fonte: O País – 01.04.2016

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