Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Ao contrário do que pensam alguns dos meus confrades, a violência da guerra, das guerras, não é uma questão unilateral. Na guerra mata-se e morre-se, muitas vezes para não se ser morto. Muitas vezes por excessos descontrolados das forças em presença.
É da psicologia dos conflitos, das guerras, desvalorizar-se o adversário. O que é definido como inimigo. Nos casos extremos não há Convenção de Genebra que resista. Duvido muito que algum dos beligerantes alguma vez tenha ouvido falar na cidade suiça ou da bebida com o mesmo nome.
Em tempo de reconciliação que nem todos entendem, jornalistas e fotógrafos deste país guardam na memória e nos seus preciosos baús de recordações, vivências, relatos e imagens de incrível violência.
Na Zambézia sofredora, no meio de uma das muitas ofensivas militares, os jornalistas são apresentados a um “bandido armado”, amarrado como um chouriço. De fora só sobrava a cabeça. O homem, claramente transtornado, repetia “sou da Renamo, sou da Renamo”. Minutos depois, uma bala certeira pôs termo ao sofrimento deste homem.
Quando tomei conhecimento de mais um massacre de 13 civis no Mongicual veio-me à memória este relato. As pessoas amontoadas num recinto fechado a que se convencionou chamar cela, não eram pessoas. Eram dezenas de chouriços. Pelo menos aos olhos dos seus algozes.
Nesta percepção não há conceito de direitos humanos que resista. Os reformistas e os apologistas do regime encontram sempre justificação para as mortes. É o subdesenvolvimento, a crise, a falta de infra-estruturas. Até o colono e o seu sistema legal é chamado ao banco do reús. Frio, desumanisado e sem encosto.
As pessoas que morreram, insisto, não eram pessoas, eram coisas. E morreram num encolher de ombros. Na mesma província e em circunstâncias não menos difíceis, já foram feitas detenções em massa, sem que os visados fossem atirados para um cubículo sem condições. Há anos, várias dezenas de emigrantes asiáticos, permaneceram detidos na zona de Nacala, enquanto se investigava a legalidade da sua entrada em território nacional. Porque não havia cadeias na zona capazes de albergar um tão grande número de detidos, os homens – eram todos do sexo masculino – foram albergados numa escola e guardados pela mesma polícia que faz Montepuez e Mongicual. As nossas cadeias têm problemas de alimentação: para presos e para os próprios guardas. Aos detidos em questão foi organizado rancho fora do improvisado centro de detenção. Não houve o registo de qualquer morte ou sevícia.
Esta semana, a televisão mostrou 110 etíopes detidos em Tete quando atravessavam ilegalmente território nacional. Não foram atirados para nenhum buraco fedorento. A polícia de Tete não é diferente da polícia de Nampula.
Montepuez e Mongicual não têm como raiz um problema de impreparação policial. As raízes das mortes sádicas e brutais nestas duas localidades derivam de um conflito que, para muitos, não acabou em Outubro de 1992.
Enquanto não enterrarmos estas raízes de ódio e violência nada garante que casos semelhantes não se voltem a verificar. Enquanto as forças da lei e ordem não forem formadas à margem da cartilha partidária, a mesma que enforma os funcionários do Estado e do aparelho judicial que é suposto ser independente, nada garante que notícias funestas e de índole semelhante invadam as nossas casas por via da telefonia e televisão.
Enquanto não formos todos cidadãos iguais no mesmo país.
Fonte: retirado a partir do Diário de um Sociólogo
Nota do Reflectindo:
Trouxe este artigo para este espaço porque Fernando Lima diz precisamente o que tenho defendido nos diferentes fóruns de debate sobre as principais causas das chacinas de Montepuez, Mocimboa da Praia, Chipene, Mogincual outras que não chegaram à imprensa. O discurso das bancadas parlamentares tambem elucida o mesmo.
Por Fernando Lima
Ao contrário do que pensam alguns dos meus confrades, a violência da guerra, das guerras, não é uma questão unilateral. Na guerra mata-se e morre-se, muitas vezes para não se ser morto. Muitas vezes por excessos descontrolados das forças em presença.
É da psicologia dos conflitos, das guerras, desvalorizar-se o adversário. O que é definido como inimigo. Nos casos extremos não há Convenção de Genebra que resista. Duvido muito que algum dos beligerantes alguma vez tenha ouvido falar na cidade suiça ou da bebida com o mesmo nome.
Em tempo de reconciliação que nem todos entendem, jornalistas e fotógrafos deste país guardam na memória e nos seus preciosos baús de recordações, vivências, relatos e imagens de incrível violência.
Na Zambézia sofredora, no meio de uma das muitas ofensivas militares, os jornalistas são apresentados a um “bandido armado”, amarrado como um chouriço. De fora só sobrava a cabeça. O homem, claramente transtornado, repetia “sou da Renamo, sou da Renamo”. Minutos depois, uma bala certeira pôs termo ao sofrimento deste homem.
Quando tomei conhecimento de mais um massacre de 13 civis no Mongicual veio-me à memória este relato. As pessoas amontoadas num recinto fechado a que se convencionou chamar cela, não eram pessoas. Eram dezenas de chouriços. Pelo menos aos olhos dos seus algozes.
Nesta percepção não há conceito de direitos humanos que resista. Os reformistas e os apologistas do regime encontram sempre justificação para as mortes. É o subdesenvolvimento, a crise, a falta de infra-estruturas. Até o colono e o seu sistema legal é chamado ao banco do reús. Frio, desumanisado e sem encosto.
As pessoas que morreram, insisto, não eram pessoas, eram coisas. E morreram num encolher de ombros. Na mesma província e em circunstâncias não menos difíceis, já foram feitas detenções em massa, sem que os visados fossem atirados para um cubículo sem condições. Há anos, várias dezenas de emigrantes asiáticos, permaneceram detidos na zona de Nacala, enquanto se investigava a legalidade da sua entrada em território nacional. Porque não havia cadeias na zona capazes de albergar um tão grande número de detidos, os homens – eram todos do sexo masculino – foram albergados numa escola e guardados pela mesma polícia que faz Montepuez e Mongicual. As nossas cadeias têm problemas de alimentação: para presos e para os próprios guardas. Aos detidos em questão foi organizado rancho fora do improvisado centro de detenção. Não houve o registo de qualquer morte ou sevícia.
Esta semana, a televisão mostrou 110 etíopes detidos em Tete quando atravessavam ilegalmente território nacional. Não foram atirados para nenhum buraco fedorento. A polícia de Tete não é diferente da polícia de Nampula.
Montepuez e Mongicual não têm como raiz um problema de impreparação policial. As raízes das mortes sádicas e brutais nestas duas localidades derivam de um conflito que, para muitos, não acabou em Outubro de 1992.
Enquanto não enterrarmos estas raízes de ódio e violência nada garante que casos semelhantes não se voltem a verificar. Enquanto as forças da lei e ordem não forem formadas à margem da cartilha partidária, a mesma que enforma os funcionários do Estado e do aparelho judicial que é suposto ser independente, nada garante que notícias funestas e de índole semelhante invadam as nossas casas por via da telefonia e televisão.
Enquanto não formos todos cidadãos iguais no mesmo país.
Fonte: retirado a partir do Diário de um Sociólogo
Nota do Reflectindo:
Trouxe este artigo para este espaço porque Fernando Lima diz precisamente o que tenho defendido nos diferentes fóruns de debate sobre as principais causas das chacinas de Montepuez, Mocimboa da Praia, Chipene, Mogincual outras que não chegaram à imprensa. O discurso das bancadas parlamentares tambem elucida o mesmo.
Na minhã opinião, é revelando as verdadeiras causas que evitaremos que um crime hediondo como este se repita no futuro.
1 comentário:
Caro Reflectindo,
Fico feliz por ter publicado este artigo. Há quem faça de conta que certas coisas nunca aconteceram, mas o passado faz parte da nossa história, negá-lo seria o mesmo que não querer aceitar os factos passados e aprender com os erros cometidos, desta forma evitando-se repetir os mesmos. Isso seria o mesmo que negar que o Holocausto alguma vez tivesse acontecido. Por mais doloroso que seja, convém recordar esses eventos chocantes do após independência. Quando G. Nabi foi executado juntamente com outros, em plena praça pública, muita gente foi obrigada a assistir, mesmo mulheres e crianças, quem tivesse a má sorte de estar conduzindo ou transitando perto da área, foi obrigado a assistir à execução destes 'ladrões'. Houve pessoas que desmaiaram de choque, mesmo mulheres grávidas estavam presentes. Se se deparasse com o portador de uma AK-47, primeiro esperava-se que o cidadão tremesse de medo, em vez de se esperar respeito, em circunstâncias normais. Nós, jovens a entrar na adolescência no após independência, nunca iremos esquecer as atrocidades cometidas durante o regime de S. Machel. Se ele foi um dos maiores heróis moçambicanos, então o nosso conceito de herói deve estar muito deturpado. Na era dele, vivia-se num clima de desconfiança, de opressão, de perseguição, de carencia de bens básicos, tinhamos o cartão de racionamento, onde poderiamos adquirir 1 kg. de açúcar por mês, 1 kg. de arroz por mês, ½ litro de óleo, por cada membro do agregado familiar, etc. - mas nem sempre isto tudo era garantido, houve alturas em que até faltavam alguns destes bens básicos (mas às altas patentes e amiguinhos da Frelimo nada faltava, tinham o seu cartão e a sua loja especial onde podiam adquirir o seu rancho mensal), do tempo de falta de cuidados básicos de saúde, Graça Machel era Ministra da Educação e o sistema de ensino simplesmente entrou em colapso total, etc. Havia falta de liberdade religiosa, não podiamos reunir-nos em células de oração, etc. O tempo livre dos jovens era passado em reuniões de grupos dinamizadores (que para mim eram desanimadores), ou na OMM, ou em reuniões politicas nas escolas, ou lavando casas de banho e limpando as escolas, ou capinando/machambando aos fins de semana. Houve pessoas que desapareceram, que até hoje a familia não sabe do seu paradeiro e assume que tenham morrido ou sido executadas, sem julgamento ou qualquer tipo de processo aberto na esquadra ou Policia. Um primo meu foi simplesmente encontrado morto, no seu quarto, com uma bala na cabeça. Tentaram abafar tudo, dizendo que ele se tinha suicidado, mas sabemos que não é verdade, pois temos provas em contrário. Ele foi 'silenciado' porque simplesmente ocupava um cargo de relevo e sabia 'segredos de Estado' que lhe foram confiados, e como se decidiu casar com alguém desconhecido e que não era membro da comandita da Frelimo, foi-lhe negado esse direito, ele só poderia contrair matrimónio com alguém da mesma 'troupe'. Eu nunca esquecerei, embora na altura ainda fosse muito jovem, vi a dor estampada no rosto de uma mãe ao ter de enterrar o seu filho mais novo, e o sofrimento dos seus irmãos e restante familia. Isto tudo convém recordar para que erros destes e semelhantes não se voltem a repetir, e para que um dia venham dizer que tudo isto nunca aconteceu, que são puras invenções de pessoas reacionárias. Eu vivi e convivi com tudo isto, jamais esquecerei, a mim ninguém me poderá provar o contrário.
Cristina
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