Por Alfredo Manhiça
Senhor Presidente,
Na noite de hoje, 03 de Dezembro de 2014, estaremos juntos na sala do Hotel Excelsior, na famosa Via Vittorio Veneto, na "cidade eterna". Teria preferido transmitir-lhe directamente o conteúdo desta Carta, mas o senhor sabe que ninguém ter-me-ia autorizado estar perto de si durante longo tempo. E foi por isso que usei este canal para abordar as questões que seguem.
O que me preocupa é notar que o senhor Presidente e o seu partido continuam a governar o País como se não se dessem conta das transformações que têm interessado a sociedade moçambicana nos últimos anos e, portanto, a necessidade de uma reforma institucional, de modo a assegurar a manutenção do poder mas com meios mais aceitáveis, coerentes com o desenvolvimento sociocultural, e menos violentos.
Melhor do que eu, o senhor Presidente sabe que na luta pela conquista ou manutenção do poder político a força institucional deve sempre ser conjugada com uma estratégia política bem estudada. Por essa mesma razão, ainda hoje, quando o senhor e todos os outros altos dirigentes do seu partido acham oportuno incensar-se diante das câmaras televisivas, contam com gosto que durante a guerra de libertação confundiram, humilharam e esmagaram o Governo colonial português, não tanto porque as vossas armas fossem mais sofisticadas do que as do inimigo, mas porque a vossa estratégia política era superior àquela dos portugueses, e a vossa luta tinha o apoio do povo.
Pelos vistos, no período sucessivo à independência (o tempo do partido único), utilizastes o mesmo instrumento da politização das massas para usurpar a vitória que, pela sua natureza, era uma herança comum de todos os moçambicanos, e a atribuístes unicamente ao partido Frelimo e seus membros. As consequências desta distorção não se fizeram esperar: os cidadão que não pertenciam ao partido passaram a ser tratados como se os seus direitos, enquanto cidadãos, tivessem sido diminuídos, pelo simples facto de não serem membros do partido no poder.
Depois da queda do muro de Berlim, em Novembro de 1989, vós aproveitastes a boleia dos processos de transformação que interessaram os países do então bloco soviético, para introduzir, não um autêntico processo de democratização das instituições políticas moçambicanas, mas para introduzir uma democracia de carácter cosmética, que fosse capaz de convencer os americanos e seus aliados a conceder-vos financiamentos e a criar convosco parcerias de empresariado que vos permitissem explorar os recursos nacionais para o próprio enriquecimento e o enriquecimento da vossa prole.
Nessa altura, ninguém podia opor-se à vossa manobra maquiavélica porque quase ninguém entre os cidadãos sabia o que se entendia com a governação de tipo democrática. Aliás, mesmo entre a elite do partido, a maioria não entedia nada sobre os sistemas políticos de tipo democrático, mas o facto de terdes sido libertadores da pátria atribuía-vos o direito incontestável de explicar aos restantes moçambicanos o que se entendia e o que se pretendia com a introdução do sistema democrático no País.
Hoje, a sociedade moçambicana não é a mesma de vinte anos atrás. Houve muitas transformações no seu modo de olhar para os dirigentes políticos, de julgar as suas acções e de intervir nas questões de interesse público. No passado se participava nas actividades políticas para aclamar o chefe e o seu partido; para responder às invocações de tipo "viva a Frelimo e abaixo a Renamo". Hoje se participa porque cada cidadão quer tutelar os próprios direitos e os direitos do próprio grupo de interesse; o cidadão participa da vida pública porque quer ver o País a ser governado segundo o direito e não segundo os interesses ocultos.
O que me surpreende, senhor Presidente, é notar que o senhor e o seu partido não tenham ainda percebido que é chegada a hora para actuar uma substancial passagem da governação de tipo autocrática/monopartidária para uma verdadeira governação de tipo liberal/democrática, que foi adiada (ou realizada de modo imperfeito) na década Noventa.
Não sei se me explico bem, senhor Presidente: não se trata de renunciar o poder; nem de entregar o poder a "mão beijada", como se costuma dizer, por aí, para desenformar a opinião pública. Os próprios americanos - seus novos patrões e financiadores - nunca lhes passou pela cabeça renunciar o controlo político do mundo. Mas o fazem com métodos continuamente actualizados e menos violentos. E é por isso que eles têm o consenso do senhor Presidente e de outros presidentes como o senhor.
Porquê não aprender deles estes "truques"? Porquê a submissão aos americanos e seus aliados deve servir só para facilitar a contração da dívida externa que, ironicamente, vem designada unicamente para financiar o luxo e as mordomias do senhor Presidente e dos membros seniores do seu partido, embora seja paga pelo suor e sangue dos cidadãos menos privilegiados? O senhor presidente ainda não se deu conta que a força dos nossos “novos patrões” - o que faz deles senhores do mundo - reside precisamente na coragem que eles tiveram e têm, de oferecer oportunidades iguais a todos os seus cidadãos, e por terem fundado as suas relações de governantes/governados no direito e na justiça? Porque não aprendemos deles esta “magia”? O senhor quer que dependamos deles eternamente?
Não direi que devemos aprender os seus “manhas” para depois fazer deles nossos dependentes, mas, pelo menos, para nos libertarmos da dependência, quer deles quer dos outros!
O que dita a necessidade de mudança de estratégia no jogo da conquista e manutenção do poder político é a mudança no equilíbrio de forças no contexto sociopolítico onde o político é chamado a agir.
Acredito que o senhor Presidente recordar-se-á muito bem - salvo se os seus assessores quiseram ocultar-lhe - das multidões que durante a campanha eleitoral participaram nos showmicios dos partidos de oposição, nomeadamente da Renamo e do MDM. Espero que não seja ingênuo, como os seus assessores que, para lisonjear o senhor, andam a propalar que se tratava de uns "curiosos ".
Se os membros mais influentes do seu partido fossem verdadeiramente inteligentes, como querem parecem aos olhos da plebe, visto o cenário dos dias da campanha eleitoral, teriam, logo, cogitado um outro modo para viciar com sucesso o processo eleitoral e não aquele espetáculo vergonhoso que patrocinaram, a baixo preço, aos cidadãos e à opinião pública internacional. Teriam abandonado aqueles métodos arcaicos de falsificação dos resultados: a utilização das forças policiais para intimidar os eleitores ou os Membros de Mesa de Voto (MMVs), o enchimento das urnas, a introdução de cadernos eleitorais com votos já assinalados a favor do candidato da Frelimo, a detenção dos denunciantes das tentativas de materialização da fraude, o atraso propositado de concessão de credenciais aos observadores eleitorais, a subtração ou transferência dos cadernos eleitorais das devidas assembleias ou mesas de voto, a invenção de mesas fictícias, ou a invenção de votantes fictícios, extrapolando assim o número dos potenciais eleitores inscritos.
Porquê, por exemplo, não advertiram o senhor Presidente para apresentar aos eleitores uma proposta alternativa de programa político, mais apetitoso e capaz de dissuadir os eleitores da preferência pela oposição?
A consequência preliminar da fraude eleitoral estupidamente orquestrada pelos membros do seu governo já começou a manifestar-se. O itinerário do seu histórico rival - Afonso Dhlakama - que visa repercorrer os círculos eleitorais por ele visitados durante a campanha eleitoral tem como principal objetivo avaliar o grau da percepção da fraude e da vontade de ver a legalidade reposta. E, pelos vistos, o número dos participantes aos comícios por ele orientados nos dias 27, 28 e 30 de Novembro, nas cidades de Beira, Chimoio e Tete, respectivamente, revela com evidência que existe um descrédito generalizado em relação aos resultados das eleições de 15 de Outubro; e revela também uma vontade generalizada de ver as eleições de 15 de Outubro anuladas.
A suspeita é legítima: a função que os partidos políticos e os cidadãos confiaram aos vogais da CNE não era aquele de votar quem devia ser proclamado presidente da República. De facto, segundo a nossa Constituição, o presidente da República é eleito directamente pelos cidadãos. Portanto de nenhuma forma a votação dos vogais da CNE pode legitimar a proclamação de Filipe Jacinto Nyusi como vencedor das eleições presidenciais de 15 de Outubro. A função dos vogais da CNE era aquela de verificar a autenticidade dos resultados a eles apresentados pelo Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), através duma análise dos editais e das queixas apresentadas pelos partidos políticos. Isso significa que em caso de incongruências a obrigação dos vogais era de identificar o lugar onde residia o erro e proceder com a devida correção matemática e não procurar dirimir as incongruências com o seu próprio voto. Substituindo-se eles (os vogais) aos eleitores, qual teria sido, então, o valor do acto da votação realizado pelos eleitores?
A maior prova contra a CNE e o STAE, e a favor da tese de suspeitas de fraude, é que nenhuma daquelas duas instituições é capaz de disponibilizar os editais comprovativos da vitória do candidato da Frelimo, Filipe Jacinto Nyusi.
Esta é a minha primeira vez em que encontro o senhor Presidente, assim de perto, e acredito que será a última a encontrá-lo enquanto presidente da República. Gostaria de aproveitar esta ocasião para informar-lhe que a sua presidência da República danificou o nosso País. Não falo só de danos materiais porque esses são reparáveis a médio ou longo prazos, falo sobretudo de danos morais. Os jovens que, hoje, abraçam a carreira política, sobretudo no seu próprio partido, lutam para chegar na Assembleia da República (AR), não porque ardem de desejo de debater as questões cruciais da vida pública do País, mas porque a AR tornou-se (ou melhor, o senhor tornou-a), nos últimos anos, num palco ideal para a recitação dos discursos políticos absurdos que, depois, são recompensados com nomeações para cargos mais altos. Os jovens que ambicionam tornar-se oficiais de polícia de trânsito, as suas motivações não são baseadas no amor pela ordem pública, mas no amor pelos “refrescos” que os transportadores semicolectivos “oferecem” diariamente aos polícias de trânsito nas estradas do inteiro País.
O propósito do senhor Presidente de utilizar o seu mandato presidencial para o próprio enriquecimento e para o enriquecimento da sua família matou as consciências morais de muitos políticos moçambicanos, de muitos funcionários públicos e sobretudo de muitos jovens. O senhor foi um mau exemplo para Moçambique e a herança que nos deixa é infernal: o roubo, o crime, a falsificação, o engano, o desvio e sobretudo a utilização de meios públicos para ganhos pessoais são vistos como um acto heroico e não como um pecado ou uma prática imoral.
No nosso País, senhor Presidente, nunca se percebeu um grau assim tão alto de corrupção, ilegalidade, impunidade e arrogância dos funcionários públicos como foi notado durante os seus dois mandatos. A herança que deixa é de um País caracterizado por conflitos e incertezas.
Até bem pouco tempo ninguém tinha a certeza sobre a realização das eleições gerais porque o seu Governo estava em pé de guerra com a Renamo. Agora que as eleições realizaram-se estamos de novo mergulhados numa outra incerteza: como fazer aceitar os partidos de oposição resultados eleitorais marcados por graves irregularidades.
O acordo de Cessação das Hostilidades Militares que o senhor Presidente assinou, no dia 5 de Setembro, com o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, incluía um Protocolo sobre a integração da chamada “Força Residual” da Renamo. Até hoje, não obstante a criação da missão de Equipa Militar de Observadores da Cessação das Hostilidades Militares (EMOCHM), o seu Governo e a Renamo ainda não concordaram sobre as modalidades de integração e enquadramento da chamada “Força Residual” da Renamo. Estando a Renamo a contestar os resultados das eleições de 15 de Outubro, e tendo as próprias “Forças Residuais” ainda não integradas, eis mais uma incerteza em relação ao futuro político moçambicano.
Senhor Presidente, percebo que seja demasiado tarde para o senhor resolver todos estes problemas! Todavia, se não quiser permanecer no lado errado da história política de Moçambique, a mesma falta de escrúpulos que lhe induziu a continuar a governar com métodos neo-patrimoniais, um país que tinha já, formalmente, aviado o processo de democratização, deve servir-se dela para actuar a reposição radical da legalidade, ordenando o Conselho Constitucional para parar com aquilo que Afonso Dhlakama chamou "fantochada", através da declaração da nulidade das eleições de 15 de Outubro.
Se o senhor me disser que não pode proceder desde modo porque o seu governo respeita a separação dos poderes, como vem legislada pela Constituição, para mim será uma clara indicação que o senhor está decidido a persistir na utilização ambígua do princípio da separação dos poderes: respeitar escrupulosamente quando se trata de resolver os problemas de interesse nacional e viola-la sistematicamente sempre que se tratar de actuar agendas ocultas próprias e as do próprio partido.
Aconselhar-lhe-ia também, senhor Presidente, a abrir um processo contra o presidente da CNE, o sheik Abdul Carimo, e o director-geral do STAE, Felisberto Naife, porque além de terem prestado um mau serviço à nação, mancharam o nome de Moçambique , e o seu nome também, senhor Presidente. Mas receio insistir nesta linha porque depois, o seu próprio nome, ou os nomes de muitas pessoas próximas ao senhor Presidente, poderão aparecer no processo como os mentores da fraude.
Recorda-se, todavia, que o seu heroísmo, neste caso, consistiria em parar a marcha do caos que, infelizmente, já está muito adiantado. Claro, tendo sido o mentor de toda esta máquina iníqua, o senhor Presidente não pode esperar sair ileso. Será lesado, mas será um lesado que figurar nos anais da nossa História como um herói.
Provavelmente, senhor Presidente, antes de iniciar esta viagem, alguns entre aqueles que tiram imensas vantagens pessoas dos graves erros políticos que o senhor comete, fizeram questão de avisá-lo que ia visitar um país onde vive um cidadão moçambicano que é contra a sua governação. Esse modo deles de colocar o problema pode ter criado no senhor uma antecipada aversão em relação à minha pessoa e, naturalmente, também em relação à mensagem desta "Carta".
Na verdade, eu não sou seu adversário, pelo contrário, eu sou um seu verdadeiro discípulo. O senhor Presidente pegou em armas para combater o colonialismo português porque oprimia e explorava o nosso povo. Eu pego na caneta para combater o senhor Presidente e o seu partido porque empurraram o nosso País para a situação de progressivo crescimento da pobreza absoluta, precisamente na altura em que ele regista um crescimento do Produto Interno Bruto; porque semearam a cultura de corrupção, de ilegalidade, de impunidade e de crime organizado.
Alfredo Manhiça
Fonte: Mural do autor - (04.12.2014)
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